Em 2014, foi publicado o primeiro Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas. O documento, coordenado pela investigadora Manuela Mendes (com Olga Magano e Pedro Candeias) a pedido do Alto Comissariado para as Migrações, mostrava, pela primeira vez, a realidade da comunidade cigana portuguesa. Com recurso a uma extensa pesquisa e a milhares de entrevistas, foi reunida informação sobre o contexto social, económico, político e demográfico das pessoas ciganas no nosso país.
Desde essa altura, mais nenhum estudo semelhante foi realizado em Portugal.
Na data em que se assinala o Dia Nacional do Cigano, falámos com a investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Iscte – Instituto Universitário de Lisboa (CIES-Iscte), para saber mais sobre a recolha de dados da comunidade cigana e qual a importância dos mesmos para o desenvolvimento de políticas concretas. “Conhecer para melhor se intervir e agir faz muito sentido no que concerne à intervenção sobre as pessoas ciganas”, afirma a responsável.
Gerador (G.) – O último Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas (ENCC) data de 2014. Na sua opinião, por que motivo não foi feito novamente?
Manuela Mendes (M. M.) – O ENCC de 2014 priorizava a necessidade de o ACM [Alto Comissariado para as Migrações] deter um conhecimento mais aprofundado sobre a realidade das pessoas ciganas em Portugal, e essa foi a razão principal que esteve subjacente a este estudo, uma vez que o conhecimento que se detinha era sobretudo qualitativo, exploratório e focado numa temática setorial e em espaços/territórios também específicos.
Posteriormente, por motivos que nos ultrapassam – não acompanhámos os processos –, sabemos que alguns funcionários do Observatório das Comunidades Ciganas pediram às autarquias locais para responderem a algumas questões gerais sobre a presença das pessoas ciganas nos seus respetivos territórios. Tal não é, no entanto, comparável à diversidade, rigor e profundidade da pesquisa que realizamos no ENCC em que se realizou um trabalho de auscultação direta e sistemática de vários atores individuais, coletivos e institucionais. Mais relevante ainda foi o facto de termos utilizado instrumentos rigorosos de recolha de opiniões junto das pessoas e famílias ciganas com caraterísticas muito diversas em termos de situação socioeconómica (empregados, desempregados, estudantes, etc. com rendimentos precários ou com uma situação económica estável), habitacional (residindo em acampamentos, habitações precárias e de génese informal, habitação em bairros de habitação social, habitação no mercado privado de arrendamento e/ou venda) perfil do território (urbano, rural, misto) disseminadas pelos vários concelhos e pelas diferentes regiões do continente.
Em suma realizamos uma pesquisa bibliográfica (desde os anos 70 até 2013), uma análise documental (no mesmo período), realizamos entrevistas institucionais, aplicámos um inquérito por questionário a municípios, assim como a “peritos”, inquéritos a mais de 1500 pessoas ciganas, fizemos a validação de perfis via método Delphie realizamos ainda uma análise SWOT.
Com o estudo que realizámos, foi possível produzir um retrato sobre as características sociais, culturais, económicas, políticas e condições de vida, e elaborar uma cartografia dos perfis e da sua distribuição no território nacional, atendendo às suas características sociodemográficas, padrões de inserção territorial, bem como às suas condições de vida.
Seja como for, o estudo realizado deveria ter continuidade e utilizando-se os mesmos instrumentos de recolha de dados, poder-se-ia atualizar os dados recolhidos em 2014.
G. – A falta de dados recentes é um entrave ao desenvolvimento de políticas públicas específicas?
M.M. – Conhecer para melhor se intervir e agir faz muito sentido no que concerne à intervenção sobre as pessoas ciganas (e não só). Os problemas e dificuldades que marcam o quotidiano das pessoas ciganas dificilmente poderão ser resolvidos ou superados sem se conhecer a de forma multissectorial, e numa perspetiva sincrónica e diacrónica a realidade das pessoas ciganas.
G. – No referido estudo, lê-se que “os ciganos permanecem ainda como um grupo não (re)conhecido pela sociedade portuguesa maioritária”. Na sua opinião, isto continua a ser verdade?
M. M. – Continua a haver pouca investigação histórica em Portugal sobre as origens da população cigana, aspeto que continua ainda envolto numa área de um certo “mistério”. Para além disso, faltam estudos sobres as relações entre os ciganos e os outros grupos sociais. Por último, importa referir a ausência de dados estatísticos com carácter de recenseamento (que é inconstitucional). Os dados disponíveis são relativos a bairros ou a áreas geográficas específicas. Faltam estudos de caráter abrangente, de caráter quantitativo, longitudinal e transversal. Estudar e intervir com pessoas ciganas é ainda um tema marginal em termos académicos e em termos de intervenção social e política.
