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Treme, coração: mesmo no meio do atlântico

Há já 3 anos que tentava ir ao Tremor, mas as agendas nunca foram amigas…

Texto de Andreia Monteiro

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Há já 3 anos que tentava ir ao Tremor, mas as agendas nunca foram amigas desta ideia. Este ano, um presente de aniversário forçou a marcação destas férias para visitar a ilha de São Miguel, numa das mais emocionantes semanas deste paraíso do Atlântico.

Não era a primeira vez que ia a São Miguel, mas foi quando cheguei a casa da Dona Ana, onde ficámos, que percebi como ia já longe a recordação do bem receber das pessoas da ilha. Às duas da manhã, depois de um voo atrasado e as complicações das papeladas para tirar o carro do aeroporto, lá chegámos ao nosso canto. E à nossa espera, sorridente e bem-disposta, estava Dona Ana, com um cesto: lá dentro o abençoado bolo lêvedo, a manteiga, o leite, o chá e um ananás dos Açores.

No primeiro dia do festival, demos à sola pelas ruas de Ponta Delgada. Descemos a rua da Vitória, até ao centro, passámos pelo santuário e seguimos até ao Bazar La Bamba, onde a fila já ia longa para trocar os bilhetes pela pulseira. O dia deixava espreitar um sol tímido e, por isso, ainda deu para fazer o reconhecimento do terreno para os próximos dias.

Com o espaço já explorado, avançámos até ao Teatro Micaelense para a sessão de abertura do festival. O concerto era o resultado de uma residência artística com o coletivo ondamarela, a Associação de Surdos da Ilha de São Miguel e a Escola de Música de Rabo de Peixe, um projeto de jazz daquela vila.

Sessão de Abertura com Ondamarela, EMRP e ASISM, fotografia de Vera Marmelo

A sala do teatro estava cheia, entrámos e já quase não havia lugares. O grupo separou-se e consegui ficar num lugar da primeira fila. Antes do concerto, subiu ao palco a organização do festival, ou como eles se autodenominam: o tremoço. Num pequeno e emocional discurso, António Pedro Lopes deixou quatro regras para os dias que aí vinham: dar espaço ao outro (porque o festival é um espaço de partilha), preservar a ilha e não deixar rasto, ter atenção aos romeiros que circulam na ilha (pois estávamos ainda na Quaresma) e chegar sempre 30 minutos antes de cada performance.

Dadas as regras e feitos os agradecimentos, deu-se início a um dos momentos mais emocionantes do Tremor. Já alguma vez viram uma banda rock com um maestro? Foi o que aconteceu naquele palco: mais de 30 pessoas em palco montaram uma performance com música, dança e poesia. Nas nossas mãos, folhas com os versos dos poemas. Na minha, um verso do poema “Ilha”, de Pedro Laureano, poeta da ilha das Flores:

O céu fechado.
Uma ganhoa pairando. Mar.

Foi aí que até nós, na plateia, fizemos parte deste concerto: sabiam que se deixarem uma audiência inteira amachucar folhas de papel vegetal, ouve-se o mar? Foram várias as ondas dentro da sala, durante aquela hora dentro do Teatro Micaelense. Toda a emoção à flor da pele e os aplausos que teimavam em não cessar deixavam uma boa premonição do que aí vinha no resto da semana.

Quando saímos do Teatro Micaelense, já faltava pouco para o concerto de Collin Stetson que nos levou numa viagem inacreditável tocando a solo, e à vez, cada um dos seus instrumentos de sopro. O concerto abriu com "Spindrift" que bem que podia ser a banda sonora de mais de mil borboletas num paraíso. Pelo menos foi assim que imaginei quando fechei os olhos. Com uma interpretação sublime que deixou a plateia quieta e colada às cadeiras do Auditório Luís de Camões, foi preciso respirar fundo quando o concerto do saxofonista norte-americano terminou.

Nestes dias, a ilha de São Miguel dá lugar a um palco misto que quer não só promover os autores da terra, mas que quer trazer também artistas internacionais a este espaço privilegiado. A ligação do arquipélago com os Estados Unidos da América é evidente e visível pela quantidade de artistas daquele país que marcaram presença no festival. Entre eles estiveram também a banda de rock psicadélico de São Francisco, Moon Duo, que no último dia do festival aqueceu o Coliseu Micaelense com um concerto intenso, mas também Grails, Haley Heynderickx ou Cave.

Collin Stetson, fotografia de Carlos Brummelo

Mas voltando agora à ilha de São Miguel. Uma das coisas mais especiais do Tremor é o facto de termos, a tão pouco tempo de viagem, várias pérolas da natureza que não podemos passar sem ver. Foi o que fizemos no nosso segundo dia: nem o tempo nublado nos parou e lá fomos nós ver a Lagoa das Sete Cidades, espreitar o abandonado Monte Palace, junto à Vista de Rei e ainda visitar a zona da Ponta da Ferraria com um farol e uma vista belíssima na zona das termas.

O Tremor é um festival que toma um partido muito especial dos espaços que integra na sua programação: dos espaços mais clássicos, como é o caso do Museu Vivo do Franciscanismo, onde atuou Lula Pena, aos mais industriais como foi o caso da Garagem Antiga Varela onde tocaram ZA!, no último dia do festival.

E mesmo tendo a chuva a ameaçar, nem só de espaços fechados vive este festival. É a própria natureza da ilha que inspira os artistas que por lá passam e que faz com que seja possível criar performances inéditas, como foi o caso da instalação sonora que Nathalie Sharp concebeu para o trilho do Agrião, um dos trilhos antes utilizados para transportar o peixe da Ribeira Quente. A paisagem, a par das vozes e dos sons daquela banda sonora levaram-nos a uma comunhão com aquele caminho tão cru de rochas e penhascos que se adensou com o nevoeiro que ali pairava. No final do trilho, Nathalie Sharp e Tina Bradshaw apresentaram uma performance que evocava a união com a natureza através dos prazeres sensoriais.

