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Café Central com Né Barros e Mário Micaelo

Para baixo todos os santos ajudam, por isso para cima subimos com a ajuda de…

Texto de Margarida Marques

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Para baixo todos os santos ajudam, por isso para cima subimos com a ajuda de um automóvel a rodar pela autoestrada. Nas janelas, cada vez mais e mais casas até chegarmos a Vila do Conde, que de vila só tem nome. Cidade, grande centro balnear e com uma história de fazer inveja a muitas cidades ribeirinhas, ali está ela na foz do rio Ave de onde tantos e tantos barcos partiram para o novo mundo. Que local apropriado para juntar dois artistas fundadores e promotores de cinema, teatro e dança. Fazendo as contas, contámos uma boa hora de onde a alfândega só cortou uns dez por cento do tema da conversa.

Há anos que oiço falar das Curtas de Vila do Conde e do Ballet Teatro do Porto como monumentos tanto do cinema como do teatro e da dança, no norte do país. Como menino de Lisboa, ouvi sempre estas histórias com a distância de quem nunca as viveu mas com a paixão de lhes ouvir dizer como conseguiram iniciar e continuar tão difícil desporto cultural. Nestas coisas, estes projectos são maratonistas que lutam para não cair para o lado. Não contra tudo e contra todos mas sobretudo a favor dos milhares de pessoas que procuram na Né Barros e no Mário Micaelo um caminho para a nossa identidade colectiva. Quem quer ser actor no Porto almeja a escola do Ballet Teatro, quem sonha ser realizador é nas Curtas de Vila do Conde que encontra uma das primeiras montras de exposição. Boa gente que, sem me conhecerem de lado nenhum, chegaram com aquela frontalidade que tanto invejamos nas terras da Capital. Então diz lá do que é que queres falar? Do tempo das férias grandes, claro!

Né, ainda te lembras de quando as férias tinham três meses?

“Eu lembro-me perfeitamente. Mas para além do tempo real ser bem mais longo, o sentimento que tínhamos em relação às férias era diferente. Tínhamos lugar para um tempo mais vazio, quando somos mais pequenos é isso que acontece, que é completamente o oposto do que se passa agora, pelo menos para mim. As minhas férias eram em vários sítios mas ficava principalmente em casa, no Porto, na zona das Antas. E rapidamente estamos na praia do Homem do Leme, onde eu ia muitas vezes quando era criança. Mas também no Algarve ou com alguma família em Guimarães, basicamente era este o meu percurso”.

E não ficavas com saudades da escola?

“Não, não tinha muitas saudades da escola, para ser sincera. O único problema é que eu faço anos a onze de setembro, portanto nessa altura estava sempre de férias e nunca tinha ninguém para fazer festa de aniversário. E desde aí que nunca faço festa de aniversário, deve ser por causa desse trauma de férias... e assim fiquei sem idade, que foi óptimo”.

E tu, Mário, ainda te lembras onde costumavas passar as tuas férias grandes?

“A minha família dividia-se entre Vila do Conde e Kolwezi na República Democrática do Congo, aliás nasci lá. Tínhamos duas casas, uma em África e outra aqui e até à pré-adolescência tive férias de sonho no meio de nenhures, no meio dos animais e a andar de barco naquela bacia de lagos onde nasce o rio Zaire, e quem nasce em África nunca a abandona. Depois quando regressei a África, a um outro país que não tinha nada a ver, fui a um festival pan-africano de cinema e televisão por volta de 93 em Uagadugu e o sentimento que tive naquele regresso a África foi incrível por causa dos cheiros, da temperatura, das cores, do ambiente, das gentes e ao mesmo tempo uma sensação de caos terrível porque a minha África era uma África quase de apartheid, não minto. O meu pai trabalhava numa empresa de exploração mineira, que era a companhia que nos pagava as férias de nós para lá ou dele para cá. Não tinha férias todos os anos lá, mas ano sim ano não, pelo menos, tinha. Aqui em Vila do Conde, era a nossa barraca da praia dos banhos n.º 50, foi assim sempre. A casa dos meus pais era na avenida central que dá para o mar e saíamos de casa de calções, com alguma coisa tomada do pequeno-almoço e lá íamos descalços para a praia. Éramos muito miúdos e a minha mãe tinha uma empregada que nos levava o almoço à praia e havia também a Dona Aninhas dos bolos que vinha com os cariocas e as batatas fritas e os croquetes com doce. Toda a gente da minha geração em Vila do Conde a conhecia, íamos ao banho e depois chamávamos a Dona Aninhas com os doces conventuais. Éramos muitos lá em casa, cinco irmãos mais os amigos. Aquilo era sempre uma grande confusão por isso a minha barraca era uma espécie de imã de confusão”.

