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A porta cigana em Moura

Há portas que parecem mais difíceis de abrir do que outras e foi assim que…

Texto de Gerador

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Há portas que parecem mais difíceis de abrir do que outras e foi assim que nos metemos a caminho da comunidade de ciganos de Moura. Encontrámos a chave na expressão de um tal de Benjamim Barão e fomos acolhidos com os olhares sorridentes das crianças e mulheres e os passou-bem sinceros dos homens. Essa hospitalidade devemos nós ter herdado dos ciganos, porque conhecemos a sua terra, entrámos nas suas casas e fomos recebidos no seu culto. Finalmente, a porta estava aberta. Também queriam ter ido, não era? O Gil e a Andreia contam-vos a história. Ora leiam lá:

 

De Lisboa a Moura são duas horas e meia de carro. Nós falhámos a saída na auto-estrada e demorámos mais de três. Passámos pela Serra de Ossa, numa estrada que serpenteia monte acima e monte abaixo, onde se pode conduzir quilómetros sem nunca se ver um carro, e onde se sente o Alentejo do lado de lá da janela.

Encontrámos o Benjamim Barão no centro da cidade de Moura, em frente à Câmara Municipal. Era o nosso ponto de contacto com a comunidade cigana da região, bem-disposto, muito jovem. Apresenta-nos a dois homens mais velhos, pastores da Igreja Evangélica Filadélfia (à qual pertencem, diz o Benjamim, cerca de 95% dos ciganos da região): o António, que é responsável pelos pastores da zona do Alentejo, e o Adérito, a cujo culto vamos assistir mais tarde. São os três ciganos, os três crentes.

Levam-nos primeiro a uma sala de reuniões no edifício da Câmara. Nesta altura ainda não sei se sou um intruso nesta cultura, se um curioso, mas há pelo menos uma cedência pela parte dos três em receber as minhas perguntas. Falamos rapidamente sobre os pontos mais míticos da cultura cigana: pergunto sobre vestuário, festas, casamento. Fico surpreendido quando o Benjamim me diz que, pelo menos na região, essas expressões só existem hoje de forma mais ligeira. A Igreja Evangélica tem reservas em relação a excessos ("vícios", como diz Benjamim), e os crentes que a ela pertencem seguem esse preceito. As festas, no geral, normalizaram-se. Pergunto a António como é então o culto cigano, e se há algo que distinga a comunidade na sua adoração. Ele sorri, hesita, e acaba por dizer: "O cigano louva a Deus mais efusivamente, com mais sangue na guelra. Uma outra missa, quando começa, já se sabe como vai acabar. E a nossa não". É com esta frase (muito sugestiva) que nos deixa para "dar um saltinho" a Castro Verde.

O Benjamim leva-nos a uma pastelaria para experimentar pastéis de gila ("trabalha-se melhor a comer") e matar o tempo até à hora do culto. Parte do seu trabalho envolve dar formação sobre cultura cigana, e o seu conhecimento sobre o assunto é extensivo. Está entusiasmado por ter descoberto um documento que sugere que a comunidade cigana de Moura é a primeira de Portugal. Enquanto eu me debruço sobre um pastel, o Benjamim dedica-se a desmistificar muitas das minhas curiosidades: falamos do luto, através do qual um cigano prolonga a dor da perda durante meses, anos, ou mesmo o resto da vida, do casamento, que ainda mantém partes mais ritualistas e tradicionais, da kris, o 'tribunal' cigano que lida com regras pacificadoras dentro da comunidade, e discutimos como o nomadismo se tem tornado mais e mais raro, tal como a feira de que muitos ciganos ainda dependem para o seu sustento. Há, sem dúvida, uma noção de que a cultura cigana se tem diluído, e o Benjamim faz parte de um esforço para a recordar e manter viva.

Enquanto falamos, o Benjamim vai-me mostrando exemplos que tira da sua própria vida. Ainda muito jovem, é casado desde a adolescência. Tem três filhos. "No outro dia", diz ele, "estava no carro com o meu filho, estava a passar música, eu ia a cantar, e às tantas ele começa a cantar comigo, assim mesmo, à cigano". Ri-se. "A música está dentro de nós". Entre ciganos há grandes músicos que "só precisam de uma guitarra e de um batuque" para fazer uma festa, mas esta vontade de expressão entra muitas vezes em conflito com a sobriedade de conduta que a Igreja Evangélica prefere. Pergunto-lhe se sente que é uma troca, Igreja por expressão e cultura cigana. "Ninguém quer que a cultura desapareça", diz. "Mas as pessoas sentem-se bem pertencendo à Igreja. Preferem pertencer".

Fora da pastelaria, o frio faz-se sentir. O sol já se pôs, e o céu faz-se lilás em todas as direcções enquanto conduzimos por Moura, e depois para fora da cidade e nos campos onde habitam as famílias da comunidade cigana, onde também fica a igreja. Durante um compasso de espera, somos rodeados por crianças curiosas (como te chamas? onde vives? és casado? choras na Igreja?) e fascinadas pela possibilidade de uma fotografia. Vivem todas na comunidade; vão dos quatro aos onze anos.

Entramos na igreja. É uma sala grande com um estrado ao fundo; lembra uma sala de aulas. As cadeiras de plástico estão divididas em dois blocos, um à esquerda, para as mulheres, outro à direita, para os homens. Convidam-nos a sentar na fila da frente, ao lado do Benjamim. No estrado à nossa frente está um púlpito para o pastor, um piano de teclas e uma bateria. O Benjamim aponta-nos os músicos respectivos, diz-nos que são autodidactas.

O culto não começa: vai começando. Quando nos sentamos, já o piano e a bateria tocam a bom som. O pastor Adérito fala para um microfone, e os instrumentos, se dão pela intromissão, só aumentam o ritmo. Mais pessoas vão chegando e enchendo as cadeiras de plástico. Adérito meio fala, meio grita, meio canta. Dá-nos as boas-vindas, e a sala inteira dedica-nos dois aleluias. Depois o culto começa a sério.

O piano e a bateria não param. O pastor, idem aspas. As mulheres choram num pranto solto, os homens levantam-se para orar em voz alta. Há electricidade no ar, quase palpável. Cada crente participa na actividade geral e está envolvido na sua própria oração, a que se dedica fazendo o barulho que quer. Crianças correm pela sala chutando bolas, um par senta-se no estrado e joga cartas à nossa frente, um bebé de dois anos diverte-se a agarrar o balde do lixo ao lado do altar, que o pai tem de resgatar não menos de quatro vezes. A música envolve isto tudo, carrega choros e histórias bíblicas, deposita-as algures ao nível do coração.

O culto é um espectáculo que não pede desculpa. Penso no Benjamim, a rezar de pé ao meu lado, de olhos fechados e uma mão no coração. No contraste entre a sua pele escura e os olhos claros que se repete em muitos dos rostos que me rodeiam. Lembro-me de que fiquei algo desapontado quando me disseram que a festa cigana, pelo menos na região, estava muito mudada, quase extinta, e apercebo-me nos primeiros dez minutos deste culto de que estão enganados, que a festa migrou mas persiste, e todos participam mas ninguém a controla, e, lá está, ninguém sabe quando acaba. O culto, esta pressão e este amor pela expressão, não creio que exista assim noutro sítio.

Saímos da igreja e, no regresso, passamos pela barragem do Alqueva e paramos no escuro para olhar para as estrelas. Ainda se ouve o som de conversa e música, que passa por uma porta sempre entreaberta, se espalha, e se perde algures nos arredores de Moura.

Texto por Gil Sousa
Fotografias por Andreia Mayer

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