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Com a queda da ditadura, o período do PREC (Processo Revolucionário em Curso) manteve o país num ambiente conturbado e em perigo de inversão totalitária. Maria José Morgado voltaria a ser presa, desta feita pelas forças do Copcon (Comando Operacional do Continente), liderado por Otelo Saraiva de Carvalho. Protestou e fez greve de fome. “É uma prisão em função da orientação que eu seguia, das opiniões que exprimia, de ser contra o Copcon, de chamar às [forças] armadas a “nova PIDE”. Foi presa uma série de estudantes, na altura”, conta a magistrada que assume ter-se desiludido com o 25 de Abril devido a isso. “O PREC foi um movimento de tendência totalitária, dominadora e impositiva de opinião única, de uma verdade oficial. Ainda bem que acabou com o 25 de novembro porque, se tivesse continuado, nós tínhamos substituído a ditadura de Salazar por uma ditadura militar”, sublinha.
Isto mesmo foi explicado por ambos, numa entrevista conjunta à revista Pública, em 2008. Pouco tempo depois da desfiliação nasceria a filha, Laura, já na reta final dos estudos na Faculdade de Direito.
Após terminar o curso, Maria José Morgado inscreve-se no concurso público para integrar o Ministério Público. Enquanto espera os resultados, trabalha durante algum tempo como professora na Escola Secundária dos Anjos, onde lhe é atribuída uma turma considerada problemática. “Eram aulas difíceis, mas não me custaram nada, porque eram só uma questão de firmeza.” Nunca se sentiu intimidada. “Eu sempre gostei de coisas difíceis e duras”, sublinha. Curiosamente, esta seria a mesma escola que a filha Laura viria a frequentar, anos mais tarde.
Em 1979, inicia oficialmente a carreia na magistratura. Apesar do mérito, o começo não ficou livre de alguma controvérsia. “Tinha o selo na testa de ter sido do MRPP, porque era uma figura pública do partido e as pessoas olhavam para mim com esse preconceito. Portanto, eu tinha de saber muito mais e estudar muito mais do que os meus colegas para conseguir a mesma classificação. Foi isso que fiz. Quando entrei, consegui ficar em primeiro lugar [no concurso], não obstante alguma hostilidade que haveria em relação a mim por causa desse passado. Depois, tudo se foi diluindo ao longo do tempo, como é evidente. Aquilo foram só os primeiros anos”, conta.
Foi colocada no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, onde esteve entre 1980 e 1986. Desempenhou, depois, funções nos juízos criminais do agora extinto Tribunal da Boa Hora, onde esteve mais de uma década. “Combater o crime era uma coisa que me agradava, porque era uma forma de ser útil à sociedade e era uma coisa palpitante”, lembra.
Nesta fase, o seu rosto ia ganhando algum mediatismo, coincidente com a dimensão dos processos que lhe chegavam às mãos, como os julgamentos do famoso caso dos faxes de Macau e do governador Carlos Melancia.
Em 2000, a procuradora assume a chefia da Direção-Central de Investigação da Corrupção e Criminalidade Económica e Financeira da Polícia Judiciária, altura que se notabiliza no combate à corrupção. Quem com ela trabalhava na altura diz que isso se deve à forma como implementou mudanças e motivou as equipas. “Ela, quando chega à Polícia [Judiciária], consegue cativar aquela gente toda”, afirma Pedro Albuquerque, que, na altura, integrava o corpo de segurança pessoal da PJ. “Aquela personalidade chega lá e, com a sua humildade, pede ajuda para levar a bom termo o projeto que ela queria implementar. E isso foi-lhe suficiente para que aquela casa tomasse uma dinâmica que nunca mais parou (até à saída dela, infelizmente).”
Este homem, também ele já reformado, foi durante anos um parceiro diário de Maria José Morgado. “Eu era a pessoa que zelava pelo bem-estar dela na polícia”, explica, sublinhando que era um “chefe de gabinete encapotado”. Tinha a função de “fazer com que ela estivesse nos sítios certos, a horas certas, sem falha nenhuma, onde ela pudesse só pensar no processo e o resto deixava por minha conta”, explica.
