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Entrevista a Xicassa: Aguarelas da alma

Durante seis meses, Xicassa sentou-se todos os dias no mesmo banco à beira do Douro,…

Texto de Redação

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Durante seis meses, Xicassa sentou-se todos os dias no mesmo banco à beira do Douro, propondo retratos, embarcando numa das maiores viagens da sua vida.

Há uns meses, hospedei-a em minha casa: uma tenda pequenina e cansada, numa floresta nos Alpes suíços, de onde descíamos ao alvorecer para trabalhar na vindima. Agora, é ela que me acolhe na casinha em que esculpiu o seu lar, num recanto da margem sul do Douro.

Francisca Vilaça é de Baião, estudou em Amarante, antes de seguir Belas-Artes. "Navegadora cósmica", viajou pela península e pela América do Sul, até fazer do Porto o seu portal. Ao sabor do sagrado café matinal, a Xicassa fala-me da vida e de retratos a aguarela. Durante seis meses, todos os dias, sentou-se no mesmo banco à beira do Douro, para embarcar numa das maiores viagens da sua vida.

Gerador – O que é que te levou à Ribeira para pintar retratos de quem passa?

Xicassa – Foi o fim de um relacionamento. Como não sabia o que fazer, decidi passar o dia todo sentada num banco, na Ribeira, sem fazer nada. Simplesmente olhar o rio e estar ali. Só a sentir a cena. A chorar. A rir. E pensei: “Ao mesmo tempo que estou aqui, a limpar, a sentir esta dor – que faz parte do luto –, e já que não sei o que fazer, porque estou completamente perdida, vou fazer retratos. Talvez consiga até fazer dinheiro.”

G. – Fazia-te falta esse dinheiro?

X. - Sem dúvida! Tinha de comer, pagar a renda. Tive mesmo de juntar os dois processos. Fui buscar força exatamente a essa dor. Muitas vezes é das mortes (não físicas, mas mortes de algo) que vêm as maiores forças, não é?

G. – Então sentavas-te e propunhas retratos?

X. – Comecei a levar um banco e os retratos que tinha feito a alguns amigos. Ficava sentada virada para o rio, sempre no mesmo banco. E as pessoas vinham e perguntavam. Sentavam-se e eu retratava. Foram seis meses, todos os dias, o dia inteiro. E foi extremamente espiritual. Uma viagem. Sem sair do lugar. Estava ali num estado de meditação, e, de repente, alguém vem e senta-se à tua frente. E dá mesmo a sensação de que é uma resposta a alguma pergunta. É sempre um ponto de encontro entre almas que buscam algo. Porque estamos sempre em comunicação, os nossos corpos estão sempre a comunicar uns com os outros. Não digo à pessoa que fique calada a olhar para mim, como é suposto. Deixo que se sinta livre. Às vezes surgia uma conversa, a minha mente ficava ocupada nisso, mas a minha mão ia sozinha. O processo de saber olhar, captar a pessoa. Olhares para o papel e veres a cara no papel e só passares por cima… é magnífico. É engraçado ver como o desenho, as cores, mudam conforme o estado da pessoa. Na Faculdade de Belas-Artes, havia problemas com os professores porque eu trocava as cores. Pediam-me para pintar uma pedra e pintava de amarelo, ou azul, ou verde. Não pintava as coisas como são, mas como as sentia. Intuitivo. Poder fazer as coisas como eu sou e como eu sinto é a experiência. Em todos os planos. Comecei a ficar cada vez melhor, a fazer os desenhos em 10 minutos, com cor. Poder fazer uma coisa tão complexa – é muito mais do que um retrato, para mim – em 10 minutos é fascinante.

G. – Tens ideias de quantas caras pintaste?

X. – Sim. 3250, mais ou menos. Muitas caras. Muitas energias. Gente de todo o mundo. Crianças também. Era sempre diferente a cultura, o tipo de conversa e de postura, a maneira como olham e sentem a arte... Foi como viajar. Eu não estive no Porto, estive a viajar! E ser uma coisa repetitiva que não é repetitiva, porque quando te aprofundas numa coisa de que realmente gostas vais ver que ela não tem fundo. É um transe.

G. – Dessas mais de 3000 caras, há alguma que te salte à memória?

X. – (Suspiro… Risos…) Muitas! Uma mesmo especial foi um senhor indiano, mais velho, com uma beleza inacreditável, uma gentileza, uma sensibilidade, uma pureza… Eu pintava todo o dia, depois chegava a noite e acendiam os candeeiros. Ele sentou-se, já noite, e, curiosamente, apagaram-se as luzes. E eu não conseguia ver. Foi um desafio, pintar sem ver. Quase uma cena de fé. No fim, olhei e lá estava ele. E caíram-me do pincel duas gotas de água em cima da pintura dele, a sorrir, em paz. Como duas lágrimas de felicidade.

