Cheguei à crónica número 174.
Nem de propósito, porque desejava falar dos rituais da passagem de ano do “artista” enquanto novo. E no ano de 1974 tinha o dito “artista” 19 anos. Era novo, mas tinha já ordem superior para fazer vida independente.
A Revolução dos Cravos veio abrir as portas de uma sociedade ainda autoritária, onde a liturgia associada à passagem para a idade adulta estava ainda muito ligada à capacidade para o jovem se sustentar a ele próprio, ter emprego ou meios de subsistência que lhe permitissem casar e sair de casa dos pais.
Recordo o dia em que o meu pai e a minha mãe me deram a chave de casa pela primeira vez. Tinha dezasseis anos e acabava de entrar na universidade. Até essa data sempre que entrava tarde tinha de tocar à campainha e ouvir o sermão com a missa cantada da minha mãe.
Nesta matéria devo dizer que meu pai nunca controlou a minha hora de entrada, mas sim a hora de me levantar. Podia entrar às seis, mas às seis e meia estava ele a tirar-me da cama.
Com dezanove anos, no terceiro ano da faculdade, comecei a trabalhar de dia e estudava de noite, para ir ganhando uns dinheiritos e preparar o grito do Ipiranga que seria ter uma casa só para mim.
O Portugal dessa época era diferente do atual: casava-se cedo, saía-se também cedo de casa dos pais. Arranjar emprego era fácil, os relacionamentos com o sexo oposto liberalizavam-se, para uma certa faixa da sociedade as idas a Londres para comprar roupa, discos ou livros eram frequentes.
Investia-se mais, muito mais, na conversa olhos nos olhos, à distância de um braço. Não havia redes sociais nem Internet, nem telemóveis. E ainda se escreviam cartas de amor.
A preparação dessa passagem de ano de 1974 envolveu o grupo de amigos da faculdade. Éramos onze, seis rapazes e cinco raparigas, todos da mesma idade.
No desenvolvimento da liberdade recém-adquirida – pessoal e institucionalmente, família e pátria –, foi decidido alugarmos uma casa no Algarve para alguns dias de farra.
Os “onze” eram um grupo constituído por quatro casais, que namoravam desde o tempo de caloiros, por mais um parzinho que estava naquele momento a começar o idílio, e por um mânfio desirmanado, que por acaso era quem assina.
A minha namorada ainda não era universitária e foi considerada pelos pais demasiado nova para andar metida em coboiadas daquelas. Para grande desespero de ambos. Só perguntávamos se tínhamos feito o 25 de Abril para isto?!
Perante a firmeza inabalável da entidade patronal, aleguei motivos ideológicos para não ficar em Cascais durante aquela passagem do ano. E essa tomada de posição quase me custava o namoro...
Para ver se me ocupava com qualquer coisa na empreitada, assumi a vocação de organizador do evento algarvio e de cozinheiro das tropas. Como currículo, apresentei as credenciais de cozinheiro da patrulha coati dos escuteiros estorilistas. Ganhei logo o concurso sem oposição.
Comer fora passou pela cabeça de todos, mas nessa época a passagem do ano era sobretudo feita em hotéis, a preços altos, e o dinheiro do aluguer da casa tinha quase esgotado as reservas do grupo.
Começámos por fazer uma lista do que tínhamos de levar para a casa alugada. Ao fim de três horas de conversa, a lista dos “molhados” – vinhos, whiskeys e semelhantes, desviados da casa dos pais – era já respeitável. Mas de “secos”, tínhamos apenas considerado arroz, salsichas, atum e esparguete. Parecia curto, pelo que acrescentámos frutos secos e as passas de uva. Pão e fiambre para alguma emergência.
O gira-discos portátil também ia nas malas. E discos. Muitos discos.
Na inconsciência própria da idade, lá partimos de comboio para o nosso destino.
Recordo as dificuldades para descobrir como se abria o gás (as bilhas estavam fora de casa), como trabalhava o esquentador, onde estariam os cobertores e os aquecedores elétricos. E ainda (e sobretudo) para decifrar como se acomodariam 5 casais e um pau de cabeleira em quatro quartos e quatro camas…
Chegados a casa a minha primeira injunção como mestre do fogão foi a de requisitar uma garrafa de brandy para a cozinha. Para temperos, foi a alegação.
Havia duas casas de banho, pelo que foi decidido uma ser para homens e a outra para mulheres. Partilhava-se o sabonete e o champô. Como os rapazes tinham levado pouco deste, a alegria de descobrirem numa prateleira alta da casa de banho “masculina” um frasco do que parecia ser champô foi grande.
O problema foi quando – demasiado tarde – se chegou à conclusão de que era tinta para o cabelo… Para cabelo louro…
O que se passou a partir dessa altura não está bem claro na minha memória. Tenho recordações difusas das pobres refeições partilhadas por todos tal como se fossem banquetes celestiais, das noites brancas em que – ao som da guitarra do nosso colega Vasco – cantávamos em coro o Zé Mário Branco e o Zeca, desafinadíssimos.
A “passagem do ano” foi feita à luz das velas, sentados no chão a comer amendoins (era o que havia, e nem me perguntem pelas “passas”) e a beber Gatão geladinho por copos de plástico.
Terminámos de mãos dadas a cantar John Denver – “You feel up my senses (Annie’s song)”.
Ainda hoje, passados quase 44 anos, nada me sabe tão bem como a memória desses amendoins e desse vinho verde. E a melodia do John Denver ainda me emociona.
Vá-se lá saber porquê.