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Opinião de Jorge Pinto

Comboio

Nas Gargantas Soltas de hoje, Jorge Pinto leva-nos numa viagem de comboio da Bélgica a Portugal.

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Quinta-feira, 18 de agosto de 2022

São 19h12, um minuto antes do horário previsto e o comboio começa a mover-se. Lentamente, primeiro, logo acelerando até, pelo menos, aos 296 km/h a que viajo no preciso momento em que escrevo estas palavras. Saio de Bruxelas com destino a Amarante, numa viagem em comboio que me demorará mais de 24 horas. Não sei bem o que me levou a optar pelo comboio para viajar até Portugal. Não foi certamente o preço, substancialmente mais caro que uma viagem de avião, mesmo numa companhia que não de baixo custo (feitas as contas, acabou por me ficar mais barato comprar um passe inter-rail com direito a quatro dias de viagem). Não foi também a simplicidade, obrigados que somos a passar por diferentes plataformas, cada uma com as suas especificidades e complicações (não foi promessa do ano europeu do comboio um sistema europeu integrado?). Terá sido, talvez, a necessidade de alguma aventura? Recordo vagamente uma passagem d’A Náusea onde Sartre diz que uma aventura é, entre outras coisas, apanhar um comboio e sair no destino errado. Sim, no ar a imensidão infinita do horizonte parece abrir-se a todas as possibilidades de destino mas o avião levanta voo e aterra, de ponto a ponto, numa realidade perfeitamente controlada. Sobre carris, a imensidão de entroncamentos que cruzamos, os outros comboios que connosco se cruzam (e por que raios os comboios andam à esquerda e não à direita?) e as suas múltiplas paragens são um lembrar constante das nossas possibilidades. E se eu sair aqui e trocar de comboio? E se continuar para lá do destino que escolhi. Cada viagem é uma potencial aventura.

Talvez, ainda, seja o facto de ter cumprido trinta e cinco anos em abril e estar naquele limbo em que, olhando para trás, nos apercebemos do quanto deixamos por fazer mas, numa esperançosa fuga para a frente, olhamos para o futuro e convencemo-nos que o Tempo ainda é nosso e tudo se torna possibilidade. É a idade em que navegamos entre Júlio César que, algures em Hispânia, chora perante uma estátua de Alexandre o Grande pois este, com a sua então idade de 30 anos, já havia conquistado o mundo e José Saramago que revigorado pela descoberta do amor da sua vida, produz as suas melhores obras já depois dos 60 anos. Sim, julgo que foi isso. Há uns meses vi vários grupos de mochileiros em Roma, certamente a cumprir o seu inter-rail e o realizar de que já haviam passado 15 anos desde o meu próprio périplo de um mês pela Europa colocou-me no tempo. Assustei-me perante essa força que nem à morte tem medo. Ave tempus, morituri te salutant.

Revejo o percurso que tenho pela frente. Chegado a Paris, estação do Norte, tenho de apanhar um metro com destino a Paris, estação de Austerlitz. De lá tenho o comboio noturno até Narbonne, de onde seguirei diretamente até Madrid. Ironicamente, depois de atravessar a Bélgica, França e uma boa parte de Espanha, o grande problema está em chegar de Madrid a Amarante (ou a qualquer outra parte de Portugal). Da última vez que viajei de comboio até Portugal, fui de Hendaia até ao Porto a bordo do mítico Sud-Express. Corria o ano de 2007 e o comboio ainda chegava ao centro de Amarante. Hoje, em contraponto com a urgência climática e com a necessidade de uma mobilidade sustentável, pública e coletiva de qualidade, nem o Sud-Express está em funcionamento, nem a estação de Amarante ativa. Estranhos tempos estes. Chegado a Madrid optei por aquela que é a opção mais rápida e à qual já recorri no passado, embora apenas possível pela disponibilidade dos meus pais que, quero convencer-me disso, é também reflexo da vontade de estarem comigo: seguirei no comboio que vai até à Galiza, saindo em Puebla de Sanabria ao fim de 2 horas de viagem, tendo outras duas de viagem de carro até ao destino final. Postas assim as coisas, 4 horas de ponto a ponto não parece uma má opção. Pergunto-me se um serviço de autocarros desde o Norte de Portugal até Sanabria ou Zamora não poderia ser rentável. A alternativa seria apanhar mais três comboios que me levassem a Vigo, primeiro, depois ao Porto e finalmente a Vila Meã, já no concelho de Amarante, mas num esforço de organização e de tempo que me levaria muito mais horas do que aquelas que estou disposto a despender.

