Para encerrar por agora o conjunto de pobres textos dedicados à nossa vizinha Espanha venho recordar o leitãozinho assado no forno que deu fama e proveito a Segóvia e ao restaurante Méson de Cândido.
Seguimos a lição de mestre Juarez Valero. historiador e cronista, para explicar como numa terra de agricultura e pastoreio, onde existiam cordeiros, ovelhas e cabras, o leitão assado no forno passou a ser o prato emblemático.
Segundo nos conta Valero, sempre existiu em Segóvia uma comunidade de judeus muito importante. Pelo menos até 1492.
Depois disso, a cisão no tempo de Fernando e Isabel entre cristãos e judeus levou a uma apressada conversão em massa destes últimos (enfim, daqueles que se converteram). Todavia sempre existiram dúvidas sobre a credibilidade dessa conversão.
Os “convertidos” eram chamados “cristianos falsos”, ou “criptocristianos”. Os que sempre tinham professado a fé católica designavam-se a si próprios “buenos cristianos”.
Uma forma de se diferenciarem no dia-a-dia tinha a ver com a alimentação. Os cristãos velhos institucionalizaram o “cochinillo” como o seu prato fundamental nas festividades, sabendo que se tratava de um animal que era considerado impuro pelo judaísmo e ao qual os “convertidos” continuavam a ter algum nojo, pelo hábito e pela tradição.
É interessante compararmos esta explicação com a “estória”, também já aqui contada, da “alheira” de Trás-os-Montes. E de como, ali, a “tradição do engano” não se comprovou historicamente.
Outra teoria explica que se tratava afinal de um sinal de snobismo precoce. As guerras de reconquista tinham criado uma nova casta de cavaleiros vilões, de ascendência plebeia, mas que se consideravam superiores aos seus pais e avós pela riqueza conquistada através dos despojos que tinham obtido nas campanhas. Desta forma teriam abandonado os comeres tradicionais do campo pela novidade mais cara e rara do “cochinillo”.
Sinal de diferenciação social, ou de casta, marca de fundamentalismo religioso, o certo é que não devemos deixar de provar o “cochinillo al horno”. Pelo menos uma vez na vida para poder comparar com o nosso Leitão assado à moda da Bairrada.
- Cândido de Segóvia ensina a fazer este prato, começando pelo fundamental: é preciso ter bons leitões, criados por quem sabe e de boa raça. O resto, como verão, é simples.
Introduzem-se alguns paus de loureiro (para que o leitão não fique em contato com o fundo) e um dedo de água num tabuleiro de ir ao forno.
O Leitão é cortado com uma boa faca comprida, de forma a ficar espalmado.
Tempera-se o leitãozinho (que no máximo poderá ter 3,5 kg) com sal apenas. O forno deve estar a 180º quando se introduz o leitão com a pele virada para baixo. Ao fim de uma hora vira-se, unta-se a pele virada agora para cima com banha e fica a dourar mais uns 45 minutos.
Retifica-se de sal e vem para a mesa bem quente e estaladiço, de forma a poder ser cortado com a borda de um prato de cerâmica.
Se estiver bem assado, o prato entra por ele como se fosse uma faca. E manda a tradição que logo a seguir ao corte se deite esse prato violentamente para o chão com um sonoro “Olé”.
Em Espanha há quem reforce este tempero com alho cortado, louro ou até grãos de pimenta preta. Mas a receita tradicional leva apenas sal grosso e banha.
Trata-se de uma criação gastronómica com alguma gordura e que não é bem acompanhado por vinhos tintos velhos, ou de corpo notável. Precisa-se aqui de um branco jovem, de um tinto mais ácido e jovem igualmente, ou então, de um espumante de boa qualidade, obviamente que “bruto”.
Se estivermos em Segóvia, terra da denominação de origem “Rueda”, recomendo um branco. Por exemplo o “Circe 2017”. Rueda “verdejo” da adega Avelino Vega.
Em Portugal temos uma casa, “Méson Andaluz”, onde pontifica Mestre Almeida. Tem um notável “cochinillo”, em nada inferior aos de Segóvia. Chegava ao ponto de criar os seus próprios leitões na herdade que possui no Alentejo, para melhor controlar a qualidade da matéria-prima. E fica na Travessa do Alecrim, perto do Mercado da Ribeira, em Lisboa. Vale bem a deslocação.
Manuel Luar