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Manual para a Desvalorização, por Marcelo Rebelo de Sousa

Nas Gargantas Soltas de hoje, o Tiago Sigorelho fala-nos sobre a mensagem do Presidente no tema da pedofilia na Igreja: "julgo que o país preferiria uma aproximação emocional que unisse a sociedade sobre um combate que ainda está verdadeiramente no início."

©David Cachopo

Numa sociedade disponível para aceitar as narrativas que vaticinam o descrédito da ciência, do conhecimento e da informação, nada é talvez mais importante para os moderados que ocupam cargos de decisão do que ser rigoroso e transparente. Para que isso aconteça, é crucial saber valorizar o erro, dar-lhe a atenção merecida e dedicar tempo e espaço mediático para encontrar soluções que evitem esse mesmo erro no futuro.

Ora, foi exatamente isso que não vimos nas intervenções do Presidente da República sobre os casos de pedofilia na igreja católica portuguesa. Ao longo de vários dias assistimos a um verdadeiro manual para a desvalorização deste tema, embora, eu também possa afirmar que estou pessoalmente convicto que não vejo nenhuma razão para o ter feito propositadamente. Apenas por ser complexo gerir um tema tão sensível.

A primeira entrada deste manual dá-se com a tal expressão da convicção pessoal. Segundo o Presidente, “Aquilo que eu posso dizer — e nem é como Presidente da República, é como pessoa — é que o juízo que formulo sobre as pessoas (e não os elementos da hierarquia católica) D. José Policarpo e D. Manuel Clemente é que não vejo em nenhum deles nenhuma razão para considerar que pudessem ter querido ocultar da justiça a prática de um crime.”

Entendo perfeitamente que a forma como conhecemos pessoalmente determinadas pessoas influencie a nossa predisposição para a inocência ou a culpa. O que não percebo é qual a relevância de ouvir a opinião pessoal, e não institucional, do mais alto cargo da democracia nacional. Naturalmente, Marcelo Rebelo de Sousa tem noção da importância da sua opinião como influenciadora da balança pública. E abriríamos espaço para, no futuro, ser legítimo que os jornalistas o questionem sobre a sua opinião pessoal sobre tudo.

Depois deste momento, o Presidente chamou a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica Portuguesa (deixo o nome por inteiro, por ele ser claro sobre o âmbito) a Belém. De certa forma, poderia entender-se que Marcelo Rebelo de Sousa percebeu o seu lapso e encontrou um formato que pudesse deixar claro que não era seu intuito desvalorizar um assunto desta relevância.

E, aqui, escreve-se o segundo capítulo deste manual. O Presidente aproveitou este momento para reforçar que exprimiu uma opinião pessoal e uma institucional, mas que esta última “não passou”. No fundo, sublinhou o seu direito à opinião pessoal e culpou a comunicação social pela insuficiência da mensagem. A questão, no entanto, mantém-se: a sua opinião pessoal não era desejável, neste caso.

A terceira secção deste ensaio vem logo a seguir. E tem duas dimensões: a relativização de quem está no poder e a relativização da instituição igreja católica.

Diz Marcelo Rebelo de Sousa na interpelação à comunicação social após a audiência à Comissão Independente que “Há vários anos atrás estas atividades não eram vistas como crime ou, mesmo quando eram vistas como crime, a sociedade tinha limitações em actuar, testemunhar, dar o seu depoimento. É verdade. Por isso é que eu digo que é um problema de cultura cívica, de mentalidade.” Do que refere, ficamos a entender que seriam as pessoas, as vítimas ou as testemunhas, a não ter a coragem de falar abertamente sobre este tema, parecendo que as estruturas de poder, religiosas, políticas e judiciais, estariam disponíveis para acolher estas queixas.

Ainda na mesma declaração, o Presidente refere que “Estamos perante uma instituição, como outras instituições, que cobriam durante muito tempo larguíssimos sectores da sociedade portuguesa, como, por exemplo, as escolas.”, complementando, depois, que este é um problema “como houve noutros países e noutras igrejas”. Destas afirmações fica a sensação de que este é um problema da sociedade e não desta igreja em específico, o que sabemos não ser assim, muito devido às implicações mentais da castração sexual imposta a muitos membros da igreja.

Ao longo de toda a sua intervenção, o Presidente foca-se na preocupação, fundamental, sublinhe-se, com a dimensão legal e judicial. Mas pouco se ouve em relação à dimensão ética e moral, talvez a mais necessária, e as referências às vítimas são, praticamente, inexistentes.

À semelhança do que Marcelo Rebelo de Sousa conseguiu fazer quando foi eleito pela primeira vez, julgo que o país preferiria uma aproximação emocional que unisse a sociedade sobre um combate que ainda está verdadeiramente no início.

*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico

-Sobre Tiago Sigorelho-

Formado em comunicação empresarial, esteve ligado durante 15 anos ao setor das telecomunicações, onde chegou a Diretor de Estratégia de Marca do Grupo PT, com responsabilidades das marcas nacionais e internacionais e da investigação e estudos de mercado. Em 2014 criou o Gerador e tem sido o presidente da direção desde a sua fundação. Tem continuamente criado novas iniciativas relevantes para aproximar as pessoas à cultura, arte, jornalismo e educação, como a Revista Gerador, o Trampolim Gerador, o Barómetro da Cultura, o Festival Descobre o Teu Interior, a Ignição Gerador ou o Festival Cidades Resilientes. Nos últimos 10 anos tem sido convidado regularmente para ensinar num conjunto de escolas e universidades do país e já publicou mais de 50 textos na sua coluna quinzenal no site Gerador, abordando os principais temas relacionados com o progresso da sociedade.

A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

NO GERADOR ABORDAMOS TEMAS COMO CULTURA, JUVENTUDE, INTERIOR E MUITOS OUTROS. DESCOBRE MAIS EM BAIXO.

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