Para se evocar um sentimento ou uma emoção através da música, o lado racional pode atrapalhar ou, pelo contrário, ajudar?
Eu acho que não! O sentimento pode estar lá e ser exposto através de impulso e, nesse caso, a própria exposição artística ser mais orgânica. Ou, pelo contrário, o sentimento pode ser mastigado para ser exposto de forma mais trabalhada e até lírica. Pessoalmente, gosto de experimentar tudo e não ter preconceitos contra nenhum método. Qualquer método que dê prazer terá sentimento!
Qual é ou quais são as músicas que fazem o teu corpo mexer?
É aleatório! A mesma canção tanto pode fazer mexer ou não. Depende dos dias e do estado de espírito. Pessoalmente, considero que as canções (e especialmente as boas canções) têm a capacidade de ser o que as pessoas quiserem que sejam. A vontade de mexer está na pessoa, a forma como se mexe também. Depois, a canção pode trazer isso cá para fora, mas não considero que seja a canção a ditar nada que não fosse já intrínseco a alguém.
E aquelas que te conduzem a um estado de espírito imediato?
Mais uma vez, acho que o estado de espírito associado a uma mesma canção varia imenso de pessoa para pessoa. Tem que ver com a forma como cada pessoa experienciou a canção. Se, por acaso, uma canção ficar associada a um acontecimento pessoal marcante, dificilmente lhe será retirado esse peso. Claro que há sempre espaço para olhar para a canção de uma forma mais analítica e compará-la com outras, definindo a sua qualidade, contextualizando-a e julgando-a à luz de um tempo ou de um lugar. Mas nada disso anula o sentimento que cada um lhe associa. A canção que provoca a paz a um, pode provocar ansiedade a outro. Basta pensarmos que há pessoas a quem, por exemplo, a música calma acalma ou, pelo contrário, pessoas a quem a música calma apenas “stressa” mais.
Achas que o facto da música ser invisível, não palpável, ajuda-a a ser mais intuitiva e, por conseguinte, ter uma outra relação com a nossa consciência?
Sim, acho! Não só com a consciência, mas também.
Já te aconteceu pensares numa imagem, num ambiente específico ou espaços enquanto compões?
Sim, utilizo isso naturalmente no meu processo de composição. Ajuda a contextualizar as emoções no momento da composição, dar ambiente a esse momento. No fundo, para mim isso torna o acto de compor mais “cosy”. Mesmo que a canção, depois, não corresponda nada ao ambiente e aos espaços que pensei, é sempre útil para o processo. Para mim não é imprescindível que essa utilização seja fidedigna, apenas pretendo que ajude a construir um objecto com cabeça, tronco e membros.
Se pudesses desenhar e pintar a tua música, como seria e que cores teria?
Não consigo responder a esta pergunta. Mesmo em relação à música dos outros teria dificuldade. Assim como nos sonhos que tenho me lembro da história, mas não consigo definir bem as cores e as formas.
Como é que imaginarias o sabor da música mais especial para ti? Doce, amargo, salgado como o mar, agridoce?
Imagino agridoce porque gosto de canções que misturem o peso da tristeza com a leveza da alegria. Uma canção tem imensas dimensões: a palavra, a melodia da voz, os arranjos, a textura do som escolhido, as camadas de instrumentos, os efeitos… Muitas vezes achamos que só a palavra e os acordes maiores, que se pensam ser alegres, e os menores,que se pensa ser tristes, definem a alegria ou tristeza da canção . Mas não, eu considero que todas as dimensões que enumerei, entre outras, podem trazer alegria ou tristeza à canção. Gosto de jogar com tudo isso e deixar um sabor agridoce na maioria dos objectos finais.
Pensa no cheiro mais importante para ti, aquele que ficou na tua memória. Que música lhe associarias?
O cheiro que mais ficou na memória talvez seja o cheiro das casas de férias onde eu ia em criança com os meus pais. Por isso, associo-lhes a música que ouvimos no carro a ir para lá.
Achas que a música pode ser um bom veículo para fixar e guardar memórias?
Eu, pessoalmente, sempre achei que sim! Por exemplo, faz-me muita confusão que pessoas coloquem músicas como toque de telemóvel. Eu nunca fiz isso. Recebo tantas chamadas irritantes e nunca sei se posso receber uma chama terrivelmente perturbadora, sei lá, que um familiar meu morreu. Ao receber uma chamada desse género e ter uma música de que goste como toque, automaticamente, ficaria com uma coisa associada à outra, deixando de gostar da música. Uma vez tive um acidente de carro complicado, no qual não tive culpa. Estava a conduzir numa estrada nacional e veio contra mim um indivíduo em contramão, bêbado e com os máximos do carro acesos. Lembro-me bem da canção que estava a ouvir e dificilmente a ouvirei da mesma forma.
Entervista por Ana Isabel Fernandes
Foto de Francisco Aguiar