O espaço é preenchido por um deserto de tempo fragmentado a cores neutras. Um sítio onde até se tem medo de adormecer, porque acordar depois é horrível. Aliás, quando estás deitada estás morta e as pessoas que me acompanhavam na realidade não existem. É durante um dos últimos ensaios antes da estreia de O Novo Mundo que estes e outros pensamentos são proferidos num reboliço hiperbólico de uma narrativa cativante. Dentro de poucas horas os Possessos estreiam a peça O Mundo Novo, na Culturgest, pelas 21h30, que estará em cena até dia 30 de junho. Este podia ser só mais um espetáculo, ou não fosse surpreender-nos a cada novidade e desafio. A irreverência dos Possessos está mais presente do que nunca e, perante a oportunidade de apresentar um espetáculo numa sala de 600 lugares, escolheram apresentar uma peça com texto original, escrita por 6 dramaturgos, interpretada por 16 atores e um ator/músico, num total de mais de 30 pessoas a comporem a equipa. Mas agora, meus senhores e minhas senhoras, faça-se silêncio. O espetáculo vai começar.
Fundado em 2013, os Possessos são um coletivo que ganhou vida pela união de Catarina Rôlo Salgueiro, João Pedro Mamede e Nuno Gonçalo Rodrigues. Atualmente contam com uma equipa com mais de 20 pessoas e já criaram três espetáculos: Rapsódia Batman, II – A mentira e Marcha invencível. O Novo Mundo é a quarta criação deste grupo que surgiu a propósito do convite de Francisco Frazão, ex-programador da Culturgest, para produzir uma peça, em que pela primeira vez os Possessos têm um orçamento. “Pela primeira vez estamos a produzir um espetáculo em que as pessoas são pagas, em que podemos cumprir horários normais, e não só depois dos nossos outros trabalhos. Isso está a ser muito bom. Esta oportunidade surgiu com o convite dele que disse mesmo, ‘eu quero atores da vossa geração’, inclusive apontou alguns nomes de pessoas que ele gostaria de ver a trabalhar connosco”, partilha Isabel Costa, um dos membros dos Possessos.
O Novo Mundo é um espetáculo que se enquadra por completo no espírito dos Possessos. “Acho que foi um convite muito consciente daquilo que é a missão dos Possessos, ou daquela narrativa que nós temos de nós próprios que é querermos chamar ainda mais gente, mais pessoas, juntá-las nos nossos processos, descobrir em comum o que queremos. Como sabes, ultimamente houve um grande alvoroço à volta dos apoios às artes. Não quer dizer que no nosso dia-a-dia dos ensaios estejamos a discutir isso. É uma discussão que aparece. Mas achamos que através deste encontro já estamos a contribuir para haver uma reviravolta grande”. Reviravolta essa que começa pela escolha de ter 6 escritores para redigir esta peça, nomeadamente Daniel Gamito Marques, João Pedro Mamede, Leonor Buescu, Miguel Ponte, Nuno Gonçalo Rodrigues e Tiago Lima. Num café perto da Culturgest, dois desses escritores, Daniel Gamito Marques e Leonor Buescu, revelam que tinham estado presentes aquando do último projeto dos Possessos, a Marcha invencível, e que foi assim que surgiu a oportunidade de integrarem este novo trabalho.
A proposta começou pela vontade de juntar várias pessoas em torno de uma mesa de forma a escreverem sobre o mesmo assunto. “Ou seja, para além de ser invulgar é uma tarefa muito difícil, porque não eram duas pessoas, mas seis. Tínhamos de encontrar uma forma de convergirmos todos para o mesmo sentido e formar uma coisa que fosse minimamente coerente”, aponta Daniel. Como ponto de partida inspiraram-se no trabalho de três escritores contemporâneos, David Foster Wallace, Zadie Smith e Roberto Bolano. “Eles são conhecidos por terem uma forma de escrever muito particular e muito hiperbólica. Têm romances muito longos, com muitas personagens. A ideia era partir desse universo exagerado”, explica Daniel para a Leonor acrescentar logo de seguida que “no entanto, refletem a realidade em que vivemos hoje” e a questão da hiperinformatização. “Somos constantemente bombardeados com excesso de informação e isso é um pormenor importante, porque a informação não é conhecimento. E é muito difícil orientarmo-nos num mundo desse tipo, em que se continua com a internet, redes sociais, facebook, twitter e etc. Portanto, a ideia era partir desse universo e refletir sobre ele, que no fundo era o que eles escreviam nos anos 90, prefigurando tudo aquilo que nós estamos a viver hoje e que eles conseguiram, de certa forma, antever e tentar captar esse universo para as cenas que escrevêssemos. Um mundo que é caótico, hiperbólico”, conclui Daniel.
