Terminou este domingo mais uma edição do Bons Sons. As saudades já apertam, sobretudo porque para quem escreve estas linhas foi a primeira vez (de muitas), mas não, certamente, a última. A verdade é que a experiência que o festival proporciona é dificilmente repetível. Não pela efemeridade com que hoje vivemos a maior parte das coisas, inclusive a experiência de um festival de música, mas porque no Bons Sons, os momentos são pensados com uma delicadeza própria, de quem quer viver mas também mostrar vida.
É por isso que aquilo que Cem Soldos nos transmite pode ser traduzido como ato de bravura, de resistência, de ensinamento. A prova disso está nas suas 10 edições firmadas, que, ao contrário do expectável, não surpreendem. Porque os elementos estão lá, à vista de todos, seja no sorriso e nas palavras simpáticas dos habitantes que acolhem qualquer um, seja na pulsão artística que se pode sentir bem de perto ou na incontável lista de momentos irrepetíveis (nos palcos e nas ruas) que não são indiferentes a quem por ali passa.
Dito isto, é provável que quem leia este texto pense que falo numa espécie de festival de terapia, mas não está longe da verdade. No Bons Sons esta junção entre vida e arte é harmoniosa e sim, bastante terapêutica. Quanto às contas deste último dia fazem-se essencialmente por momentos contemplativos mas também de grande vivacidade, onde não faltaram nomes mais ou menos conhecidos da música portuguesa, numa jornada onde o funaná de Dino d’Santiago se destacou, assim como a pop, com elementos de jazz e blues de Luísa Sobral.
Mas antes disso, houve tempo para outras atuações. Ainda que visivelmente mais vazio do que sábado (noite em que esgotou), foi perante uma plateia muito composta que se viu outro dos encontros inusitados, neste caso entre Joana Gama e as Sopa de Pedra.
Num início de tarde pontuado por momentos de grande pujança, com as atuações dos Galo Cant'Às Duas e de Pedro Mafama no palco Giacometti, o encontro entre a pianista e este grupo de cantares tradicionais foi, decididamente, um dos momentos de maior serenidade de todo o festival. Partindo do reportório de Fernando Lopes-Graça mas também de Amílcar Vasques Dias, as Sopa de Pedra trazem-nos uma atuação que é também performativa, muito bem acompanhada pela genialidade da bracarense Joana Gama.
Perante um silêncio quase pleno da plateia, o grupo, aqui com oito dos dez elementos, canta “Estrigadeiras do Meu Linho. Lágrima”, tema através do qual alertam para a extinção de arte do fabrico manual de linho. Segue-se o tema “Bate, Bate” de Amélia Muge, com a participação de Juan de la Fuente, na percussão, antes de terminarem com uma recriação de “Senhora da Póvoa”.
Partimos, ainda pasmados, para o palco Amália, mesmo defronte da igreja de S. Sebastião, onde já se ouve o piano de João Paulo Esteves da Silva que acompanha o saxofone de Ricardo Toscano. Em pleno fim de tarde, a luz que emana trespassa na forma dinâmica com que estes dois músicos, de gerações distintas mas ligados pela mesma paixão, interpretam um conjunto de temas com tal destreza que arrebata. É momento de encantamento, porque isto é jazz digno de uma banda sonora de filme.
A tarde corria bem, com momentos de grande virtuosismo em sucessão e que felizmente não terminavam. Que o diga o auditório natural do palco Zeca Afonso, onde depois das Sopa de Pedra com Joana Gama, acolheu a atuação de Luísa Sobral. Garantimo-vos: todos os festivais ganhavam com uma dose de boa disposição e talento assim. Para a intérprete e compositora, não há tempo a perder sobretudo se a história que pretende contar a seguir o exige. “Para ti”, “Dois Namorados” ou “Xico” já no final, são alguns dos temas mais badalados da noite. Que lufada de ar fresco.
Marcado por um cartaz plenamente eclético, é normal que mais do que noutros espaços ou festivais, se possa aqui ter oportunidade de ver certos concertos ou junções inéditas. O Bons Sons tem, por exemplo, um conjunto de concertos surpresa que nesta última tarde nos deu oportunidade de ver Júlio Pereira, um dos destaques deste último dia. O que dizer desta instituição da música portuguesa? 22 discos de autoria própria editados e mais de 80 em que participa como instrumentista, orquestrador e produtor, Júlio Pereira é atualmente um nome incontornável da música tradicional portuguesa. O mini concerto da tarde serviu para aguçar o apetite e não perdermos o concerto da noite, onde o músico trouxe o seu mais recente disco Praça do Comércio.
Neste rodopio de palcos, com alguma fadiga acumulada após quatro dias de festa, vamos até ao palco António Variações a tempo de ver Tape Junk, projeto de João Correia, que traz na bagagem o seu novo disco Couch Pop, editado este ano. As vibrações foram de um pop-rock, por vezes de aspeto californiano, de influências várias e para muitos nostálgicas. Valeu por isso e pelo supergrupo – com Benjamim nos teclados e voz, Nuno Luxas no baixo e voz, Frankie Chavez na guitarra e voz e António Vasconcelos Dias na bateria e voz – que o acompanhava.
Viemos da música tradicional portuguesa, passamos pelo pop-rock e desaguamos no funaná pujante daquele que é, sem grande margem para dúvidas, o homem do momento na música portuguesa: Dino d’Santiago. E mesmo depois de Fogo Fogo ou Scúru Fitchádu, não é que o funaná voltou a ser rei?
A enchente no palco Lopes-Graça já antecipava o delírio de danças que iria ser, também expectável face ao seu novo disco Mundu Nôbu. Em Cem Soldos, Dino foi vibrante desde o início com "Nova Lisboa", grande êxito do disco, até mesmo à reta final quando desce do seu trono para vir até meio do público e cantar à capella o tema “Sodade”, de Cesária Évora. Pelo meio, Dino dizia “hoje vendemos medo para comprar coragem”. A sagacidade do músico transparece, com uma performance que prima pelo optimismo, mesmo em tempos de alguma obscuridade. A festa foi bonita e estes quatro dias de Bons Sons foram prova mais do que suficiente de que é possível unir para criar, misturar para civilizar, em comunidade, pela arte e pela vida. Que venham (pelo menos) mais 10 edições de Bons Sons. Nós agradecemos.