Não podia ser autor de uma crónica quinzenal e não falar de Al Berto, um dos poetas portugueses mais importantes da nossa história. Enquanto leitor, sempre equacionei se seria estranho escrever-se sobre obras de autores que já partiram. Percebi, depois, que esse é um dos braços mais fortes da literatura: a vida do escritor continua nas palavras que ele deixou. E é como se estivesse aqui, ao nosso lado, a ler-nos baixinho.
Este livro, Lunário, foi publicado em 1988. Conta a história de Beno, um homem que pinta e que escreve. Ele precisa da arte mas precisa também das pessoas (não de todas), são-lhe necessárias, embora não durem para sempre. O enredo dá-nos a conhecer Nému, a grande paixão de Beno. É uma história importante para nos lembrar, como se alguma vez nos pudéssemos ter esquecido, de que o amor nada tem a ver com a orientação sexual. Essa ideia chega-nos de forma crua, mas verdadeira. É fundamental esquecermos a história do príncipe e da princesa, que vivem num grande palácio, depois casam-se e são felizes para sempre. Isso não existe.
Leitor, para que serve a arte? Faço-me esta pergunta inúmeras vezes. Embora não haja uma explicação infalível, encontrei neste livro um texto que esclarece quanto a essa necessidade:
“E não pintamos, nem escrevemos ou fotografamos para nos salvar, ou então é só por isso que o fazemos. De qualquer maneira, sabemos que se não o fizermos estamos mais rapidamente perdidos, e é tudo... Mas, por outro lado, deparar com a precariedade da vida, e com a inquietante perenidade dos vestígios que nos sobreviverão, torna-se muito doloroso (...) Sabes, Nému... acho que seria sedutor se o fim do corpo se processasse de outro modo, não pelo apodrecimento, mas sim pelo regresso ao que ficou registado nos textos e nas fotografias e nas pinturas; conforme recuássemos, a escrita e as imagens desapareceriam... Atravessaríamos assim a nossa própria memória e apagar-nos-íamos no início dela.”, pág.144.
Al Berto oferece-nos um cenário decadente, uma procura contínua pelo propósito da vida, que é facilmente ocupado pelo álcool, pela droga, pelo sexo. No entanto, nenhum desses comprimidos engole a solidão e a tristeza.
Deixo-vos um dos excertos mais belos, não só deste livro, mas de todos os que já li até ao dia de hoje:
“Mas hoje, ainda longe daquele grito, sento-me na fímbria do mar. Medito no meu regresso. Possuo para sempre tudo o que perdi. E uma abelha pousa no azul do lírio, e no cardo que sobreviveu à geada. Penso em ti. Bebo, fumo, mantenho-me atento, absorto – aqui sentado, junto à janela fechada. Ouço-te ciciar amo-te pela primeira vez, e na ténue luminosidade que se recolhe ao horizonte acaba o corpo. Recolho o mel, guardo a alegria, e digo baixinho: Apaga as estrelas, vem dormir comigo no esplendor da noite do mundo que nos foge.” , pág.161.
Dário Moreira