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Delfim Ruas

Delfim Ruas: “É isto que me fascina no estudo do passado: não está necessariamente escrito em pedra”. Uma entrevista a Delfim Ruas, autor da obra gráfica Coração das Trevas, originalmente publicada na Revista Gerador 38, que podes descobrir também em baixo.

Texto de Gerador

Fotografia da cortesia de Tiago Pinho

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Quando pensamos no trabalho do Delfim Ruas, é difícil dissociar o seu trabalho como ilustrador da presença da investigação histórica. Por isso, e por admirarmos o seu traço, foi ao Delfim que endereçámos o convite para ser o autor da obra gráfica desta edição da Revista.

Delfim Ruas nasceu em 1989, em Viseu, quatro dias antes da queda de um muro. Licenciou-se em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto e é mestre em Ilustração pelo Instituto Superior de Educação e Ciências (ISEC) de Lisboa. Trabalha como ilustrador e concept artist e expõe regularmente, tanto a título individual como coletivo. Colabora com editoras nacionais como a Leya ou a Porto Editora, revistas como a Visão História e fez pósteres para cinema. Em 2019, ganhou o primeiro prémio do 12.º Encontro Internacional de Ilustração de S. João da Madeira. Ilustrou ainda o título Carolina Beatriz Ângelo. Um Pequeno Grande Gesto de Coragem, da colecção Grandes Vidas Portuguesas.

Dando-lhe liberdade para criar a obra sobre o tema que desejasse, presenteou-nos com Coração das Trevas, uma obra em que reflete sobre as imagens mais esquecidas do colonialismo e que apresenta como:

Coração das Trevas


“Os navios traziam não só exploradores como também uma torrente de aço e fogo. Tratava-se dos instrumentos que seriam utilizados para subjugar, entre tantos outros, as civilizações asteca e inca do então denominado Novo Mundo. Começava assim, por parte dos europeus, um longo processo de gradual conquista colonial. Conquista essa que abarcaria vastas partes do globo terrestre e com as mais variadas consequências.

Viena, 1882. Foi na antiga capital do Império Austro-Húngaro que, segundo um certo inventor de origem norte-americana, este deu de caras com um seu compatriota. Tratava-se de um conhecido que lhe confidenciou que, caso quisesse fazer fortuna, teria de inventar algo que permitisse aos europeus «matarem-se entre si com maior facilidade».

A solução providenciada por Hiram Maxim, o inventor em questão, não poderia ter sido mais literal: a sua arma, Maxim Gun, podia disparar até 600 balas, de forma automática e ininterrupta, por minuto! Foi através dos princípios mecânicos que regem esta máquina infernal que foram sendo desenvolvidas muitas das armas de disparo automático que surgiram desde então. Fora aberta uma verdadeira caixa de Pandora.

A metralhadora, contudo, não teria a sua estreia por terras europeias. Foi, de facto, utilizada por europeus, sim, com devastadora eficácia e pela primeira vez… em Omdurman, no Sudão, em África e contra africanos. Foi neste mundo traçado a régua e esquadro, nas capitais europeias, que aço e pólvora foram impondo a vontade dos colonizadores e da sua «missão civilizadora». O século xx encarregar-se-ia de povoar este universo de fantasmas e trevas.

Após os processos de descolonização, o que ainda permanece? Apenas os bronzes das estátuas dos descobridores, militares e governadores coloniais de há muito? Ou serão, afinal, as raízes de tudo isto mais profundas, complexas e duradouras do que os monumentos erguidos para as celebrar?”

Descobre a obra aqui:

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Quisemos saber mais sobre a investigação por detrás das ilustrações que criou para esta obra e partilhamos contigo, de seguida, a breve entrevista que lhe fizemos.

Gerador(G.) – Foste o autor da obra gráfica desta Revista Gerador. Quando te lançámos o desafio de ocupares estas páginas da Revista, o que te levou a escolher ilustrar “a vontade dos colonizadores e da sua ‘missão civilizadora’”?


Delfim Ruas (D. R.) – Pergunto-me muitas vezes sobre o seguinte: se fechássemos os olhos, quais seriam as primeiras imagens, sobre a experiência colonial europeia, que nos surgiriam? Não seriam as de postais ilustrados com as largas avenidas das capitais provinciais destes impérios, os posters litográficos das publicidades remetentes a bens de consumo (como chocolate e o café) ou as primeiras linhas aéreas, associadas a um certo imaginário de progresso colonial?

