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Numa residência artística nos Açores, artistas vivem uma maré de possibilidades

residir verbo intransitivo Habitar, morar, ter a sua residência em. [Figurado] Achar-se; estar. Consistir. “residir”,…

Texto de Carolina Franco

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residir

verbo intransitivo

  1. Habitar, morar, ter a sua residência em.
  2. [Figurado] Achar-se; estar.
  3. Consistir.

"residir", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

A ideia que se cria de uma residência artística pode ser mais ou menos fantasiada, mas certamente nos traz à cabeça uma imagem mental de um artista fora do seu habitat natural, numa experiência de total entrega ao seu trabalho, envolvido por novas comunidades. O programa de residências artísticas do Walk&Talk, que pressupõe que os artistas se desloquem para o arquipélago dos Açores para que a sua arte resida e de lá venha contaminada, não é exceção.

A dois meses da sétima edição do festival, Jesse James e Sofia Carolina juntaram-se ao Gerador numa conversa descontraída entre a azáfama da feira ARCO, na qual Jesse explicou que “a falha é algo que o sistema da arte muitas vezes nega, porque é tão competitivo e obcecado pelo sucesso que não permite que haja espaço para tal. E esses lugares de falha, de experimentação, são fundamentais a todos os artistas, e tem de haver estruturas ou espaços para essas dúvidas. Principalmente para que a falha aconteça, e ninguém te caia em cima”.

“É interessante ver o feedback dos artistas, que dizem que costumam trabalhar em desenho, por exemplo, mas estão com muita vontade de trabalhar em escultura. E é esta lógica de criar um lugar de risco que nós queremos assumir, como dizia o Jesse”, referia Sofia na mesma conversa.

Entre os dias 12 e 14 de julho, o Gerador viajou para São Miguel a convite do Walk&Talk para ter contacto pela primeira vez com o festival que não só leva novas perspetivas sobre a arte contemporânea à ilha, mas também as cruza com as que lá habitam o resto do ano.

O contacto com o universo das residências artísticas foi quase imediato. Com paragem no 4º andar do SolMar, um centro comercial junto às Portas do Mar de Ponta Delgada, abriram-se as portas para os projetos de residência de Mónica de Miranda, Diana Vidrascu e Andreia Santana. Com curadoria de Sérgio Fazenda Rodrigues, o Circuito de Exposições estendia-se até ao Museu Carlos Machado, com Gonçalo Preto e Rita GT, a Torre Sineira com Maria Trabulo e um contentor nas Portas do Mar com Miguel C. Tavares & José Alberto.

Foi entre as atividades agendadas para o segundo fim de semana de festival que conhecemos Luísa Salvador e Vaiapraia, e, antes do concerto de Pedro Mafama na noite de arraial, marcámos encontro em Lisboa com Gonçalo Preto. Com projetos ainda em curso, nos casos de Luísa e Vaiapraia, e com um objeto finalizado, mas ainda com hipóteses em aberto, o Gerador foi auscultar projetos em residência — que, tal como a ilha, vivem de metamorfoses e têm uma maré de possibilidades em volta.

Diana Vidrascu explora o universo tectónico dos Açores em Timeshores ©Sara Pinheiro

“Da matéria inacabada do tempo faz uma promessa”, Luísa Salvador

 A residência de Luísa Salvador começou em 2018 e previa-se que integrasse o circuito de exposições deste ano. Algumas mudanças no projeto exigiram mais tempo para pensar e concretizar, e a partilha ficou reagendada para 2020.

“Isto começou até numa conversa que tive com o Jesse. Tinha vindo do sul de Itália e vinha fascinada com vulcões, com Pompeia e refletia sobre o que é que fica depois desse género de desastres”, recorda Luísa. Depois de ser desafiada por Jesse James para “pensar numa dimensão geológica da ilha” começou a procurar lugares, acabando por tropeçar na Ferraria, “um sítio com uma paisagem vulcânica de pedras escuras muito bonita”.