E tu, Né, também tinhas muita gente nas tuas férias?

“Não. Tenho só uma irmã mas também chegámos a ter barraca. A barraca era quase uma segunda casa, pequeníssima mas há os cheiros dos sacos onde se deixava os brinquedos e as toalhas, e os vizinhos que ano após ano eram sempre os mesmos”.

E havia algum jogo que costumassem jogar na praia?

“Aqui em Vila do Conde havia uns jogos engraçados. Não sei se nas outras praias, mas aqui, por causa da construção naval, havia o jogo ao prego. Mas também se jogava à bola”.

E tu, Né, o que jogavas?

“Eu não jogava muito. Havia o prego, lembro-me perfeitamente. Badminton também jogávamos. Mais criança, havia os baldinhos e fazer castelos na areia, fazer cozinhados com as algas. No Homem do Leme havia aqueles arbustos e entre isso e as algas nós entretínhamo-nos”.

Tens filhos?

“Sim, tenho uma filha”.

E o que há de parecido nas férias dela com esse tempo?

“É diferente porque eu não faço aquele regime de ir com ela para a praia duas semanas, normalmente ela faz essa praia toda na escola, que é coisa que creio que não havia na minha altura, por isso é bastante diferente, embora façamos férias na mesma praia”.

E tu, Mário, achas que há semelhanças com esse tempo?

“Não voltei a passar grandes temporadas em Vila do Conde e os meus sobrinhos já são maiores de dezoito, por isso não sei bem. Tenho acabado por passar férias sempre longe”.

E cinema, havia?

“Havia o Cine Neiva que era um auditório que entretanto foi recuperado mas que só mantiveram a fachada. Ali era os Trinitás, os Super-homens. O último filme que eu me lembro de ver lá foi o Emmanuelle, já com vinte e picos e era tudo ao engano porque essas sessões era suposto serem pornográficas, apesar de ser um filme erótico. Mas nós soubemos que havia numa sessão à meia-noite e lá fomos. Mas a populaça que ia para ver o porno lá estava e sentiu-se defraudada e fez muito ruído”.

E tu, Né, dançavas nas férias?

“Não, não. Eu comecei na dança tinha oito anos, comecei na dança clássica. E às vezes em casa havia a necessidade das pessoas ensaiarem mas, não sei porquê, comecei a distinguir uma consciência sobre o que é mais lúdico, daquilo que pode vir a ser profissão. E nisso, mais no caminho da profissão não tinha tanta tendência de inflacionar uma dança casual ou no meio da praia a dançar para os outros. A dança começou a ter um lugar diferente, interpreto agora como algo já mais sério e não tão lúdico. Lúdico, lúdico era apanhar sol, tomar banho, brincar até tarde com amigos, mais até na rua do que em casa”.

Voltemos então ao presente com duas perguntas cruzadas entre cada uma das vossas áreas. Mário, o que achas da dança contemporânea?

“Para mim não é um território fechado em relação à expressão corporal, à graciosidade dos movimentos, etc. A dança contemporânea é muito mais um território de artes performativas que pode até não ter nada a ver. A dança tem muitas roupagens e até há um preconceito se houver muito de dança no sentido lato, já o espectáculo não tem tanta relevância em termos de contemporaneidade. Isto é um preconceito mas que não partilho de todo. Vejo muito poucos espectáculos de dança e alguns que vejo aqui em Vila do Conde no Festival Circular fico surpreendido porque alguns têm a ver com histórias da dança mas não são espectáculos de dança. Pode até ser um coreógrafo a contar uma coisa e essa coisa é encenada de determinada forma e numa relação com o público pode ter mais a ver com a relação tradicional entre o bailarino num palco e o público numa plateia. Mas não tenho um conhecimento profundo dessa área”.