Parece-me que subsiste ainda um certo Out of Africa que teima em não querer dar lugar a uma ideia mais ampla, informada e complexa sobre as colonizações. Não é tão fácil encontrarmos e confrontarmo-nos com imagens documentais que nos remetem para o trabalho forçado, a segregação ou os sistemáticos abusos perpetuados por estes sistemas. É impossível dissociá-las da experiência colonial enquanto todo. Foi pelas imagens mais esquecidas da tal «missão civilizadora» que procurei evocar a questão do progresso tecnológico da revolução industrial que foi ao auxílio dos colonizadores: também na forma de armamento de ponta que, tantas vezes, permitiu pôr-se, em cheque, populações inteiras.

G. – Nesta obra, contas-nos uma pequena narrativa visual a três tempos. Podes falar-nos um pouco mais do que te levou a selecioná-los em específico?


D. R. – Cada uma das três ilustrações congrega uma miscelânea de evocações. A primeira ilustração foi inspirada, tanto ao nível composicional, como conceptual, por uma das cenas do filme Apocalypse Now, de Francis F. Copolla. E esta evocação não é nada inocente, na medida em que o filme é amplamente baseado no Heart of Darkness de Conrad! A imagem do capitão Willard com metade do seu rosto submerso é algo que me assombra. Apelou-me retratar o lado quase furtivo da sua postura semissubmersa. Porque não pegar em D. Henrique, o Infante, o Navegador, e aplicar-lhe esse mesmo princípio furtivo? Isto, para não falar das embarcações que povoam não só o nosso imaginário, relacionado com o Vietname, como também na forma como os europeus se deslocavam por entre os deltas africanos. Aqui, lembrei-me de outro filme: The Queen of Africa, do John Huston, em que a ação se centra num pequeno vapor. O cinema é, certamente, outra ferramenta poderosa que pode gerar clichês ou quebrar equívocos sobre o colonialismo.

Para o segundo spread, lembrei-me de dois homens polémicos: Hernando Cortez e Francisco Pizarro, ambos responsáveis pela queda, respetivamente, dos Impérios Asteca e Inca, isto no início do século XVI. Pensei, primeiramente, em fazer os retratos de alguns destes intervenientes. Cheguei à conclusão, porém, de que poderia empregar algo mais impactante através de um símbolo deste tipo de expansão mais agressiva: o aço e a utilização de armas, como as que eram produzidas em Toledo, e que acompanharam os “conquistadores” para onde quer que estes fossem.

A questão tecnológica, já previamente referida, também é evocada no terceiro conjunto em que me foco na reta final dos impérios. A par da metralhadora, arma fulcral nos arsenais europeus, pensei igualmente no helicóptero. Este último estará largamente presente em quase todas as guerras de descolonização do pós Segunda Guerra Mundial: quer tenham sido na Malásia, no Vietname, na Argélia ou na antiga África portuguesa.

G. – Nota-se uma influência do trabalho do escritor anglo-polonês Joseph Conrad, que aliás já mencionaste, nesta tua obra, desde logo pelo título que lhe dás, que é também o título de um dos livros que escreveu — Coração das Trevas — e, talvez, até na escolha de retratares três tempos, quando Conrad, antes de ver o livro publicado, o partilhou com o público através de uma série, dividida em três partes, na Blackwood Edinburgh Magazine. De que forma procuraste trazer, para estas tuas ilustrações, a exposição da relação profunda e cruel entre colonizadores e colonizados, em África, que Conrad retrata no seu livro?


D. R. – Sabia que Heart of Darkness, de Joseph Conrad, tinha sido inicialmente seriado, mas desconhecia que tinha sido feito em três partes. Mesmo assim, não deixa de ser curiosa essa semelhança e a comparação que estabeleceste com os três tempos. Só comprova que a leitura das ilustrações pode, e deve ter uma multiplicidade de leituras.

Desejava muito abrir a série ilustrada, que desenvolvi, com África. Tendo em conta que se trata de um continente com uma narrativa tão marcada, no que respeita ao fenómeno colonial, acaba por ser, a meu ver, um tópico incontornável. Embora o mote para o título venha da obra de Conrad, acabei por me focar numa amplitude cronológica que vai para além da reta final do século xix.

É verdadeiramente uma narrativa que se inicia com os portugueses e com as primeiras explorações marítimas que decorreram durante o século XV. Seguiu-se a respetiva implementação de uma primeira rede de entrepostos, comerciais e militares, na costa africana. E serão estes os embriões não só das futuras colónias, como também da extensa malha do comércio escravo transatlântico. Iremos ver este modelo a ser replicado por outros colonizadores. Esta triangulação trará desmedida riqueza para a Europa e indescritível sofrimento para milhões de seres humanos.