Pedro Pascoal, do Instituto Cultural, e Nuno Dias, investigador do Observatório de Vulcanologia foram os primeiros a auxiliar a pesquisa conceptual da artista. Pedro com uma perspetiva geral (que, segundo Luísa, “é a pessoa que mais sabe sobre a ilha”) e Nuno com “uma data de cartografia e a idade geológica das ilhas”, que a ajudaram a ganhar uma “perspetiva de tempo da ilha”.

Depois de encontrar o lugar em que se iria propor a trabalhar e de saber qual seria o seu foco, Luísa visitou o Museu Carlos Machado à procura de saciar uma dúvida que a andava a acompanhar — a existência de fósseis vulcânicos.

O fascínio de Luísa por vulcões encaminhou-a para os fósseis vulcânicos ©Mariana Lopes

“Esta questão dos fosseis vulcânicos interessou-me imenso e acabei por começar a pensar como é que poderia celebrá-los, até porque é uma coisa que não está muito visível nem no próprio museu e cheguei à técnica que estou a fazer agora — calcar folhas de árvores e plantas que existem aqui (não têm de ser endémicas*), um bocado como se estivesse a fazer o que podiam ser os fósseis do futuro, mas com as plantas da atualidade”, explica.

Através da cerâmica, Luísa está a construir um amanhã que pretende espalhar pela paisagem da Ferraria. Sugeriram-lhe ainda “a hipótese de assinalar o museu, já que foi lá que tudo começou”, e é nisso que ainda está a pensar. Com um trabalho maioritariamente de desenho e em pastel de óleo na sua bagagem, Luísa Salvador encontrou na residência artística do Walk&Talk uma forma de explorar novos meios, cruzando-os com aqueles em que normalmente habita.

Regressa em 2020 para partilhar com a paisagem os elementos que até lá está a desenvolver e que farão sentido num habitat que não lhes é natural, mas onde naturalmente pertencem.

*plantas endémicas – plantas que existem apenas numa determinada região

Luísa Salvador integra o Circuito de Exposições em 2020 ©Mariana Lopes

Vaiapraia (com Michelle Blades e Tomás Paula Marques)

 Ao contrário de Luísa, Vaiapraia foi em residência para São Miguel pela primeira vez este ano. “À partida, a residência é só este verão. Eu tinha tocado cá há dois anos com a minha banda e fiquei a conhecer o festival. Depois fiz esta proposta de fazer esta residência em duas partes — a primeira parte é um concerto que eu e a Michelle vamos fazer, que nunca tocamos juntos, em que vamos tocar músicas de cada um e outras novas”, contava uma semana antes do concerto.

Depois do concerto espera-se um EP e um filme realizado por Tomás Paula Marques, que, durante os 10 dias de residência, foi registando as descobertas feitas a três. “São várias ideias a partir de coisas que pessoas mais novas ou mais velhas nos contam sobre a ilha, algumas que estão em livros e outras que vemos. É uma coisa um bocado experimental e que vai ganhando sentido e forma ao longo do tempo”, explica Vaiapraia.

O foco nas questões em LGBT, inclusive “como é ser LGBT em São Miguel nos últimos 20 anos”, surgiu naturalmente; tal como a sinergia entre os membros do grupo. Vaiapraia decidiu juntar Michelle e Tomás, que não se conheciam entre si, ambos seus amigos e pessoas com quem gostava de trabalhar. Tomás viajou do Porto, Michelle de Paris e Vaiapraia de Lisboa.

Convidar Michelle “para uma residência no meio do Atlântico” pareceu-lhe a desculpa perfeita, especialmente para pensarem juntos tópicos que de alguma forma os unem. “Partilhamos visões políticas e referências estéticas comuns… faz sentido”.