E cinema sobre dança?

“Há festivais de cinema sobre dança. No nosso festival procuramos ser muito abrangentes e procuramos bom filmes e alguns já foram sobre dança, focados na dança, mas que foram escolhidos por serem interessantes para o festival na sua linguagem e não por serem focados na dança. Sei que é um território muito vasto e há muita gente que trabalha nessa área e que há coisas muito interessantes”.

Né, e o cinema contemporâneo, o que achas dele?

“Essa expressão não se costuma usar, mas eu tenho uma relação com o Festival de Curtas, já fui júri de selecção e deu-me um prazer enorme. O cinema é uma das artes que mais me toca e que mais contamina o meu trabalho criativo. A música e o cinema são duas zonas muito importantes no meu trabalho como coreógrafa. Agora, falar de cinema contemporâneo que é uma área tão vasta, dentro das pluralidades de linguagem é um universo tão grande, muito maior que o da própria dança. Apesar de a história da dança coincidir com a história do cinema em que ganha uma grande desenvoltura no século XX, embora a dança seja muito mais antiga. Mas como arte autónoma e forma de espectáculo, amadureceu muito mais tarde, por isso muitos autores associam estas duas histórias. Em relação ao cinema não tenho só um género de que goste, tanto posso gostar de ficção como documentário ou mais na lógica do cinema experimental, portanto é muito plural. Depende mais do objecto do que do formato. Como no caso da dança contemporânea, porque existem múltiplas abordagens, o Micaelo referiu-se a uma quase não dança, num formato mais coreográfico com escrita, com composição, onde o gesto continua a sobreviver ao desenho do conceito. Mas há muitas hipóteses, é a riqueza do momento artístico em que vivemos. Desde os anos cinquenta do século XX existiram grandes explosões e abriram-se novos caminhos”. Aqui o Micaelo não se conteve e entrou também nesta conversa. “Está-me a ocorrer um paralelo em relação à dança e ao movimento do corpo que é quase como na pintura. Ainda há bons pintores e há bons pintores que até estão na berra. Há prémios dados a pintores, tivemos na nossa Solar Galeria de Arte Cinemática a convite do João Pedro Rodrigues e do João Rui Guerra da Mata que fizeram uma magnífica exposição para explorarem a sua obra cinemática num contexto expositivo, convidaram o João Gabriel Pereira e é um pintor no sentido mais tradicional com pincéis e tintas e suportes, bastante premiado. Mas embora haja reconhecimento de alguns casos, são excepcionais. A pintura já não sobrevive nas nossas galerias, pelo menos nas galerias de topo. É mais a instalação, o lado performativo, outro tipo de atitude e o rasgo que essa atitude nos deixa”.

E no caso da dança?

“A dança é muito permeável a certo tipo de tendências, os criadores tendem muito a afunilar. Agora está-se a tentar romper isso e manter diferentes possibilidades dentro da dança contemporânea. Que não seja só uma não dança ou a rejeição total de um corpo virtuoso a mover-se. Pode ser virtuoso não só com a bailarina em pontas, mas virtuoso de muitas formas. Portanto eu acho que agora se começa lentamente a forçar a existir vários tipos de dança”.

Ainda falámos do grupo de quase adolescentes que criou o Ballet Teatro Contemporâneo do Porto, dos Cineclubes que ainda existem, mais do que imaginava. De um dos festivais de curtas de cinema com programação mais dinâmica do mundo. Das mudanças que aconteceram na cultura do norte do país, nas últimas décadas, da curiosidade que os públicos demonstraram e fortificaram as estruturas que agora consideramos imprescindíveis. E sobre o futuro que fará sobreviver estes projectos com a inquietação de quem os dirige, de quem os formata e de quem os programa. Com a certeza de que haveremos de continuar a ouvir falar dele e dela e sobretudo sobre o trabalho que insistem em fazer com uma energia que se renova e renova.

Este Café Central faz parte da Revista Gerador de Julho que podes comprar aqui
Entrevista por Pedro Saavedra
Fotos da Andreia Mayer

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