Não deixa de ser curioso que o pano cai igualmente com Portugal e com as suas descolonizações. Quando penso nesta parte, penso muito em toda a estatuária, que estava em lugares públicos e que, em muitos casos, acabou por ser destruída, retirada ou simplesmente esquecida, ganhando assim novos contornos e significados. Foi neste poder dos ícones, e da sua constante transformação, a que recorri metaforicamente para trazer parte da relação entre colonizador e colonizado: a mesma figura retratada, quer em estátua ou na forma de outro objeto, nunca teve um único sentido ou leitura. Houve um poder que a colocou e celebrou e a descolonização trataria de lhe(s) dar novos sentidos.

G. – Para além de ilustrador, tens presente a influência da investigação histórica. Na tua opinião, de que forma deveríamos olhar, hoje, inclusive da perspetiva como se conta a História, para algumas questões que trazes como a existência de estátuas que exaltam colonizadores, a própria designação de período dos Descobrimentos, a noção de descobridor, ou até a premissa de que os colonizadores serviam uma “missão civilizadora”?


D. R. – Passo uma boa parte do meu tempo em processo de investigação, pois é-me de primeira importância ser capaz de me contextualizar e de me situar e situar-nos. Não se trata de algo estanque, a história, pois há sempre informação nova a surgir que nos deve levar a rever conteúdos e posturas com regularidade. Tudo isto parece-me contribuir para uma experiência fundamentalmente mais enriquecedora. É isto que me fascina no estudo do passado: não está necessariamente escrito em pedra.

Dei por mim a pensar em alguns eventos históricos relacionados com a destruição de estatuária situada em lugares públicos. Episódios como a decapitação de estátuas durante a Revolução Francesa ou a detonação dos Budas de Bamiyan, em 2001,

pelo regime Taliban no Afeganistão. Este último permanece como um dos acontecimentos mais impactantes que presenciei através da televisão. À época não tinha a completa noção do seu significado, mas tratava-se de uma imagem desconcertante, "talvez seja esse o objetivo", refleti.

Em 2003, lembro-me também da queda da estátua de Saddam Hussein em Bagdad, novamente vista através da TV. Não deixa de ser curioso, como a cabeça dessa estátua foi pontapeada, da mesma forma como a da estátua de Estaline, que foi destruída durante a Revolução Húngara de 1956, tratando-se de um ato de leitura verdadeiramente intemporal.

Estes eventos passados vêm de inúmeros e diferentes contextos que não são necessariamente (ou inevitavelmente) comparáveis entre si. No entanto, é inegável o poder transversal das imagens, da sua produção e destruição. Nada permanece intocável, e isso é igualmente poderoso. Parece-me que o perigo reside sempre quando uma sociedade deixa de se questionar sobre o que deseja recordar nas nossas praças e avenidas, correndo assim o risco de estagnar e de perder a capacidade de promover debates e discussões sobre o que se deveria colocar em praça pública. Em suma: quais são os valores que estamos dispostos a defender, a honrar e a promover?

No caso português, julgo que ainda há muito a fazer, na forma de reflexão e não só. É necessária uma atuação que vá para lá da constante barragem de glorificação associada à nossa expansão marítima, situação que não passa só pelas nossas ruas. Embora não seja historiador, pessoalmente, sempre tive muitas reservas quanto à utilização da designação de “descobrimentos”, pois esta parece-me tender a anular uma narrativa mais ampla. É quase como se tivéssemos entrado em territórios desprovidos de qualquer tipo de mapeamento prévio, culturas autóctones ou qualquer vestígio de História anterior… até ao momento da chegada de uma qualquer caravela na linha de horizonte! Era, certamente, uma “descoberta” do ponto de vista de quem chegava, mas não necessariamente de quem encontrávamos. Isto, para lá da óbvia e inédita confrontação entre pessoas e culturas, que ainda não se tinham cruzado previamente. Sei que, ainda hoje, há um avultado e interessante debate a decorrer em torno desta questão e é urgente que este aconteça. “Descobrir” remete-me muito para um canto da narrativa e fascinou-me sempre ter mais do que um ponto de vista do qual me possa socorrer. Penso que podemos sempre contextualizar melhor, ser mais abrangentes na análise do espaço e da cronologia e exigir rigor, isto para lá de mitificações. A História não acontece no vácuo e há sempre o outro e o seu ponto de vista.

A obra gráfica foi originalmente publicada na Revista Gerador 38, que podes comprar aqui:

Texto de Andreia Monteiro

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