Rua acima, rua abaixo, em Cem Soldos é possível que por estes dias escutemos um concerto de jazz num palco, para depois seguirmos até sonoridades mais pop noutro, e daí desaguar num post-punk, que até pode ter contornos de funaná. Esta dinâmica – nem sempre expectável, mas quase sempre de grande descoberta - faz jus ao conceito do Bons Sons, festival que é, tal como diz no seu manifesto, “pela criação de espaço público”, para que possamos habitar a rua, todos juntos e em comunidade.
Mais do que estas danças de palcos que nos proporciona, que por sua vez é também ilustrativa de um verdadeiro tango de géneros musicais, o Bons Sons torna-nos verdadeiramente guardiões de uma aldeia, das suas gentes, dos seus costumes e, sobretudo dos seus espaços. É em reflexo desta última premissa que o nosso segundo dia de festival começou, precisamente no palco Carlos Paredes, em plena Igreja de S. Sebastião, a ver a atuação de Dada Garbeck, alter ego do vimaranense Rui Souza. Trazendo na bagagem o seu disco de estreia The Ever Coming, lançado no início deste mesmo ano, não faltaram camadas e texturas de som, num concerto amestrado por um conjunto de sintetizadores, órgão e voz.
Seguindo caminho para outras paragens, e já depois de assistirmos à descarga eléctrica dos Gator, The Alligator que apresentaram o seu primeiro disco de originais, Life is Boring, seguiu-se Sallim, no palco Giacometti. Num concerto que assentou que nem uma luva num fim tarde quente, a jovem compositora da Cafetra pôde apresentar o seu mais recente disco A ver o que acontece, de 2019, pontuado por uma pop soalheira, tendo o seu epíteto no tema “Primavera Nova”.
Se este concerto fora adequado para um fim de tarde em Cem Soldos, em pleno mês de agosto, o que dizer da atuação de Afonso Cabral? Num palco [Amália] pequeno para tanto público, o também vocalista dos You Can’t Win, Charlie Brown, apresentou, pela primeira vez ao vivo, o seu primeiro disco a solo, Morada. Acompanhado por Pedro Branco na guitarra e António Vasconcelos Dias nas teclas, o concerto foi certamente um dos momentos mais reluzentes desta 10.ª edição do Bons Sons, com destaque para a interpretação dos temas “Perto” e “Contramão”, num alinhamento onde coube ainda o tema “Anda Estragar-me Os Planos”, composto por Afonso Cabral e Francisca Cortesão, interpretada por Joana Barra Vaz no Festival da Canção, mas também por Salvador Sobral, no seu disco Paris, Lisboa.
Em declarações ao Gerador, Afonso Cabral, mostrou-se surpreendido com o feedback positivo do público, perante um disco a solo em que pela primeira vez se sentiu capaz de compor totalmente em português. “Experimentei durante muitos anos compor em português e nunca cheguei a um ponto em que dissesse que conseguia fazer um disco”, explicou, acrescentando que foi ao compor o tema “Perto”, para a cantora Cristina Branco, que sentiu esse “rastilho”. Ainda que este concerto tenha sido apenas um prenúncio do concerto de lançamento oficial, que terá lugar no Centro Cultural de Belém, a 30 de novembro, o ensaio geral está dado e esta Morada augura, decididamente, bom futuro.
Viramos o disco. Neste segundo dia, o palco Zeca Afonso acolheu dois dos encontros inusitados entre artistas que já passaram pelos Bons Sons anteriormente, a propósito dos 13 anos de existência do festival. Primeiro com os Lodo, filhos de Cem Soldos nascidos em 2013, que uniram os seus riffs vibrantes de post-rock instrumental , com a experiência de Pedro Cardoso aka Peixe, membro fundador dos Ornatos Violeta. Mais tarde, já noite dentro, foi a vez dos First Breath After Coma, embalados pelo seu novo disco NU, editado já este ano pela Omnichord Records, a juntarem-se a Noiserv, conhecido pela sua capacidade de orquestração multi-instrumentos e experiência sonora e visual de grande amplitude. Aposta ganha, a comunhão proporcionada por este combo foi responsável por uma das maiores enchentes desta 10.ª edição e, certamente um dos momentos mais inesquecíveis para os festivaleiros.
A verdade é que a noite estava destinada aos riffs intensos (por vezes contemplativos) que foram de um post-rock mais experimental para um punk rasgado com beats acelerados de funaná. Mas já lá iremos. Antes disso, e depois de vislumbrarmos o entusiasmo do público face ao fado (num festival de música portuguesa, isto não podia faltar) de Helder Moutinho, aterramos no concerto/rave dos Paraguaii. O trio de Guimarães são um exemplo crasso de como é possível juntar de forma harmoniosa, mas nem por isso menos intensa, a electrónica a um verdadeiro tsunami de riffs em modo post-punk. Há quem diga: “Estamos no Lux”. Concordamos, a festa podia continuar a noite fora.
Neste mesmo palco [António Variações], o fim desta segunda jornada de Bons Sons estava reservada (e bem) para a potência industrial de Scúru Fitchádu, projeto de Marcus Veiga, que mistura punk com sonoridades africanas. Em entrevista ao Gerador, ainda antes de subir ao palco, o músico português falou das suas vivências, com raízes na região Oeste, nas Caldas da Rainha, mas também na Margem Sul, onde irreversivelmente se aproximou do punk, do hardcore e do metal. A isso, decidiu juntar as raízes familiares, de Angola e Cabo Verde, onde encontrou a junção do qual nasceu um EP homónimo, editado em 2016.
Ainda que este segundo dia de festival estivesse mais orientado para o rock, foi na junção entre os Budda Power Blues com Maria João que se deu o momento mais singelo do dia. Conhecida pelo seu percurso no jazz e associada muitas vezes a nomes como o de Mário Laginha, a verdade é que Maria João soube reinventar-se continuamente ao longo dos anos, daí que não se estranhe o seu quase natural encaixe no blues. “Nós estamos muito ancorados no nosso hábito e aqui tive de me adaptar”, admitiu Maria João, em entrevista ao Gerador, realçando que esta foi a sua primeira experiência neste universo musical.
Certo é que o “à vontade” esteve bem patente, não só nos originais provenientes do disco Blues Experience (disco de 2017 resultante desta parceria), mas também em temas como Whole Lotta Love, original dos Led Zeppelin ou na recriação do tema de Etta James, I’d Rather Go Blind. O combo teve direito a dois encores, onde as guitarras de Budda Guedes, líder da banda, e a voz de Maria João emocionaram de tal forma que o concerto teve ovação até ao fim. “A música que nós fazemos requer um público participativo, as pessoas têm que mexer nas suas imaginações”, realçou Maria João, lamentando que exista cada vez menos o factor surpresa na música. Neste concerto esse não foi o caso e nós agradecemos. Venha mais um dia!