Vaiapraia e Michelle aturam no Pavilhão do Walk&Talk ©Mariana Lopes

O processo de fazer uma residência artística em música certamente não será o mesmo para todos os músicos, como uma residência em artes visuais não será vivida da mesma forma por todos os artistas. Para Vaiapraia, Michelle e Tomás, o mais importante foi pensar sem restrições e deixar que os temas surgissem naturalmente. “Estes temas são coisas que nos preocupam enquanto seres pensantes e a parte da música transpira isso naturalmente. Acaba por ser intencional porque está na tua cabeça e passa, não porque é uma bandeira que levantas só porque sim.  É uma coisa com que te preocupas e a que queres dar alguma atenção, e que se traduz no trabalho que acabas por fazer”, sublinha.

O concerto que deram no dia 19 de julho em Ponta Delgada foi apenas um primeiro momento de um caminho que começaram a traçar juntos na ilha e que hoje ultrapassa limites territoriais. “A residência foi inevitavelmente um ponto de partida para a criação, ainda há muito que fazer até termos resultados finais”, explica ao Gerador.

Da residência Vaiapraia leva “a oportunidade de estar num sítio tão lindo e particular como São Miguel, rodeado de pessoas que também estão dedicadas a criar algo num período concentrado de tempo”.

O concerto foi apenas um ponto de partida desta parceria a três ©Mariana Lopes 

Limbo, Gonçalo Preto

Foi ainda nos Açores que combinámos visitar o ateliê do Gonçalo Preto, em Xabregas. Com uma exposição no Museu Carlos Machado, esta edição foi uma despedida da residência que começou em 2017 “a convite do Jesse e da Diana Sousa”.

No ateliê de Gonçalo, vivem telas ainda em processo de criação para a exposição individual, que terá lugar em novembro na Galeria Madragoa e para a Artissima, a feira de arte que decorre em outubro em Turim. De entre projetos em curso e as paredes a dar pistas para os mundos em que se insere, Gonçalo foi buscar desenhos e maquetes de Limbo, a peça que pensou nos Açores e criou em Lisboa.

“Eu adoro história natural, ilustração científica, tudo o que tenha que ver com natureza, só que nunca tinha tido a oportunidade de trabalhar com um Museu de História Natural, como foi o caso. O que me saltou mais à vista foram os herbários porque é uma coleção muito singular, ainda para mais sendo a esmagadora maioria espécies do arquipélago. São arquivos gigantescos, mas está tudo fechado, não há nada visível — foi isso que me fez querer ver”, conta.

Gonçalo Preto finalizou uma residência a duas edições no Walk&Talk ©Diana Mendes

O mapa de relações começou com João Paulo Serafim, artista que já conhecia e tinha exposto no Museu Carlos Machado, que acabou por fazer a ponte com João Paulo Constâncio, o vice-diretor do museu que concedeu a Gonçalo a autorização para consultar e manusear os arquivos que tinha encontrado fechados. Acompanhado por Ana Esperança, bióloga do museu, teve acesso aos herbários que lhe tinham despertado curiosidade — ainda que na altura fosse “mais por encanto do que por ter alguma ideia em mente para o projeto”, confessa.

O convite a duas edições (2017-2018) estendeu-se a três, uma vez que o local em que queria expor estava ocupado durante o período do festival, e o tempo acabou por permitir que surgissem novas opções, numa espécie de “metamorfose constante”.

Do herbário de Carlos Machado surgiu a vontade de trabalhar as plantas endémicas e de um pequeno estudo sobre o comportamento das comunidades das plantas a ideia de “tirar as invasoras da equação e trabalhar só com plantas tanto da zona costeira como de alta altitude, misturando tudo numa paisagem manipulada”.

“Embora isto seja completamente diferente do meu registo, eu estava a pensar em pintura — desde a luz à textura e à composição. E acabei por brincar com isso: com os afastamentos entre si, obrigar a pessoa a dar uma volta à peça e ter uma vista 360”, explica Gonçalo, que normalmente tem na pintura o seu meio de expressão.

