A ideia de renovação invade-me com a chegada do novo ano.
Este ano teve meses tão longos, como aqueles meses de verão de juventude, em que o tempo dava para tudo e ainda sobrava para nos podermos aborrecer.
Foram meses tão preenchidos de incertezas e mudanças constantes, que o tempo se dilatou. Como prisioneiros de rotinas cada vez mais solitárias, à medida que vimos as nossas liberdades e vontades serem restringidas, voltamo-nos para dentro.
Nessa impermanência desponta o tempo interno que só os humanos possuem, esse capaz de cruzar os vários tempos do universo, como Jonh Berger de forma tão poética explica:
“O tempo das galáxias nada tem em comum com o tempo da borboleta excepto que o Homem observa ambos e depois inventa um tempo para os colocar aos dois. Neste tempo, o Homem, como nenhum outro animal, pode contar a estória da criação do Mundo.”*
Este tempo de que falo talvez só se expresse no indizível dos momentos que ultrapassam o próprio tempo, que o vencem, que se imortalizam através da sua repetição involuntária em todas as espécies.
Reflectindo a ideia de Milan Kundera, “se o nosso planeta viu passar 80 bilhões de seres humanos, é pouco provável que cada um deles tenha o seu próprio repertório de gestos. Matematicamente é impensável. Ninguém duvida que não haja no mundo incomparavelmente menos gestos do que indivíduos. Isso leva-nos a uma conclusão chocante: um gesto é mais individual que um indivíduo”*.
Imagino que estaremos presos numa cadeia de ações que se repetirão enquanto existirmos como espécie e que nos superam, construindo entre elas um arco, no tempo que durar a existência humana.
Talvez em retrospetiva tenha conquistado uma certa clareza de mente durante estes tempos tão fora do tempo. Que bom é estar de fora do tempo, poder jogar com ele, não lhe dar a importância de minuto e segundo, mas sim a da urgência da existência. Esta convenção do tempo do milésimo de segundo em contra-relógio a comandar as nossas vidas deixou de me querer acorrentar, ou então deixei-me, eu, de querer acorrentar-me.
Resgatei também o gosto pelo contacto humano, ou melhor, pela qualidade de cada momento e sinto que não fui a única.
Ser refém da ditadura do tempo tinha-me numa bruma, já não sabia observar a beleza, a elegância do tal dito gesto, qualquer gesto, porque simplesmente não havia tempo…
Nos momentos em que subi ao palco, já neste novo paradigma de restrições, apercebi-me da universalidade da importância do contacto, da partilha e da comunhão. Não houve um concerto em que não tenha recebido uma ovação de pé ou, como público, participado nessa mesma ovação.
Será que melhorou a performance dos artistas ou a disponibilidade com que o público recebe a arte?
Porque a memória transfigura, eis o original:
“Lembras-te quando a madeira bateu as suas asas, como uma borboleta na primeira noite do mundo, ontem à noite.” *
Madame Butterfly, Maria Callas
Inicio, então, este novo ano com o mesmo ímpeto do primeiro bater de asas da primeira borboleta do mundo, o eterno retorno, com o espanto original.
*1 Jonh Berger in About Time
*2 Milan Kundera in A Imortalidade
*3 Jonh Berger in About Time
-Sobre Rita Maria-
Rita Maria começou a estudar música aos oito anos e desde os catorze a cantar jazz. Estudou canto lírico no Conservatório Nacional de Música de Lisboa, Jazz na Escola de Jazz do Barreiro, ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo), no Porto, e também na Berklee College of Music em Boston como aluna bolseira. Passou parte da sua vida adulta entre Portugal, Estados Unidos e Equador. Deambula entre a improvisação do Jazz e a nostalgia do Fado, o Experimentalismo, a fusão com world music e o rock, já tenho partilhado o palco com diferentes músicos e integrando variadas orquestras. É cantora da Banda Stockholm Lisboa Project, lançou, em novembro de 2016, com o guitarrista e compositor Afonso Pais o disco “Além das Horas” e é cantora da banda Saga Cega. Recebeu o Prémio de Artista do Ano, Prémios RTP/Festa do Jazz 2018. Neste momento, está a desenvolver o seu trabalho artístico com o pianista e compositor Filipe Raposo com quem já lançou o primeiro disco “Live in Oslo”, em 2018, e lançará, em finais de 2020, “The Art of Song vol.1: When Baroque Meets Jazz”. Círculo é o mais recente trio colaborativo do qual faz parte e que se estreou em disco a janeiro de 2020 com os músicos Mário Franco e Luís Figueiredo.