Da proposta inicial à concretização de um trabalho a doze mãos que vêm de áreas e interesses diferentes, o processo foi-se transformando ao longo de 9 meses de trabalho de criação. Leonor partilha achar que “o interesse dos Possessos era fazer um grupo de pessoas com áreas de estudo e de interesse completamente diferentes. Eu mais de Humanidades e História, o Daniel mais da Biologia, outra pessoa de Farmácia. Portanto, uma coisa muito polarizada também nos próprios escritores”. Se fazer convergir a caneta de tantos artistas pode ser complicado, também traz mais-valias como juntar “tanta gente numa instituição pública, que é a Culturgest, é uma afirmação de que somos capazes. É aquele embate geracional de mostrar que os mais novos também fazem alguma coisa”. Daniel aponta a mais-valia do feedback imediato que este processo permite, levando “a tua escrita a um outro nível, que não conseguirias se estivesses a fazer isto sozinho. É claro que há sempre vantagens e desvantagens. É muito difícil encontrar um consenso. Diria que é quase impossível encontrar um consenso em grupos, sobretudo quanto maiores eles são, porque é preciso conciliar a visão de todas as pessoas. Mas é preciso encontrar um terreno comum para que toda a gente se consiga entender e levar o processo até ao fim. Foi isso que aconteceu, porque era isso que tinha de acontecer”.
O espetáculo desenrola-se num deserto vasto e repleto de possibilidades onde as personagens agitadas se perdem e encontram, transportando o espetador nesta sua viagem. Em palco, ouve-se que não se trata de um capricho. Estou farta que me digas o que sentir, do teu embrutecimento emocional. Porém, também se garante que há mais soluções do que problemas. De súbito, as personagens param e fitam-se. Queres jogar ao jogo do sério? Ganhei! A explosão que se segue é a do riso. Esta sucessão de focos temporais e espaciais levam-nos a descobrir se a liberdade se materializará num Novo Mundo, onde não existe um tempo, mas vários. “Fala-nos de muitos tempos sobrepostos, tempos que se dilatam e contraem entre o espaço onde se insere a ação que é criada pelos atores e encenação, mas não é uma coisa una, única ou uniforme de tempo, mas sim uma preocupação temporal que não é cronológica, não é sequencial, nem linear, é ao mesmo tempo polarizada numa ação com muitos focos temporais, espaciais, de atores, de cenas”, explica Leonor. Daniel segue o raciocínio dizendo que a peça, na sua essência, fala do nosso tempo. “Que é um tempo que não é linear, que corre demasiado depressa, como todos nós sabemos, e que por outro lado também é fragmentado e no qual aconteceu uma coisa, que eu acho mais importante tal como diz um filósofo que eu costumo citar muito, é um tempo fragmentado e que perdeu o ritmo. Um tempo sem ritmo, em que essa perda de ritmo leva à fragmentação e desorientação das pessoas. E essa desorientação é-lo também da nossa geração. Voltamos à questão social e política da precariedade, dos contratos de trabalho, da recessão económica, etc. Para mim é esse tempo que a peça reflete”. Em palco volta a ouvir-se falar do tempo, está tudo bem. Temos tempo. Dar-te-ei um abismo.
O fio condutor da narrativa pega nestas preocupações e dilata-as em signos e símbolos presentes num deserto do real. “Talvez a imagem mais concreta e literal seja a deste deserto onde as crianças brincam e onde nos encontramos durante o espetáculo”, conclui Leonor. Finalizando esta ideia, Daniel resume que “ao longo do processo o que foi acontecendo foi que essa história, ou esse universo, essas preocupações da hipérbole e do exagero, foram-se particularizando no caso da vivência da nossa geração e, portanto, aquilo que vemos no produto final, na peça que vamos apresentar, são essas preocupações aplicadas, no fundo, à nossa geração, não com a pretensão de estarmos a fazer teatro documental ou qualquer coisa que as pessoas consigam reconhecer como a sua vivência, mas no sentido mais estilizado e simbólico do que simboliza para cada um de nós essa dispersão e fragmentação do tempo, do nosso tempo”.