Distanciar-se da pintura foi um desafio que abraçou a partir da residência ©Diana Mendes

Quando conheceu Sérgio Fazenda, o curador, conseguiu juntar pontas soltas e encontrar novas soluções para dúvidas que foram surgindo — da escala em detrimento do orçamento à escolha do material para garantir um transporte de barco seguro. A ideia inicial da utilização de vidro, que evocasse a fragilidade, a delicadeza e “quão subtil e únicas são aquelas peças”, acabou por ser substituída pelo acrílico; mas a leveza estava lá.

Para Gonçalo Preto, esta experiência de residência artística foi importante, acima de tudo, para sair da zona de conforto, arriscar e perceber que não tem necessariamente de ficar fechado na pintura. “Acabei por lhe chamar Limbo porque é o nome técnico referente ao exterior da folha — ou seja, os recortes da folha têm o nome técnico de limbo. Ou então podem ser a nervura no verso da folha” — explica enquanto mostra os desenhos feitos a caneta num processo inicial — “e como o trabalho era todo à base de linha, aquilo que fazia a distinção entre plantas era quase a sua silhueta”.

Limbo integrou o Circuito de Exposições no Museu Carlos Machado ©Sara Pinheiro

Além da relação com novos médios, traz consigo para Lisboa uma série de novas relações interpessoais que travou ao longo do festival e que atualmente se traduzem em amizades. “Saltas uma data de barreiras e ainda por cima são pessoas que têm uma série de coisas em comum contigo. Estás num ambiente onde há zero preconceito, onde estão todos com o mesmo objetivo e só te dá mais alento a criar. Eu vim de lá cheio de vontade de criar. Tens tanta gente boa, cada um na sua área, que sais dali com novas ideias”, conta.

Gonçalo desmistifica a ideia de que numa residência artística de arte contemporânea só se fala sobre arte e só encontram pontos de toque entre os seus universos por questões exclusivamente relacionadas com o tema. “Parece que as pessoas, muitas vezes, têm de criar uma persona e mostrar que são artistas, mas acho que ali isso fica de parte; mostram aquilo que são de verdade. Portanto, as conversas não vão ao encontro desses temas; falas de coisas que falarias com amigos teus.” Serve de exemplo a amizade que criou com Miguel C. Tavares, que começou por uma t-shirt dos Washington Wizards que Gonçalo trazia vestida e desencadeou uma conversa sobre basquete, um interesse comum e imprevisível.

Ainda que as dúvidas sobre o trabalho o acompanhassem, acabou por ficar “muito feliz” com o resultado final. Por explorar ficou a iluminação, que acabou por não ser a que Gonçalo e Sérgio tinham pensado, mas que Gonçalo garante ser um ponto a melhorar nas próximas viagens que a peça fizer.

Sem um futuro muito definido para Limbo, sabe já que a peça seguirá ou para o Porto ou para Lisboa. E qualquer que seja o seu destino final, foi um novo capítulo na sua obra e no percurso que tem feito enquanto artista.

Já em Lisboa, Gonçalo refere que trabalhar em novos meios e estabelecer amizades foram os maiores ganhos da residência ©Diana Mendes

Até à próxima edição do festival Ana Cristina Cachola, Abbas Akhavan, Alex Farrar, Alice dos Reis, Danny Bracken, Luísa Salvador, Nadia Belerique, Ponto Atelier e Sofia Caetano & Elliot Sheedy pensam os Açores e as suas múltiplas relações com a arte, sejam estas mais ou menos óbvias. O espaço que habitam temporariamente para criar pode resultar nada mais nada menos do que numa hipótese, mas certamente deixará uma marca de transição nos espaços em que diariamente habitam, como uma porta aberta para novos universos.

Texto de Carolina Franco
Fotografia de ©Mariana Lopes
O Walk&Talk e o Gerador são parceiros

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