Hoje, é um velho amigo da família e não esconde a admiração que sente pelo profissionalismo que sempre observou. “Sou muito suspeito”, sublinha.
Ainda sobre o trabalho na PJ, Pedro Albuquerque destaca as mudanças que Maria José Morgado implementou: “Ela mudou tudo, a maneira de investigar, tudo. [Dizia-nos que] “não é papel, vamos para a rua, é aí que se trabalha”. E conseguiu ter grandes resultados”, relata.
Esses resultados estavam patentes em casos de grande mediatismo: o caso Vale e Azevedo ou dos parques da Expo são apenas dois exemplos. Apesar disso, a passagem pela PJ seria breve e, após dois anos, Maria José Morgado é pressionada a pedir a demissão. “A minha orientação de combate à corrupção não foi bem aceite, porque estávamos a conseguir bons resultados, pela primeira vez”, diz a procuradora.
Na altura, Celeste Cardona (CDS) era ministra da Justiça, integrando o governo de Durão Barroso (PSD). O diretor da PJ era Adelino Salvado. Maria José Morgado investigava o caso de gestão fraudulenta na Universidade Moderna, no qual implicaria a ministra e Paulo Portas, razões que acabariam por ser associadas à sua saída forçada. “Foi tudo muito indireto, muito velado e com uma pressão muito grande. Não eram eles que me iam demitir porque, na altura, o nosso trabalho era popular e pagariam um preço demasiado elevado se fossem eles a demitir-me. Mas, se eu não me demitisse, acabava por não ter recursos. Porque é aquela coisa: se não podes matar o cavaleiro, deita abaixo o cavalo, não é?”
A pressão materializou-se, portanto, em falta de recursos humanos, financeiros e equipamentos. Acabaria por demitir-se num fax com “três linhas” escrito a partir da Ericeira, conforme descreve Pedro Albuquerque que destaca também a atitude inédita da equipa perante a demissão. “Posso traduzir assim: quando foi a saída dela, todos naquele departamento – que éramos cerca de 135 – estiveram presentes, desde o mais pequenino ao mais graduado. Portanto, pode ver o poder de motivação que aquela senhora tinha”, relata.
Após a saída, a polémica continuou e chegou a dar origem a uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembleia da República, para averiguar as razões da demissão. Apesar de ter feito correr muita tinta, não se chegou a apurar qualquer conclusão. “Deu grandes parangonas de jornais, mas não deu nenhum resultado, porque ninguém estava interessado [nisso]. E, pronto, foi assim. Depois voltei para o Ministério Público e continuei a fazer o costume”, diz Maria José Morgado que insiste em desdramatizar a situação.
Nesta altura, desempenha funções como Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação de Lisboa. “Isso correspondeu à progressão normal da carreira, porque ao fim de determinados anos nós subíamos na carreira para procuradores-gerais adjuntos e tínhamos de ir para um tribunal superior”, explica. Em 2006, é nomeada coordenadora do processo Apito Dourado, poucos meses antes de ser indicada diretora do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, onde esteve nove anos. “Aí regressei à base, digamos assim, à luta dura, ao contacto com a polícia, a objetivos de combate ao crime. E combater o crime foi toda a minha vida. Quando estava em casa, não falava de outra coisa”, conta.
Maria José Morgado desempenhava funções de gestão e chefia do departamento. Teve em mãos casos como as suspeitas de fraude no BCP, liderado por Jardim Gonçalves, e no Banco Privado Português, liderado por João Rendeiro, as suspeitas de corrupção da administração dos CTT, o caso das secretas ou o caso Taguspark, entre outros. Neste período, não “despachava diretamente processos”, mas reconhece que a carga de trabalho era bastante avultada. “Tínhamos de estudar a maneira de resolver a pequena e a média criminalidade e tratar da grande criminalidade altamente organizada. Tudo isso exigia métodos de trabalho diferentes. Era um quebra-cabeças”, assume.
