Algumas vezes, não posso dizer que tenham sido muitas, quando comprei discos externos (dada a crescente necessidade de salvaguardar o património digital), fiz uma piada que era assim: quem me dera morar numa casa de um tera(byte), ironizando com a minha condição de precariedade, inerente à profissão que escolhi, ‘né? Tive de explicar a piada muitas vezes. Muitas, mesmo.
Longe estaria de imaginar que a ideia de habitar um espaço online como o fazemos hoje pudesse ser uma realidade próxima.
Desde então que os meus conteúdos digitais já povoaram vários discos de vários teras, apesar de continuarmos a viver numa casa, numa rua, numa cidade, num país.
Em paradoxo permanente.
Desde 1998 que me lembro de passar tempo na Internet, de ter amigos na Internet, de comprar e trocar coisas na Internet. E desde essa altura que me lembro de me dizerem que não poderia acreditar que esse tempo passado na Internet contasse para alguma coisa, porque era tempo ficcional. Sabia lá eu se aquelas pessoas eram reais, se o que me diziam era verdade, se as conversas intensas e profundas da adolescente desajustada dos seus pares tangíveis com avatares de nicknames mesmo incríveis eram reais.
Perguntava-me, do alto do impacto real que a Internet já tinha e desempenhava na minha formação, o que seria o real? Também estava longe do Jean Baudrillard ou do Hal Foster.
E, entretanto, a Internet, bem como os dispositivos capazes de a alimentar foram evoluindo: o Napster, o Soulseek, o Livejournal, o Forumsons, o Fotolog, o Myspace, o Facebook, o Snapchat e o Instagram e todos os que conhecemos. Foi tudo evoluindo.
Mas já lá vamos.
Não esquecer nunca que sou actriz e que essa noção de tempo e real, para mim, paira sobre a minha cabeça, porque dentro do espaço ficcional de um espectáculo, claro, o que é que acontece ao real? Perguntava-me muitas vezes sobre se algum evento mesmo life-changing sucedesse durante uma récita, se poderia deixar-me vivê-lo, ou não. Se me morresse alguém, poderia ser a Joana ou era a personagem? A Joana deixava de ser Joana enquanto se estivesse a emprestar a uma personagem? Isto tudo, claro, em altura de formação, porque estamos a falar de anos como 1998, quando frequentava o grupo de teatro escolar e o Espaço do Tempo, em Montemor-O-Novo e de 2003, quando entrei para a ESTC.
A Internet, esse espaço em que o tempo deixou de ser linear, fez sempre parte da minha vida, real e ficcional, com todos os atritos inerentes, porém até há bem pouco tempo não era uma coisa palpável em nenhum aspecto. A Internet era um espaço divertido e livre, sem vigia, onde se podia estar a ser, a dizer e a fazer sem censura. Os trolls existiam em número muito inferior ao das pessoas fixes que poderíamos encontrar na Internet, e a Internet era mais fixe que o Adamastor num fim de tarde de Setembro.
Eu sou da Internet.
Ando há anos a deixar pegada digital, e sinto, porque sinto, que o meu Facebook, por exemplo, que já não utilizo a não ser como conta que a pessoa tem de ter para ter Instagram, é como uma casa abandonada.
Uma amiga que tem um negócio online uma vez resumiu a Internet de uma forma genial: eu vou dormir e tenho a loja sempre aberta — a dada altura senti isso com o meu Facebook e as opiniões e aquilo que se dizia, os threads das discussões infinitas… Até a utilização de “dizia” e não “escrevia” denota a forma como vejo a Internet. Porque aquilo que começou há pouco mais de dez anos com fotos dos pés e um like como gesto menos cheio, nos últimos anos tornou-se absolutamente significante. Aquilo que em 1998 me diziam da Internet ser uma existência satélite sem relevância no mundo tangível deixou de o ser. Em quê, quinze anos?
LOL.
Agora até se pode escrever LOL e dizer LOL que as pessoas já sabem o que é.
LOL.
No último ano, por força daquilo que se passa no mundo tangível e que mais parece uma ficção, mudámo-nos de armas e bagagens para a Internet, onde não só passamos o dia, mas também a noite e a tarde e as insónias.
A Internet, que já usávamos nos trabalhos de secretária, para preencher formulários ou fazer requisições, pagar contas e ver cenas no YouTube, passou a ser o centro.