Venho pouco carregado. Aproveito não ter restrições para transportar líquidos para trazer algumas cervejas belgas para oferecer; trago ainda algumas gauffres, numa espécie de Bélgica concentrada onde apenas fica a faltar o chocolate, as batatas fritas e o pêche au thon (uma espécie de prato nacional alternativo, procurem e não se arrependerão). Computador, uma revista, um livro e uma muda de roupa. Merda, esqueci-me da toalha. Não faz mal.

O sol está-se a pôr e aprecio a sua beleza. Não tardaremos a chegar a Paris, menos de uma hora e meia depois de saídos de Bruxelas. Ao fundo já se veem os contornos de alguma grande cidade que não sei identificar. Um dos populosos subúrbios da capital, provavelmente. Relembro a minha curta estadia num deles, naquele que foi o meu primeiro emprego após terminar os estudos: garçon au pair. Relembro as crianças de quem tomava conta, os trajetos diários no RER para os cursos de francês no centro de Paris e os croissants que, dia após dia e sem qualquer falta, comia no regresso a casa.

Gare d’Austerlitz. Aqui espero uns 30 minutos pelo próximo comboio e por aquele que será o maior tramo da viagem. Gare d’Austerlitz, onde ainda soam os milhares de portugueses – incluindo a minha família – que aqui chegou à procura de um local seguro onde pudessem prosperar. Gare d’Austerlitz, cantada por Joe Dassin na sua homenagem aos portugueses e por José Mário Branco, também ele filho da diáspora e que aqui gravou os sons dos seus conterrâneos. Gare d’Austerlitz, tanta história agora tapada para obras. Mas a história das migrações, essa, nunca parou.

São 21h57 e estou deitado na cama do comboio noturno que me levará de Paris até Narbonne. Vou numa cabine de seis, num dos lugares do meio. Vinha com esperança de encontrar uma carruagem-bar onde me sentaria escrever estas linhas enquanto observava os outros passageiros. Observar. Há poucas coisas de que goste mais que observar viajantes, imaginar as suas vidas, para onde vão e quem têm à espera. Ler por trás dos sorrisos uma chegada desejada ou, o seu oposto, ler nas caras fúnebres uma viagem obrigatória, mas não desejada. Mas aqui não há bar. Na minha caserna viajam um casal e dois outros homens sozinhos. Um terceiro tinha aqui a cama mas por uma qualquer razão trocou de lugar, não prestei atenção. Quero um bar mas não o há. Contento-me com a água e as tâmaras que trouxe. Não posso olhar para os estados de espírito dos outros, tentarei olhar para o meu. Ainda é cedo, são 22h06, mas acho que vou tentar fechar os olhos, amanhã chego ao destino às 7h00. A cama é surpreendentemente confortável, não terei problemas em adormecer. Até amanhã.

Sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Chegámos pontualíssimos a Narbonne. 7h12, marcava o meu relógio quando coloquei os pés na plataforma. Dormi relativamente bem, embora acordando várias vezes ao longo da noite, alerta para todos os ruídos e movimentos desconhecidos. Estou neste momento sentado na estação, onde tenho umas três horas de espera até ao próximo comboio. Já fui dar um passeio pela cidade que se levantava, não me pareceu nada de especial.