Infelizmente, a representação social dos ciganos continua a ser muito estereotipada e ligada à imagem de ‘nómada’, livre de todos os compromissos e laços. Há quem considere que os ciganos não são portugueses, que são estrangeiros, que “não são de cá”, no entanto, os ciganos são cidadãos portugueses. Grande parte deles estão hoje sedentarizados e, nos casos em que não estão, a opção por uma forma de vida “nómada”, resulta de uma complexa teia de relações cujos agentes não são apenas as famílias e pessoas ciganas, mas também, por exemplo, as instituições, poderes locais e outras pessoas ciganas e não ciganas. Muitas destas pessoas não têm acesso ao cartão de cidadão e acesso a direitos e serviços públicos que são prestados/disponibilizados a qualquer cidadão.
Os ciganos são invisíveis – ou pouco visíveis -, há pouco conhecimento [sobre as suas vidas] e falta reconhecer o seu contributo para o pluralismo e diversidade que carateriza a sociedade portuguesa.
G. – À altura da divulgação do estudo, referiu, numa notícia da Lusa, que o mesmo revelava “padrões regionais”. Pode esclarecer a que se referia?
M. M. – [Referia-me ao facto de] o estudo nacional vir evidenciar a diversidade e heterogeneidade cultural entre os ciganos portugueses e a existência de várias formas de incorporação social e espacial que divergem consoante o território de inscrição das pessoas ciganas.
G. – Sendo os ciganos cidadãos portugueses, por que motivo acha que as políticas e estratégias de inclusão a eles dirigidas são enquadradas no âmbito do Alto Comissariado para as Migrações [ACM]? Pode este enquadramento ser, por si só, uma forma de “discriminação burocrática”?
M. M. – Sempre considerámos que não fazia sentido haver uma gestão burocrática, de caráter top-down, centralizada e distante dos sujeitos, das medidas políticas e programas, como acontece no caso dos ciganos (mas não só). O ACM abarca âmbitos muito diversos e, só por si, as questões migratórias já têm uma elevada complexidade e especificidade e são distintas das que caraterizam a realidade dos ciganos portugueses. A meu ver, não faz muito sentido que o ACM tenha esta duplicidade e que os serviços dedicados às pessoas ciganas sejam distantes, pouco autónomos, expeditos, centralizados e secundarizados face a outros domínios de ação.
G. – Acha que a lei portuguesa é discriminatória?
M. M. – A universalidade e o princípio da igualdade e da não discriminação é algo que está perfeitamente regulamentado. Uma coisa é a lei e outra são as práticas discriminatórias. Os ciganos continuam a ser, entre nós – mas também em muitos países europeus –, o grupo social a quem é dedicada uma maior antipatia e maiores níveis de rejeição. O anticiganismo, racismo sistémico e histórico contra os ciganos, está enraizado nas estruturas sociais da sociedade portuguesa. O ressurgimento de narrativas racistas, que incitam ao ódio contra os ciganos, que são ofensivas e humilhantes, que legitimam as desigualdades estruturais e institucionais, mostram que, ao longo da história, os ciganos têm sido um dos principais alvos de uma discriminação historicamente sistemática e estrutural enraizada na sociedade e nas as principais instituições.
G. – Em que outros contextos (por exemplo, fiscal, legal, habitacional), esta comunidade mais sofre discriminação?
M. M. – A discriminação tem um caráter multidimensional e é transversal a vários domínios da vida pública. Por exemplo, no acesso aos serviços públicos, no mercado de trabalho, no setor da habitação (público e privado), na escola, na relação com as forças policiais, e no acesso à justiça.
G. – Há outro aspeto sobre o qual gostaria de a questionar: qual a sua opinião sobre a inclusão de perguntas étnico-raciais nos Censos?
M. M. – Parece haver mais vantagens do que desvantagens, embora haja riscos associados. Apesar de tudo, a redução das desigualdades sociais assentes em processos de racialização ou etnicização e o combate eficaz à discriminação racial e étnica só pode ser feito se dispusermos de estatísticas.
G. – Como pode a elevada taxa de abandono escolar – que sabemos ser uma realidade dentro da comunidade cigana – ser combatida sem que isso entre em confronto com as tradições?
M. M. – A frequência [escolar] das crianças e jovens ciganos não colide com as “tradições da comunidade”. São âmbitos perfeitamente conciliáveis, como atestam os vários testemunhos e experiências de vida dos jovens ciganos que participaram no estudo que realizamos no âmbito do projeto Educig- Desemprenhos escolares entre os ciganos portugueses- investigação-ação e projeto de codesign. [disponível aqui].
São jovens com percursos considerados de continuidade e até de sucesso. Hoje, estão a terminar a sua licenciatura ou estão inseridos no mercado de trabalho e mantêm relações próximas com familiares, amigos e com a comunidade mais alargada. [São pessoas] que negam a oposição entre cultura cigana e escola e se empenham ativamente na renegociação dessa relação e na reconstrução de uma identidade de fronteira.