Tremor Todo o Terreno com Natalie Sharp, fotografia de Carlos Brummelo

Um dos momentos mais esperados de cada um dos dias da programação foi sempre o Tremor Na Estufa – são concertos-surpresa em cenários absolutamente extraordinários. Foi num deles que David Bruno trouxe a música ao Parque Natural da Ribeira dos Caldeirões. A chuva leve que nos acompanhou todo o dia lá parou para que David nos prendasse, naquele cenário idílico, com temas como “Alfa Romeu e Julieta” ou “Monte da Virgem Platónico”.

Tremor na Estufa com David Bruno, fotografia de Carlos Brummelo

Outro dos momentos altos do Tremor na Estufa foi também o concerto que assinalou o resultado da residência de ZA!, a banda de Barcelona, com as Despensas de Rabo de Peixe, o grupo dos Bailinhos de Rabo de Peixe. Apanhámos a “procissão” no meio da rua”, já perto da Casa do Espírito Santo. O grupo ia vestido a rigor: de sandálias, calções, uma camisa e um colete bege e, na cabeça, um chapéu de palha com uma flor. Nas mãos, as castanholas. Quando entrámos na Casa do Espírito Santo, com o grupo no meio da sala e todo o público à volta deles, sentiu-se uma energia inigualável, com a eletrónica da banda catalã totalmente entrosada numa das mais típicas músicas do folclore açoriano: Pezinho da Vila. Todos juntos, cantámos:

Ponha aqui o seu pezinho
Devagar devagarinho
Se vai à Ribeira Grande
Eu tenho uma carta escrita
Para ti, cara bonita
Não tenho por quem lh’a mande.

Tremor na Estufa com Despensas de Rabo de Peixe e Za!, fotografia de Carlos Brummelo

Foi o Teatro Ribeiragrandense, onde assistimos a uma verdadeira revolução emocional e musical, que nos trouxe Teto Preto. Pela primeira vez fora do Brasil, este grupo é uma ode ao fim das máscaras e dos estereótipos impostos pela sociedade. O concerto começa com a entrada de Loïc Koutana, o bailarino do coletivo, a carregar Laura Diaz, vocalista, entre a plateia numa imagem fortíssima. Todo o concerto foi uma condensação de energia e força que não deixou ninguém parado ou indiferente. Foi tão emocionante que até recebi uma bênção do Loïc, que desceu à plateia para nos abraçar.

Teto Preto, fotografia de Vera Marmelo

Outro dos espaços míticos de São Miguel deu palco a um dos concertos mais esperados: Pop Dell’arte subiram ao palco do Ateneu Comercial de Ponta Delgada, uma sala que aqueceu bem, especialmente com os clássicos da banda e nos últimos dois temas, em que se juntaram, no palco, Samuel Coelho, compositor e instrumentista, e Ricardo Baptista, da ondamarela.

Mesmo ao lado do Ateneu fica um dos sítios que é impossível deixar de lado quando se visita Ponta Delgada – A Tasca – e sim, queridos leitores, aqui entro numa das minhas partes preferidas desta semana: comer nesta ilha é um privilégio – bifana de atum, açorda, morcela com ananás. Claro que não pudemos passar também sem o famoso bife da Associação, em Santana e sem comer o maravilhoso peixe na Caloura. E se acham que com tudo isto podiam ficar de barriga cheia, não se enganem. No fim, ainda há pudim de feijão, pudim de inhame, pudim de mel e o bolo de ananás. Ir embora de São Miguel sem fazer jus a estes pratos é heresia que não se perdoa.

No último dia do Tremor, esperava-me ainda uma das maiores surpresas do festival: a visita ao Instytut B61 – Interstellar SUGAR Center. Uma performance instalada na fábrica de açúcar Sinaga, em Ponta Delgada, dava lugar a um armazém, onde vários cientistas nos levaram numa viagem pelos vários laboratórios que estudavam as estrelas.

Interstellar Sugar Center, fotografia de Paulo Prata

Em todo o percurso, foi feito um paralelismo com a nossa vida deixando várias mensagens: sobretudo mensagens de esperança. Mas para vos deixar o apetite aguçado: passámos por um casamento com música popular, uma sala onde participámos de uma explosão de música e papel destruído, um homem russo a cantar Pshyco Killer, entre outras. No final, encaminharam-nos para fora da fábrica alegando que ali veríamos a última experiência. O portão fechou-se e fomos literalmente abandonados num espaço que desconhecíamos e sem saber sequer que horas eram (pediram-nos para mudar as horas no nosso telefone antes de entrarmos).

Será que importa tanto o tempo e o espaço? Até que ponto vivemos mesmo as pessoas e as experiências da nossa vida? Foram questões que me passaram pela cabeça durante a performance.

Há muitas outras coisas sobre o Tremor que o tornam num festival especial, mas o que aprendi nesta semana foi o que repetimos várias vezes na sessão de abertura: “Nenhum homem é uma ilha.” António Pedro Lopes, um dos fundadores do festival, dizia na sessão que o Tremor tem uma grande comunidade de afeto, que junta muitas pessoas e que quer pô-las a todas em torno da mesma conversa. Foi uma semana com uma sucessão de encontros entre pessoas e os espaços, entre artistas, visitantes e locais, entre o que temos dentro de nós e o que damos aos outros. E este não houve chuva ou imprevisto que parasse este Tremor. Treme, coração.

Texto de Patrícia Roque
O Gerador é parceiro do Tremor

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