G. – Como era a tua rotina?

X. – Foi um processo realmente contínuo. Não chegava a casa e desconectava dele. Ou “Olha, vou trabalhar”, e estou a trabalhar. Era tudo uma linha só, não havia separação. Sentia que tinha de unir todas as partes do meu dia com isso. Interessava-me pintar a pessoa sem estar a pensar noutra coisa. Mas se estava, fazia parte vivenciá-lo, para chegar ao aqui e agora. Essa era a mensagem que eu queria passar às pessoas: aqui e agora. Isso é eterno. Não há mais nada. E eu queria estar nesse registo. Nessa meditação. Por vezes, chegava a casa, estudava sobre alguma temática que me interessava, para no dia a seguir experienciar na Ribeira. Chegava ao banco, sentava-me. E aparecia alguém que, de repente, me fala sobre isso. A vida é mágica. E isso foi uma prova. A arte foi o pretexto para estudar e abrir-me a esta experiência de autoempoderamento, de escolher o que queremos viver. É muito fácil entrar noutras coisas. Mas se calhar escolho não vivenciar ódio ou agressão. Sei que existe, mas não quero. Escolho vivenciar amor e harmonia.

G. – A dor que desencadeou este processo também ficou impressa neste trabalho?

X. – Sim. Eu via-a muitas vezes, a pessoa com quem estive. Ela memória, ela energia. Porque é preciso tempo, para limpar, para fazer o luto. Respeitar os ciclos. São leis naturais. Vi-a muitas vezes sentar-se à minha frente. E era uma cena de perdoar, aceitar. E de ouvir algumas respostas. Eram normalmente pessoas que vinham falar de alguma coisa muito específica. Podemos dizer “OK, as coisas são inertes, nada me diz respeito.” Ou podemo-nos responsabilizar e dizer “Não! Tudo o que vier à minha beira sou eu, é o universo a falar comigo.” Quando a gente tem essa entrega, começamos a estar atentos aos sinais, e as peças juntam-se. Há um fio condutor. É a vida da nossa vida.

G. – Ao fim destes meses, que transformação sentiste em ti?

X. – Libertação. Paz. E re-conhecimento. Este contacto com todas estas pessoas foi um re-encontro em todos os meus planos. Um re-alinhamento da minha energia. Num relacionamento, pode acontecer perder-se um bocado o fio à meada. Aquilo foi a minha terapia. No plano terreno foi: eu sou capaz! Capaz de fazer dinheiro, de me sustentar, de fazer algo bom que me respeite a mim e respeite o outro. Às vezes, quando estava a desenhar tinha muitos julgamentos de mim mesma: “Fizeste isto mal”, “E se a pessoa não gosta?” A tal voz. Tinha de escutar e falar com ela: “Escuta! Isto é o que tiver de ser, e o que tiver de ser vai ser perfeito.” Portanto foi um ato de compaixão, um caminho de coração. E, para além disso, foi consciencializar-me do plano superior, onde tudo está certo, tudo é o que tem de ser. Essa pessoa chegou até aqui. Isto faz parte do processo. E viver é maravilhoso. Mais tarde, comecei a pegar nessa energia de amor e tentar expandi-la. Quando estava a pintar, fazia a prática de ver aquilo como se estivesse desde fora. E conectava-me por exemplo a um músico – estavam sempre ao meu lado músicos –, à energia dessa pessoa. E expandia ainda mais, para as pessoas que estavam no café, e, de repente, reparava como tudo está conectado. É um processo que começa dentro de mim. A energia sobe e expande. Para não falar de que, quando ninguém pára, é uma técnica boa para atrair pessoas (risos). Somos realmente imensamente poderosos.

G. - Como eram as reações das pessoas?

X. - Tive reações muito boas, como: “Já viajei muito pelo mundo e isto é original.” Como também reações mais holísticas: “Uau, realmente sinto-me assim nesta energia!”, “É a minha cor favorita!”, “És capaz de ver a energia das pessoas, e limpá-la. Isto é cura.”, “Pintas com as cores da alma.” Pessoas a falarem da vida delas, chorarem, rirem. Para elas, eu era psicóloga. Assim como visões mais críticas: “A minha cara não ficou parecida.” Nessas situações, defendia a causa de que a arte não tem limites. “Para isso, o melhor seria fazer uma selfie (risos). O importante não é a cara em si. O que importa é a partilha, é este encontro.” Senti-me assim mais abrangente, feliz. A maior parte das pessoas tinha uma sensibilidade imensa, muita consciência e abertura, e via aquilo realmente como um registo do momento que estávamos a criar. Não sou só eu que estou a pintar a pessoa, a pessoa está a pintar-se a ela própria. E leva uma recordação disso. Uma obra de arte. Para não falar da performance que pode ser uma pessoa sentar-se à tua frente, sem te conhecer, e ficar a ser observada e contemplada. Não é qualquer pessoa que o faz. Demonstra uma entrega. Da mesma forma que eu ouvia vozes sobre o meu trabalho, também essas pessoas ouvem. “Será que estou bem? E o meu cabelo, está bem?” É um intercâmbio incrível. Vários dias, experimentei esta dinâmica: a pessoa sentava-se, eu escolhia uma música no mp3, e púnhamo-nos, as duas, a ouvir. Influenciava logo a energia! Criava-se uma bolha e uma cumplicidade. Era muito mais fácil conectar. Mas o desafio era sem dúvida fazê-lo sem nada. Conseguir estar em meditação e aberta, mesmo com pessoas a passar, vozes, carros, pim!, tac! O engraçado é que, quando isso é possível, começa a harmonizar-se o exterior também.

