Afinal, que relação tem (e deve ter) o ser humano com a superfície terrestre? E o pensamento superficial é mesmo inferior a um que privilegie a profundidade? Estas são algumas das questões que servem de motor e inspiração à Index, uma bienal que se dedica ao diálogo entre a arte e a tecnologia e que, nesta primeira edição, destaca a ideia de superfície como grande tema.
Numa conversa por Zoom, Luís Fernandes, diretor artístico deste evento, e Mariana Pestana, uma das curadoras, explicam como surgiu esta bienal, que decorrerá até domingo, dia 22, em Braga, e revelam que experiência esperam que os visitantes levam desta que é uma mostra, acima de tudo, “de questionamento”.
Gerador (G.) – O Index é uma bienal que junta a arte à tecnologia. Porque é que é importante analisar e celebrar essa relação?
Luís Fernandes (L. F.) – Toda a arte tem uma dimensão tecnológica, [uma vez que] para a concretizar utilizamos algum tipo de utensílio, mas aquilo a que nos referimos, neste caso, tem que ver até com uma categoria disciplinar que foi aparecendo em meados do século passado: a new media art. [Essa categoria] centra-se naquilo que são as tecnologias modernas ou contemporâneas e, a partir dessas tecnologias, é explorada a prática artística. Já é uma prática que tem alguma história. Esta bienal surge também porque Braga privilegia essa ênfase programática, [na medida em que] é uma cidade criativa da UNESCO no domínio da media art. Portanto, este é um momento que assinala alguma da prática artística que achamos interessante neste diálogo entre a prática artística e a tecnologia.
Mariana Pestana (M. P.) – No contexto desta bienal, nesta edição que trata do tema da superfície, há a vontade de [fazer uma] reflexão crítica sobre as matérias que a tecnologia usa para se desenvolver, como o lítio e o cobre, que são extraídas da superfície da Terra. Há uma vontade de fazer essa reflexão através de uma série de trabalhos que tratam os sistemas da extração deste tipo de minerais e que nos fazem pensar, por um lado, sobre como no contexto da crise climática estamos a relacionarmo-nos com os territórios da superfície da Terra e, por outro, sobre como podemos reimaginar essa relação com os territórios e os diversos materiais e agentes que coabitam connosco. Além disso, há tecnologias emergentes – por exemplo, a realidade virtual ou realidade aumentada –, que se relacionam com alguns paradigmas filosóficos, como o descentramento do ser humano relativamente a outras espécies. Essas tecnologias permitem-nos precisamente sair do nosso centro e ver o mundo de outras perspetivas. Portanto, também é interessante pensar que a tecnologia nos permite olhar para o mundo de outras formas.
G. – Referiu que a superfície é o mote desta edição. Como é que chegaram a este tema?
L. F. – Originalmente, [a escolha do tema] partiu de uma ideia que é a polarização entre o campo das artes e o campo da tecnologia. A tecnologia, enquanto mote para a prática artística ou para obras artísticas, tende a não ser muito aceite ou validada pelo campo da arte contemporânea e, frequentemente, é até tida como superficial. Achamos que era interessante [abordar] essa ideia de superficialidade. Rapidamente, passamos de superficialidade a esta noção de superfície, que é explorada por diferentes filósofos e pensadores e também percebemos que é um tema que estabelece metáforas muito interessantes, nomeadamente a questão ecológica. Vivemos numa camada superficial do planeta, na qual é determinada a nossa longevidade enquanto espécie. Esse é um tema que é explorado, por exemplo, por Bruno Latour, na sua ideia de zona crítica. Esta é apenas uma das explicações que temos para usar este tema de superfície, mas [este mote] abre-nos muitas portas e muitas formas de ver a relação entre arte e tecnologia de uma forma muito particular.