Infelizmente, a estação não tem duches e a piscina municipal abre apenas às 10h. Terei de esperar até chegar a Madrid onde, se a memória não me falha, há um espaço para tomar banho dentro da estação. Na capital espanhola terei outras três horas de espera e sei bem o que farei nesse tempo, numa espécie de peregrinação que repito praticamente de cada vez que vou à cidade. Saído de Atocha, vou em direção ao Museu Rainha Sofia e ao Conservatório Superior de Música de Madrid, a alma mater da Elvira. De lá, vou subindo em direção a Lavapiés, o pulsar popular da capital e por onde me sentarei a comer alguma coisa acompanhado de um par de cañas. Subo toda a Lavapiés até Tirso de Molina, acabando, por norma, o périplo na Traficantes de Sueños, a minha livraria favorita na cidade. Vejo que está fechada durante todo o mês de agosto, irei à descoberta de alguma nova.

Faço contas, desde o início de março que não vou a Amarante e acho que é o meu recorde. Apesar de viver fora de Portugal desde 2008, raras foram as vezes em que fiquei mais de três meses sem ir a Casa. Tenho saudades.

Entramos em Espanha e dizem-nos que o uso da máscara nos transportes públicos continua a ser obrigatório no país. A carruagem, cheia mas na qual até agora apenas uma ou duas pessoas levavam a máscara na cara, apressa-se a fazê-lo. Procuram-se nas malas, nas mochilas ou nas carteiras, não sem dificuldade, esse objeto tão presente no passado recente e agora tão empurrado para o fundo da mala e das recordações.

Madrid, minha querida Madrid, cidade onde tão perfeitamente me projeto a viver. A primeira coisa que faço, ainda antes de ir dizer olá às tartarugas que fazem da estação o seu lar (coisa que acabei por esquecer, desculpem-me!) é tomar um duche. A instalação está nova e parece ter pouco uso, melhor assim. Por cinco euros tenho direito a um banho revigorante e que me devolve à vida em poucos minutos. A toalha esquecida, pois. Seco-me a uma t-shirt como posso, melhor ir húmido que o calor é bastante. Como em Lavapiés umas batatas a murro com uma espécie de molho verde. Gostei. Vou a uma livraria que descobri em janeiro deste ano e que fica nesse eixo que gosto sempre de percorrer a pé. Trago um livro sobre anarquismo explicado a crianças e um romance da catalã Mercè Rodoreda, de quem apenas li o muito bom “Tanta, tanta Guerra”. Aproveito para conhecer pessoalmente um interlocutor do twitter e tomamos juntos um café enquanto falamos de política, ciclismo, engenharia e energia. Ficaremos em contacto, certamente.

Estou já sentado no comboio no qual farei o último tramo sobre carris e que me levará da estação de Madrid Clara Campoamor até Puebla de Sanabria. São 19h27, já estamos com quase 10 minutos de atraso. A minha viagem começou há pouco mais de 24 horas. Estou feliz, repetiria a viagem. Pela hora de chegada, teremos de jantar por Bragança. Já acordei com os meus pais que iremos a Gimonde, paragem obrigatória no regresso a casa após as nossas viagens em família entre Espanha e França e onde não vamos, certamente, há mais de 15 anos. Talvez lá o tempo tenha parado e volte a encontrar a minha infância. É também essa a beleza do comboio, levar-nos a percorrer o tempo ao nosso próprio ritmo.

19/08/2022

Entre Bruxelas e Madrid.

-Sobre Jorge Pinto-

Jorge Pinto é formado em Engenharia do Ambiente (FEUP, 2010) e doutor em Filosofia Social e Política (Universidade do Minho, 2020). A nível académico, é o autor do livro A Liberdade dos Futuros - Ecorrepublicanismo para o século XXI (Tinta da China, 2021) e co-autor do livro Rendimento Básico Incondicional: Uma Defesa da Liberdade (Edições 70, 2019; vencedor do Prémio Ensaio de Filosofia 2019 da Sociedade Portuguesa de Filosofia). É co-autor das bandas desenhadas Amadeo (Saída de Emergência, 2018; Plano Nacional de Leitura), Liberdade Incondicional 2049 (Green European Journal, 2019) e Tempo (no prelo). Escreveu ainda o livro Tamem digo (Officina Noctua, 2022). Em 2014, foi um dos co-fundadores do partido LIVRE.

Texto de Jorge Pinto
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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