G. – Sentada ali, como olhas para o impacto que o turismo está a ter no Porto?

X. – Para os artistas de rua, é muito bom. É o turista que dá dinheiro. O lado negativo é realmente o estar a expulsar as pessoas para fora do próprio lugar. Porque ganha-se muito mal, para o pessoal que trabalha nos comércios e essas coisas. Mas é o livre-arbítrio. As pessoas fazem o que quiserem da vida. O turismo é inevitável, é o movimento das massas. A máquina, a energia e o dinheiro têm de se mover. Estou contente que haja turismo. Traz movimento, traz novas mentalidades. É bom chegar cultura. Cultura é consciência. Aporta paz às pessoas. Num lugar onde há cultura, há mentes abertas.

G. – Mas há esse lado de rendas a aumentar, pessoas a sair e espaços associativos, como o Gato Vadio, que fecham…

X. – Sim. Mas onde as coisas vão caindo muito para um lado, também começa a haver muito outro lado, que vai ganhando resistência – faz parte do equilíbrio. Começa a haver mais espaços alternativos, abertos a uma nova consciência, Casa Bô, Rés da Rua , Compasso, Rosa Imunda… E no meu ponto de vista não é nada mau que se comece a ir para fora. Não existe só a cidade, existem os campos, as montanhas. Para mim, a cidade é para vir estudar e ganhar dinheiro (risos).

 

G. – O que é o Porto para ti?

X. – Acho engraçadíssimo que a escritora do Harry Potter se tenha inspirado no Porto para escrever. Realmente há essa magia. Na arquitetura, na história, na própria energia da cidade. E temos um rio que passa no meio. E que divide dois lados. Mas ainda bem que temos pontes!

G. – Que projetos e vontades te animam neste momento?

X. – Faço coaching criativo e intuitivo. E estou envolvida num festival como coordenadora da equipa de macacos artistas (risos). Quero estar conectada a uma rede de sincronia. O HitchFest é uma por si só.

G. – Às vezes pintas, cantas, constróis coisas, fazes filmes. Fala-me dessa dança entre um meio e outro.

X. – Eu sou uma dessas pessoas: queremos fazer tudo, sentimos tudo, queremos materializar tudo, mas não sabemos que ferramentas usar, porque queremos todas. E, de repente, não se consegue fazer nada. Isto tem a ver principalmente com o coração. “Calma, vamos falar ok? Como é que vamos fazer isto?” Essa conversa interior, que trabalhei nos retratos, é muito importante. Se não tivesse tido essa conversa comigo vezes sem conta, tinha desistido. Tinha dito: “Eu não sei fazer retratos. As pessoas não vão gostar.” E começaria a atrair essas pessoas. “Olha, desenhaste o nariz torto!”, “Este olho é maior que o outro.” Eu própria estou a criar o meu bloqueio. E isso acontece muitas vezes. Enquanto uma pessoa não souber ter uma conversa honesta consigo própria. “Ai, eu ouço vozes!” Pois ouves! Claro que ouves, e ainda bem que ouves. Mas tens de falar com elas! Não são vozes inertes. São da tua mãe, do teu pai, da tua tia, do vizinho… “Calma! Vocês todos vão sentar-se aqui, numa assembleia. E vamos falar! Eu não sou perfeita, primeiro ponto. Segundo, sou um ser humano. Terceiro, eu vou errar. Quarto, eu não errei. Quinto, eu estou aqui, viva, e mereço experimentar. Não há bom nem mau – há uma experiência. E escolho vivê-la.” Esse é o caminho do coração. O que faz muitas vezes as pessoas desistirem é não terem uma conversa de amor-próprio consigo mesmas. Falando com amigos descobrimos uma solução para esse problema de como é que a gente pode fazer música, desenho, workshops, tudo, sem dispersar. Arranjando um ponto comum! Todas estas coisas têm de ter um ponto em comum. Estou a desenhar um caracol. Mas, de repente, quero ir para a música. “Mas não acabei o caracol.” Então vou para a música a sentir-me mal porque não acabei o que comecei. Isto é um erro, logo. Primeiro, nada começa e nada acaba. Segundo, não deves separar um processo do outro. E como fazer esse processo contigo mesmo, de que o desenho e a música têm algo em comum? Pois, faço uma música relacionada com o caracol! E, de repente, por algum motivo, apetece-me fazer uma escultura. Mas a música, não a acabei, nem sequer a pintura… Como é que dou continuidade ao processo? Faço uma espiral! Vou encontrar o ponto em comum em todas as áreas, a conexão. Neste momento, estou com um projeto de vídeo. Só vou perceber o que fiz quando o acabar, é uma descoberta. O vídeo é sobre paciência. E tu tens muita…!

*O autor segue a nova ortografia, excetuando o caso da forma verbal pára em que, propositadamente, mantém o acento.

Entrevista de Francisco Colaço Pedro
Fotografias disponíveis na página de Instagram de Xicassa

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