O financiamento do projeto permitiu ainda que houvesse maquinaria e “a própria possibilidade da encenação do espetáculo, dos meios para mostrarmos o que queremos do texto é uma novidade, se calhar mais no seio dos Possessos, porque finalmente abriu-se um leque de possibilidades e acho que isso foi outra mais-valia. Gosto muito das luzes, da maquinaria, estou contente por se terem utilizado meios novos dentro do grupo, da companhia”, aponta Leonor. Daniel relembra também o trabalho de Ângela Rocha, a cenógrafa do espetáculo, que neste espetáculo ganha mais expressão.
Isabel junta-se à conversa e partilha que entende a experiência de trabalhar com os Possessos como a construção, para além do espetáculo em si, de um mundo revolucionário que normalmente é “sempre muito bom e divertido”. Ao pedir que apontassem um momento que tivesse sido marcante ao longo deste processo, ambos os escritores destacam a relação de proximidade e amizade que se desenvolveu entre a equipa. Daniel partilha que para ele “o teatro permite-nos fazer uma coisa que, se calhar, já muito poucas zonas da sociedade nos permitem fazer, que é criar um novo mundo. Uma nova forma de nos relacionarmos com as pessoas e isso para mim é muito importante. É uma relação que transcende a economia, classe social, hierarquia, interesses pessoais”. É neste espaço de duplicidade onde há tempo “para trabalharmos e sermos produtivos, como éramos, mas também havia espaço para depois sermos parvos”, como assegura Leonor, que se criam as ferramentas necessárias para que exista confiança e união para escrever um projeto onde estão seis vontades de escrevinhar em jogo.
Após meses de preparação, que equivalem ao tempo de criar uma nova vida, este Novo Mundo mistura atores de várias gerações e de alto nível que enchem o palco, como Margarida Vila-Nova, Catarina Rôlo Salgueiro, Miguel Cunha, André Pardal e muitos mais, apresentam um texto original e múltiplo, e demarca-se ainda por juntar várias companhias de teatro novas, o que é algo inédito. “Esta mistura é absolutamente única, as outras gerações têm muito medo de juntar as pessoas. Isso é muito especial no espetáculo”, explica Isabel. Leonor acrescenta que O Novo Mundo também é sobre “juntar pessoas que aparentemente seriam rivais, pela competição entre as companhias. Mas aqui não há isso e isso também é o bonito deste Novo Mundo, deste novo espetáculo”. Daniel remata a ideia afirmando que “é uma posição até mesmo política do grupo. A noção de dizermos que é possível, mesmo tendo grupos diferentes, com visões estéticas diferentes, com preocupações diferentes, que apresentam trabalhos às vezes muito distintos uns dos outros, sermos capazes de construir uma coisa em conjunto se nos propusermos a isso. Nós queremos construir um espaço que possa incluir toda a gente. É essa a proposta inicial e tentámos fazer isso através de uma prática concreta, seja do ponto de vista do texto, seja do espetáculo em que os atores de todos estes mundos diferentes são convidados e obrigados a relacionarem-se uns com os outros e construírem essa tal comunidade”, evidenciando que O Novo Mundo que os Possessos levam a cena não se limita à dramaturgia, mas aplica, desde logo, o ímpeto da mudança em prol de uma comunidade nos seus próprios processos.
O espetáculo continua, exaltando a sua veia filosófica que indaga o significado da existência humana e assalta o público com perguntas. Vais-te lembrar de mim? As mudanças que operam em palco são infindáveis. Correria, rodopio, o devorar alguém vivo, as memórias futuras que são sonhos. Por entre o deserto neutro elas vão surgindo, a rapariga da saia vermelha e a de saia azul. Elas dançam, elas discutem, elas correm. Ainda não caíste para o lado? Morrer não é o fim da vida. A meta não faz parte da corrida e a curva é diferente do beco sem saída. Declara-se o fim de algo quando esse algo já não pode ser outra coisa. O Fim. Ou será apenas o início? Talvez num Novo Mundo estejamos além da multidão.