“O que eu procurava era celeridade, justiça e equidade, que é uma coisa sempre muito difícil. Simplificar, acelerar e conseguir justiça. Para isso, tínhamos de puxar muito pela cabeça, fazer muito com pouco, que nós não tínhamos grandes recursos (e continuamos a não ter). E, no fundo, a máquina promotora de toda a mudança era a vontade das pessoas. Tinha de conseguir motivá-las. As pessoas tinham de gostar daquilo e identificar-se com o que estavam em fazer. Essa é sempre a parte mais difícil”, acrescenta a magistrada.
De tal forma o considera que, em 2003, chegou a lançar o livro O Inimigo Sem Rosto – Fraude e Corrupção em Portugal, em conjunto com o jornalista José Vegar. A obra vendeu mais de 32 500 exemplares, e conta com cinco edições – a última datada de 2007. Nela, é descrito de forma simplificada e com recurso a exemplos hipotéticos como a corrupção tece as suas malhas através de empresas de fachada, contas em paraísos fiscais, “sacos azuis” e lavagem de dinheiro. Neste livro, editado pela Dom Quixote, Maria José Morgado salientava ainda a necessidade que sentia “enquanto magistrada, de quebrar o isolamento autista em que se vive nos tribunais, e de perceber que em toda a parte há gente interessada neste combate sem tréguas”.
O seu inconformismo perante a omnipresença da corrupção foi sempre uma constante. Apesar disso, nega ter assumido o papel de justiceira através da sua profissão. “Não. Isso é erradíssimo e é uma tentação totalitária. Nós não estamos a impor a nossa opinião. Estamos a aplicar uma lei para restabelecer os valores que foram violados com a prática do crime. Portanto, estamos sempre ligados à prática do crime concreto, de acordo com uma lei que tem provisão prévia estritamente aplicada àquele caso e, portanto, agimos sob o império e égide da lei e não da tirania”, explica.
Em 2015, a saída de Francisca Van Dunem para o Ministério da Justiça deixaria vazia a cadeira da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa. Joana Marques Vidal, na altura Procuradora-Geral da República, levou três nomes a votos. A escolha de Maria José Morgado foi unânime e sem surpresas, de acordo com notícias da altura. Este seria o cargo que iria desempenhar até dezembro de 2018, quando se jubilou, sem, no entanto, abandonar de imediato o Ministério Público.
São estes os adjetivos que Laura Sanches utiliza para descrever a mãe que este ano se afastou definitivamente dos tribunais. De facto, a aposentação não é pacífica para quem dedicou a vida ao trabalho. Nesta nova fase, Maria José Morgado assume a ambiguidade de sentimentos: “É um 50–50. Estando lá já me custava, foram muitos anos. Mas agora também me custa [afastar-me]. Nunca estamos bem, é o que é.”
Também Laura Sanches diz não crer que possa ver a mãe a “desligar completamente”. “Eu acho que há coisas que ficam sempre. As coisas que realmente têm muito que ver com ela e, portanto, nunca estará [parada]”, diz.
De facto, Maria José Morgado nunca abrandou o ritmo, mesmo quando foi confrontada com a morte do marido, em 2010. Pedro Albuquerque diz mesmo que a dedicação ao trabalho aumentava propositadamente, como forma de lidar com a dor. “Outra pessoa qualquer pararia durante meia dúzia de dias, para se recompor, e ela, a única forma que ela tinha de se recompor, era ter mais trabalho”, relata. “Ela queria trabalhar, tinha de trabalhar e queria chegar a casa estafada para não pensar naquilo”, explica o colega de trabalho.
Além disso, Maria José Morgado continua a estar “sempre atenta e sempre a escrever e a fazer o mesmo, ou seja, a prevenção à corrupção, nos seus artigos”, ressalva Pedro Albuquerque. “Ela é uma voz que as pessoas respeitam. Respeitam-na pelo seu trabalho e porque é uma voz que já demonstrou para o que está virada e quer combater a corrupção. Incomoda muita gente, claro, tanto à direita como à esquerda, porque o crime está em todo o lado”, refere. “Aquela senhora não tem papas na língua. Ainda hoje ninguém se atreveria a pedir-lhe o que quer que fosse”, acrescenta, sublinhando a idoneidade que a magistrada sempre fez por preservar.