Inevitavelmente o texto desta semana será sobre a Ceia de Natal. Claro que as memórias de cada um de nós terão sabores diferentes de acordo com o local onde nascemos ou onde prestamos agora este culto antigo à quadra.
No Norte a Ceia de Natal tem certas práticas, na Beira terá outras, e no Alentejo e Algarve ainda outras.
Fruto dos tempos em que a refrigeração consistia em abanicos movidos à mão , ou em blocos de gelo enfiados dentro de caixotes de madeira, era raros os produtos ditos “frescos” que conseguiam chegar a todos os locais do país, pela pouca tendência a ganharem a mortificação dos tecidos conhecida como o início da podridão.
Assim se fez a fama do polvo e da raia, os quais acolitavam el-rei D. Bacalhau como ricos-homens de primeira grandeza nas vilas e aldeias que não ficavam na costa atlântica. Também eles (principalmente o polvo) entram nesta história de Natal.
Textos paradigmáticos como “Um Adeus Português” de José Quitério e o que David Lopes Ramos escreveu para o Livro “A Epopeia do Bacalhau”,(edição CTT), têm tudo ou quase tudo o que convém saber sobre as razões sociais, económicas e históricas do nosso altíssimo consumo per capite do seco gadídeo, o que nos torna nos principais clientes de bacalhau do mundo.
Levanto a pontinha deste véu: foi graças à Igreja Católica e à sua grande influência no nosso país que o “fiel amigo” se tornou assim tão lusitano. De facto, a carne era proibida em quase metade dos dias do ano (!) e em consequência os dias de jejum passaram a ser os dias do bacalhau salgado e seco.
O “Bacalhau da Consoada” é uma tradição sobretudo minhota, que depois se alargou a praticamente todo o país. Embora no Sul haja ainda quem prefira o “Lombo de Porco Alentejano Assado” para a mesma ocasião
Tem graça que os antropólogos supõem que essa diferença gastronómica estaria ligada a uma diferente visão da Noite de Natal: para os nortenhos a ceia da consoada antecedia a missa do galo e por isso as regras estritas do Advento impunham o peixe na dieta. Enquanto no Sul a mesma ceia era partilhada por todos mas apenas depois da missa do galo, o que permitia que a carne encontrasse já o seu lugar à mesa.
Este Bacalhau da Consoada, dito “com todos”, valia sobretudo pela qualidade superlativa das matérias-primas utilizadas. Bacalhau de cura amarela, alto e bem seco; couves pencas ainda doces e retiradas da horta na altura, ovos de galinha caseira, cenouras e batatas cultivadas pelos próprios. Azeite virgem do melhor, alho e cebolas partidas aos pedaços, em cru para quem gostava, ou então fervendo o alho dentro do azeite previamente aquecido.
Há dois truques para que este simples prato resulte ainda hoje esplendoroso.
Em primeiro lugar o bacalhau nunca se deve deixar ferver. A fervura tira-lhe as gorduras intersticiais, as “geleias” que dão o gosto e a consistência. Apenas deve ser colocado em água fria que se deixa depois aferventar, tirando-o de seguida.
O outro “truque” consiste em enxaguar muito bem todos os ingredientes depois de cozidos, de forma a não ir para as travessas uma pinga de água da cozedura. Por isso pode (e deve-se) colocar na mesma travessa, por baixo de todos os ingredientes, um pano branco absorvente (e nem quero ouvir falar de papel de cozinha!).
Lembro-me que na casa dos meus sogros, que eram lavradores na Beira Alta, era também costume pôr na mesa, ao lado destas travessas de bacalhau e pencas, um prato fundo com um polvo cozido e partido aos pedaços grossos.
Desta refeição convém sempre fazer a mais. Mais bacalhau, mais batatas e por aí adiante. Porquê?
As sobras da ceia são fundamentais para termos ao início do almoço do Dia de Natal a famosa “roupa velha”, ou “farrapo velho”. A qual costumava ser tão boa que muitas vezes tirava o apetite para o cabrito assado ou peru criado em casa que faziam figura de atores principais nesta festa da família quando era passada na província.
Cortamos os restos das couves, ovos cozidos, batatas e cenouras, em bocados, limpamos os restos de bacalhau das espinhas e lascamos, salteamos tudo num frigideira “gigante” em bom azeite e alho picado fino. Antes de ir para a mesa dá-se um bom golpe de vinagre de vinho, do melhor que encontrarem (passe a publicidade, o melhor português é o Moura Alves, custa perto de 20€…). Podemos por fim fazer a batota de introduzir uns ovos cozidos no momento e cortados às rodelas, para decorar a travessa.
Boas Festas para todos!
Manuel Luar