… apesar de tudo. Quem acompanha a atualidade noticiosa facilmente se vê imerso numa espiral de desânimo, condizente com o volume de problemas que todos os dias abrem telejornais. É verdade que o escrutínio democrático é, necessariamente, propenso à denúncia e à revelação incómoda, mas também tem muitas vezes o perverso efeito de nos fazer aumentar o ceticismo.
As más notícias suplantam largamente as boas, bloqueando a nossa capacidade de avaliar a realidade como, de facto, ela é. Afinal de contas, não nos esqueçamos que uma notícia é, de um modo geral, uma novidade ou acontecimento invulgar, caso contrário a banalidade retirar-lhe-ia a relevância.
Tropecei recentemente num livro que me levantou o ânimo e me levou a questionar este pessimismo crónico em que vivemos se estivermos interessados em acompanhar o que passa no mundo. Esse livro chama-se Humanidade – Uma História de Esperança, e foi escrito por Rutger Bregman. Venho aqui referi-lo por acreditar na sua relevância, nomeadamente no combate a coisas tóxicas como o extremismo.
A tese é simples, mas - e conforme afirma o autor - bastante radical: “No fundo, a maioria das pessoas é bastante digna”. O que se explica é que, ao contrário do que somos levados a pensar durante toda a vida, as pessoas tendem a agir de boa fé, com o intuito de entreajuda.
“Há um mito persistente de que os seres humanos, pela sua própria natureza, são egoístas, agressivos e depressa entram em pânico”, lê-se. Esta é uma teoria que o biólogo holandês Frans de Waal chama de teoria do verniz: “a civilização não passa de uma fina camada que estala à menor provocação”, diz o autor que sublinha que a realidade é, no entanto, o oposto. “Numa crise – quando caem bombas ou sobem as águas durante uma inundação – nós, humanos, tornamo-nos na melhor versão de nós mesmos”.
Rutger Bregman cita vários exemplos célebres de maldade – a obra O Deus das Moscas, do nobel da literatura William Golding, a experiência da prisão da Universidade de Stanford e até o Holocausto – para mostrar que as atrocidades não são, na maioria das vezes, cometidos por pura malícia, mas pela necessidade de integração, comunidade ou companheirismo. Pensa-se que se está a fazer o bem (ainda que isso aconteça em alguma dimensão que todos percebemos como estranha).
Acredito na importância desta tese (facilmente descrita como ingénua), pois o medo ou a incompreensão do outro são, a meu ver, a causa de muitos males que por esta altura já devíamos ter ultrapassado. Continuamos suscetíveis a fenómenos populistas e políticos demagógicos, que não fazem mais do que exaltar e legitimar os nossos medos mais obscenos, por não sermos ainda capazes de olhar além da superfície e pensar que a parte não pode ser tomada pelo todo.
A discriminação com base... seja no que for é, no fundo, isto: generalização apressada. Uma falácia que se estuda na disciplina de Filosofia, no ensino secundário. Não é difícil de perceber, mas sim de recordar.
Com isto regresso ao panorama noticioso atual. Quem veja notícias diariamente, na televisão em particular, dificilmente consegue depreender que algo de positivo se passa no mundo. A repetição dos problemas isolados é de tal forma exaustiva que se torna quase impossível não perder a fé na humanidade. Exemplos? Os problemas na noite, em Lisboa e no Porto, Squid Game na vida real, crise dos combustíveis - que, na verdade, é apenas a crise provocada pela dependência automóvel -, homicídio no Metro de Lisboa, etc., etc. Em suma: estivemos tanto tempo ocupados com a pandemia neste país, que o verniz estalou agora e a sociedade está a fervilhar de ansiedade e revolta.
A questão é que olhar o mundo sob os binóculos da excepção, não permite visualizar todo o quadro. Perante esta panóplia (não exaustiva) de desgraças, facilmente desvalorizamos acontecimentos aparentemente inócuos mas que dão importantes sinais de mudança social: as honras de Panteão a Aristides de Sousa Mendes ou Prémio Camões à escritora moçambicana Paulina Chiziane (escolhida por unanimidade) são bons exemplos.
Dir-me-ão que estes exemplos não são nada comparado com os problemas de subfinanciamento do SNS. Talvez... mas são sinais relevantes de mudança de mentalidade. São sinais que Portugal está a olhar para o passado de forma diferente. São sinais de que finalmente está a ser feita justiça a quem arriscou tudo para salvar vidas (não portuguesas) na Segunda Guerra Mundial. São sinais de que os críticos e críticas da literatura em língua portuguesa começam a reconhecer pela primeira vez (!) o valor de uma escritora africana.
Estas coisas podem não parecer nada, mas parecem-me mais significativas do que a espuma dos dias com que tanto alimentamos o ceticismo. São sinal de que as elites começam a dar resposta à vontade de mudança e à justiça social, e importa reparar neles para não cair na espiral de desânimo. Há que ter esperança que continuem a surgir.
Bom domingo!
-Sobre Sofia Craveiro-
Espírito esquizofrénico e indeciso que já deu a volta ao mundo sem sair do quarto. Estudou Ciências da Comunicação nesse lugar longínquo que é a Beira Interior, e fez o mestrado em Branding e Design Moda, no IADE/UBI, entre Lisboa e a Covilhã. Viveu tempos convicta a trabalhar na área da Moda até perceber que não tinha jeito nenhum. Apaixonou-se pelo jornalismo ao integrar um jornal local teimoso e insistente que a fez perceber o quanto a informação fidedigna é importante para a vida democrática. Desde essa altura descobriu também que aprecia ser In.so.len.te e que gosta de fazer perguntas para as quais não tem resposta. Encontrou o seu caminho nesta casa chamada Gerador, onde se compromete a suar a alma em cada linha escrita.