O hífen, amado por uns e odiado por outros, é um sinal gráfico em forma de um pequeno traço horizontal (-), usado para unir os elementos de palavras compostas e os pronomes átonos a verbos, e para separar sílabas em final de linha (translineação). Há quem lhe chame tracinho, traço de união e até, vejam bem, tirete (!), do francês tiret, este do verbo tirer no sentido de ‘traçar, escrever’.
Venho fazer um convite para se debruçarem sobre um emprego particular do hífen. Este sinal tem servido para fazer a distinção clássica entre o que é um composto e uma locução. Um composto é a palavra formada pela junção de elementos autónomos, isto é, pela associação de palavras, com ou sem elementos de ligação, cujo sentido não resulta do significado dos seus elementos; e uma locução é um grupo de palavras que funcionam, semântica e sintaticamente, como uma unidade, mas os respetivos componentes, apesar da associação que formam, conservam o seu significado.
Vamos a exemplos para tornar tudo isto que acabo de referir mais simples:
Uma mesa redonda (uma mesa que é circular) é diferente de uma mesa-redonda (reunião de pessoas especializadas que, em pé de igualdade, discutem ou deliberam sobre determinado assunto).
A primeira grafia, de sentido literal, objetivo, é escrita sem hífen, e difere da segunda, que se escreve com hífen por ser um verdadeiro composto.
No título da última crónica, «Vírgula, o nosso calcanhar-de-aquiles», calcanhar-de-aquiles está hifenizado propositadamente, apesar de escrever segundo as novas regras de escrita. Porquê? Passo a explicar.
O calcanhar de Aquiles, locução com a significação literal de cada elemento (é mesmo o calcanhar de Aquiles, que tem como referência a mitologia grega em que o ponto fraco do herói, Aquiles, era o seu calcanhar) serve de base ao composto calcanhar-de-aquiles, em que o sentido da unidade não se deduz dos elementos que a formam, pois designa o ponto fraco de alguém, ou seja, adquire um significado cristalizado, de carácter metafórico e opaco.
Desta forma, estamos a diferenciar unidades que são transparentes, ou seja, cujo significado é literal (obtido do significado dos seus elementos), como barco à vela, bilhete de identidade, carta de condução, casa de banho, cão de guarda, carrinho de mão, direito de antena, fato de banho, ferro de engomar, marco do correio, sinal da cruz, televisão a cores, de unidades opacas, cujo significado não se consegue deduzir dos seus componentes pelo seu carácter figurado ou metafórico, como alma-do-padeiro (buracos do pão), menina-dos-olhos (pessoa preferida), pé-de-meia (economias), tinta-da-china (nanquim).
Acontece que, seguindo uma das novas disposições do AO90, as locuções de qualquer tipo devem ser escritas sem hífen (Base XV, 6.º), salvo as exceções ditas consagradas pelo uso, como é o caso de água-de-colónia, arco-da-velha, cor-de-rosa, mais-que-perfeito, pé-de-meia, ao deus-dará e à queima-roupa, o que, na verdade, não apresenta qualquer alteração relativamente ao texto de 1945. Este ponto tem provocado ambiguidade e diferentes interpretações. Quando se escreve ‘como é o caso’, não será o mesmo que afirmar “como, por exemplo”? A lista será exemplificativa ou taxativa?
Para entender este ponto, recordemo-nos, em primeiro lugar, da distinção entre composto e locução atrás referida. Todos os exemplos fornecidos (pelo AO90) são vocábulos de sentido opaco, figurado. Ou seja, verdadeiros compostos. Então, não seriam por isso ‘exceções’? Julgamos que sim, pois como explicar que pé-de-meia (economias) deve ser escrito com hífenes, em virtude da consagração pelo uso, mas pé de galinha (ruga) não, ou até pé de atleta? Assim, como sei se alguém se refere ao pé de uma galinha ou à ruga, ao pé de um atleta ou à micose localizada no pé? Tudo muito diferente, e cujo sentido é alterado por um simples hífen.
E por que razão arco-da-velha mantém os hífenes, mas o mesmo pode não acontecer em arco da aliança ou arco da chuva, quando significam o mesmo? Não seria desejável que as palavras que apresentam o mesmo tipo de constituintes seguissem a mesma norma?
Há diferentes entendimentos quanto a este assunto, mas a necessidade do emprego do hífen tem sido sentida.
Vamos agora assumir que eliminamos os hífenes. Como grafar então os nomes próprios? Com inicial maiúscula ou minúscula? Será calcanhar de aquiles ou calcanhar de Aquiles, maçã de adão ou mação de Adão, tinta da china ou tinta da China? A queda do hífen ditaria, em princípio, o uso da inicial maiúscula. Não ficará, porém, confuso? Este é outro ponto que reforça a utilidade do emprego do hífen, como, por exemplo, em folha de Flandres (folha-de-flandres) ou maçã de Adão (maçã-de-adão).
Resumindo: os exemplos fornecidos no texto de 1990 são exemplificações (a lista é meramente exemplificativa, não taxativa) e, por isso, há mais casos em que o hífen deverá ser mantido. Daí escrever calcanhar-de-aquiles.
O tema não se esgota aqui e muito mais há a dizer sobre o hífen. Mas fica para outro dia! E assim continuaremos a afiar essa língua!