M. P. – Braga está na região norte de Portugal e aí tem havido alguma discussão sobre a prospeção de lítio. Então, esta questão da superfície como um espaço contestado por diferentes interesses é muito visível naquela região. Há certos grupos que acreditam que essa superfície territorial deve continuar a servir a população da forma como tem servido até hoje e outros grupos que acham que essa superfície deve ser usada para extração de lítio. O lítio é a matéria que é utilizada para as baterias dos computadores, telemóveis e carros elétricos. É, de certo modo, a energia limpa do futuro, mas o processo de extração causa muitos distúrbios a quem vive ou trabalha na região e tem um impacto muito claro. Portanto, esta questão da superfície tornou-se muito real no território específico em que nós estávamos a trabalhar. Há uma investigação do Tiago Patatas, que trata especificamente da questão do lítio, em Portugal, mas também em diálogo com outras regiões na América do Sul, onde o lítio já foi extraído. Por outro lado, um dos filósofos, que é muito importante para nós e que faz parte do programa, Michael Marder, tem-se dedicado a estudar a história da filosofia contemporânea e como é que ela trata as plantas e o mundo natural. A proposta dele é que, se aprendermos com as plantas, podemos mudar alguns dos paradigmas que têm vindo a reger o pensamento ocidental. Por exemplo, a distinção entre superficial e profundo. Tendemos a achar que aquilo que é profundo é bom e melhor e aquilo que é superficial é pior. Mas as plantas têm a sua inteligência à superfície. A fotossíntese é feita pelas folhas das plantas. Ele [Michael Marder] convida-nos a desenvolver um pensamento superficial, um pensamento à flor da pele, um pensamento de energia solar. [Em comparação], o pensamento profundo é racional e tem que ver, por exemplo, com a energia nuclear. Se passarmos de energia nuclear para uma energia solar, o que é que isso se faz à nossa sociedade? Se valorizarmos o conhecimento à flor da pele ao invés do pensamento racional mental, o que é que isso faz à nossa sociedade? São estas questões que estamos a tratar.
G. – Voltando à questão da tecnologia. Penso que algumas das peças que integram a bienal foram pensadas de raiz para o universo digital. Na vossa opinião, como é que esse meio condiciona o processo de criação?
L. F. – Fizemos uma open call focada essencialmente em trabalhos nativos para a web e concebidos para o Index. São quatro dos 19 trabalhos que estão no programa expositivo. Também temos uma parte do programa de conferências a decorrer online, mas o grosso do programa é presencial e para ser vivido in loco.
G. – Escolheram ter esses dois braços (online e presencial) por causa do diálogo que serve de base a esta bienal? Ou seja, para refletir também nesse aspeto a relação entre arte e tecnologia?
L. F. – Há pouco, a Mariana falou da realidade virtual e da realidade aumentada. O online faz parte de um léxico, que, cada vez mais, integra a prática artística do dia a dia. Uma das coisas que a pandemia expôs, com toda a transposição para o online, foi o facto de a comunidade artística estar muito pouco preparada para trabalhar a web como um meio nativo para a produção artística e não apenas como um local de exposição de algo. Sendo o Index uma bienal de arte e tecnologia, pareceu-nos fundamental ter, pelo menos, uma dimensão a esse nível [digital].
G. – Como disse, o Index propõe uma reflexão sobre o papel da tecnologia na arte, pelo que pergunto: qual a vossa opinião sobre a criptoarte? Esse tema marca também presença, de alguma forma, neste evento?
L. F. – A criptoarte no sentido de NFT [non-fungible token] não estará presente, nem será debatida na bienal. Estamos a falar de um meio associado à mercantilização da arte. O NFT não é, em si, um instrumento artístico, é um instrumento de atribuição de propriedade. É um tema que levanta imensas questões, que são transpostas para o domínio da arte, mas que ainda estão muito frescas. É um fenómeno muito recente e está cheio de questões muito complicadas. [A Index] não toca nos NFT, de modo algum.
M. P. – Um dos artistas que temos na mostra é Calum Bowden, que é um dos fundadores da Trust, uma organização que tem vindo a pensar nesta questão do uso da blockchain como ferramenta para imaginar uma distribuição diferente do valor, no contexto da arte. Nesse sentido, é uma organização muito interessante, porque é feita por artistas para discutir como é que a blockchain pode fazer funcionar o mundo da arte. [Calum Bowden] tem uma perspetiva altamente crítica sobre as formas como a blockchain e os NFT têm vindo a ser tratados nesse meio.
G. – Na apresentação da bienal, disseram que este evento propõe também uma reflexão sobre as implicações sociais e ecológicas que gravitam à volta da tecnologia. Quanto às questões ecológicas, de que forma marca presença a sustentabilidade no Index?
L. F. – Todo o programa incide, de certa forma, sobre isso. Este exemplo que temos em Montalegre [de discussão sobre a exploração de lítio] foi estruturante na forma como desenhamos o programa. Por exemplo, o programa performativo inclui um espetáculo que foi feito a partir de residências em Montalegre e um mapeamento em fotogrametria do hipotético local onde haverá mineração de lítio. [Isto] para explorar quase que uma distopia de algo que vai ser esventrado para extrair lítio. O programa de conferências versa, de forma muito forte, à volta da questão ambiental também. [Há] quase o paradoxo de que a tecnologia que estamos a celebrar é a mesma de que depende a usurpação que criticamos. É importante olhar para isto de frente e acredito que o programa tem esta ênfase crítica.