E é sobre isso que hoje vos escrevo.
Sobre o paradoxo desta migração.
Por um lado, mudámo-nos para a Internet, por outro nunca saímos tanto à rua para fazer desporto. O corpo como templo, porém o contacto físico como o conhecemos até há um ano é vivamente desaconselhado. Já não sabemos abraçar os corpos convertidos em templos de luxúria para contemplar, mediados por imagens em feeds. Um perfil online belo como metáfora para os jardins que não temos. A prestação mensal de dez teras na cloud que encheremos com screenshots, mais potentes que uma arma de arremesso. Um perfil numa rede social cuidado como o mais belo canteiro que teríamos se tivéssemos um terraço. Os mails como as novas cartas registadas com aviso de recepção. Replicamos o estar a ser tangível, mas online.
A mediação de toda a interação social passa por vários dispositivos até se consubstanciar.
E aqui estamos.
Num portal digital, que noticia as efemérides culturais, descendentes directas dos rituais pagãos de agrupamento e tribalização, essenciais à evolução dos povos, a ler, escrever, saber e a fazer pela Internet. Foi na Internet que entregámos os prémios às pessoas que melhor Internet fazem, numa cerimónia sem precedentes, na Internet, por exemplo. É na Internet que grande parte dos Artistas da nossa geração está a difundir os seus trabalhos ou a encontrar formas de escapar ao fecho por tempo indeterminado dos espaços culturais que tomámos como garantidos até agora. Criamos lógicas de difusão de ideias, conceitos, textos, activismo, awareness, tudo na Internet. Habitámos teatros (vejamos o Estar em Casa, o trabalho tão digitalizado/ante do recém-inaugurado TBA ou o espectáculo do Cão Solteiro com realização de André Godinho para o Lu.Ca, por exemplo) de forma digital e rendemo-nos a todos os formatos que nos permitam continuar.
Porém, ainda olhamos para a Internet como local de trabalho com algum preconceito. E será porquê? Porque não queremos capitalizar o espaço que outrora foi de recreio? Será que esse espaço sem espaço, de infinitas valências não pode ser tudo ao mesmo tempo? Se nos mudámos e migrámos, o capital também o fez. Porque é que então há tanto preconceito envolvido nesta debandada?
Em Less is More, Jason Hickel apresenta uma teoria do mundo tangível pré-capitalismo que do ponto de vista da sucessão de acontecimentos se parece muito a este momento que vivemos. Com a diferença de que este tempo é amplamente mais veloz.
Nunca pensei viver no tempo mais complicado de todos, quase sem tempo para reflectir sobre ele. Sem interlocutores, sem recorrer às ferramentas tangíveis capazes de me munir da maturidade dos que em 1998 me diziam para duvidar do que acontecia da Internet, com base em experiências anteriores. E se deixar de haver experiências?
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Joana Barrios-
Joana Barrios divide-se entre o teatro, a televisão, a internet, e cozinhas. É atriz formada pela ESTC, fez uma pós-graduação em Crítica de Cinema e Música Pop e passou uma temporada com a coreógrafa Anna Sánchez, em Barcelona. Começou a trabalhar com a sua companhia fetiche, o Teatro Praga, em 2008, muito por causa de uma T-shirt de Sonic Youth. Não parou e o romance dura até hoje. Foi a porteira de discoteca mais simpática de sempre, no Lux/Frágil. Escreve. Imenso. Partilha as suas opiniões sobre Moda em TRASHÉDIA.com há já uma década. É co-autora e apresentadora de ARMÁRIO, a série de documentários sobre Moda emitida na RTP2, produzida por Maria João Mayer e vencedora do prémio de Melhor Programa de Entretenimento da Sociedade Portuguesa de Autores. Colabora com o Canal Q em programas como Super Swing ou Princesas e Doentes, sempre ao lado de André e. Teodósio. Em paralelo à sua carreira como autora e actriz, em 2017 publicou NHOM NHOM, um livro de receitas para crianças, porque crescer dentro da cozinha de um restaurante deixa óptimas mazelas para a vida, e em 2019 assumiu a liderança da cozinha da casa mais arejada do país, a da Cristina [Ferreira]. Em 2020 chegou O DA JOANA, um livro de receitas para um público mais abrangente. Com a pandemia de Covid-19 actividade performativa passou toda a ser bastante digital, mas haveremos de voltar aos palcos e assim!