M. P. – Para dar alguns exemplos, temos um trio de vídeos dos Formafantasma, que trata sobre a floresta, a forma como a floresta evoluiu ao longo dos tempos e como é que se transformou em matéria de exploração, quase que desprovida dos seus direitos e relações sociais. Reflete sobre a relação que temos hoje com a floresta e a urgência de reconhecermos direitos e agência noutros seres vivos. É uma perspetiva altamente contemporânea. Já nem sequer podemos chamar-lhe sustentável. O conjunto de peças que mostramos é uma espécie de chamada de atenção para percebermos que temos de entrar num novo paradigma, um paradigma mais do que humano, em que reconhecemos os direitos e a agência não só das pessoas, mas também de todos os outros seres. Até para garantir a sobrevivência futura da nossa espécie, temos de começar a pensar de uma forma mais integrada.
G. – A propósito dessa visão integrada e em relação à reflexão sobre as implicações sociais da tecnologia, o objetivo é discutir, então, o descentramento do humano?
L. F. – O André Barata, que é um dos filósofos que está presente no programa, fala desse afastamento induzido pela tecnologia, fará uma comunicação e participará numa conferência em que provavelmente se focará nisso. A ênfase está mais na questão de olharmos para a superfície como algo em que habitamos e que temos tendência para usurpar e extrair ao máximo com as consequências que isso acarreta. Há ainda uma dimensão muito ligada à magia, ao transcendental e ao esoterismo, que também é uma forma de alienação da realidade, embora diferente daquela que é imposta pela tecnologia.
G. – A bienal acontece em Braga. O que é que esta cidade traz a este evento e que diálogo é feito entre estas partes?
L. F. – Este evento alinha-se com a estratégia da cidade, que tem vindo a ser desenvolvida desde 2016 de forma mais deliberada. Houve a vontade da cidade de se afirmar na relação entre arte e tecnologia, e essa vontade foi um pouco baseada num conjunto de estruturas e trabalho, que vinha a ser feito por vários artistas e instituições. Essa vontade de Braga de ser uma cidade criativa da UNESCO também levou a que houvesse mais apostas nesta área, em diferentes formatos, como o Index. Braga é vista, tradicionalmente, como uma cidade muito conservadora e muito ligada à Igreja e ao universo religioso, mas também, por outro lado, desde os anos 80, teve um boom do ponto de vista tecnológico, nomeadamente através da ênfase que a Universidade do Minho deu às novas tecnologias de informação. Recordo que, na década de 90, Braga era uma espécie de Silicon Valley de Portugal e tinha o recorde de empresas vendidas a gigantes tecnológicos. Essa dimensão tecnológica acaba por ser uma marca da cidade de Braga. É uma dicotomia entre clássico e conservador e o cutting edge na área tecnológica. Também faz sentido tentar trazer para aquilo que é um programa artístico esta dimensão tecnológica.
G. – Que experiência esperam que os visitantes levem desta bienal?
M. P. – Espero que as pessoas levem uma perspetiva crítica acerca do modo como temos pensado sobre a superfície enquanto recurso, ou seja, a superfície enquanto espaço contestado em que diferentes visões do mundo podem operar de forma diferente, de uma forma mais extrativa ou de uma forma mais cooperativa. E, depois, também a superfície enquanto forma de pensamento, isto é, um convite a pensar sobre a relação com o território e a matéria [de uma forma], que é mais sensorial, mais emotiva e mais humana. Há também um convite a pensar sobre as relações de solidariedade entre as pessoas, os territórios e a matéria, que, na nossa perspetiva, podem orientar-nos para um futuro mais justo.
L. F. – Vejo o Index, acima de tudo, como um evento de questionamento, que consiga passar estas ideias que a Marina mencionou para um público alargado. Às vezes, há um afastamento entre aquilo que é a prática artística contemporânea e o consumo cultural. As pessoas tendem a sentir que isto não é algo para elas, que é algo para alguém que está mais capacitado. O programa que preparamos pode ser fruído por qualquer pessoa e levanta questões que temos mesmo de pensar e absorver. Espero que seja um evento que promova essa reflexão pessoal.