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IV. Suicídio em números

De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde, existem cerca de 800 000 suicídios por ano, no mundo, o que equivale a uma morte por suicídio a cada 40 segundos. Porém, o número de tentativas de suicídio poderá ser até 30 vezes superior a este número. A mesma entidade explica que, “todos os anos, morrem mais pessoas por suicídio do que por HIV, malária, cancro da mama, ou na guerra e por homicídio”.

Em Portugal, estima-se que, por dia, em média, três pessoas morrem por suicídio, número presente no documento “Vamos falar sobre suicídio?”, desenvolvido pela Ordem dos Psicólogos Portugueses.

Embora não se deva comparar números entre curtos períodos de tempo, sabendo que com a chegada da pandemia por covid-19, em 2020, já foi registado um aumento no número de pessoas com depressão e com ansiedade*, em Portugal, e que se estima que 90 % dos suicídios consumados ocorrem em pessoas que têm alguma doença mental, e, destas, 60 % tinham uma doença afetiva, das quais se destaca a depressão, como indicado no manual Prevenção do suicídio, quisemos perceber se poderiam, ou não, ter-se notado efeitos agravados no que diz respeito ao número de tentativas de suicídio ou suicídios consumados. Inclusive devido ao artigo publicado pela ONU, a 10 de setembro de 2021, em como “estudos mostram que a crise global exacerbou os fatores de risco associados a comportamentos suicidários, tais como o desemprego, trauma ou abusos, distúrbios de saúde mental e barreiras ao acesso a cuidados de saúde mental”.

 

*Um estudo do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), que envolveu 929 pessoas, feito entre novembro de 2020 e fevereiro de 2021, permitiu aos investigadores concluir que, dos 929 participantes, 26,9 % apresentaram sintomas de ansiedade, 7 % de depressão e 20,4 % ambos os transtornos, sobretudo após o início da pandemia.

De acordo com dados apresentados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2018, registaram-se 989 mortes por “suicídios e lesões autoprovocadas voluntariamente”, em Portugal. Verifica-se ainda que o número de suicídios foi bastante superior (733) no sexo masculino relativamente ao sexo feminino (256). No entanto, estima-se que as tentativas de suicídio nas mulheres são superiores às dos homens. Em termos etários, apesar de o suicídio ser uma causa de morte importante a considerar em jovens (é a segunda causa de morte entre os jovens em todo o mundo, dos 15 aos 34 anos – dados disponibilizados pela Ordem dos Psicólogos Portugueses), verifica-se que a taxa de suicídio aumenta com a idade, encontrando-se a taxa mais elevada entre os 75 e 84 anos.

Em 2019, segundo dados apresentados pela mesma entidade, registaram-se 975 mortes por “suicídios e lesões autoprovocadas voluntariamente”, em Portugal, dos quais 738 eram do sexo masculino e 237 eram do sexo feminino. Relativamente a 2020, a mesma entidade divulgou um total de 941 mortes por “suicídios e lesões autoprovocadas voluntariamente” em Portugal, das quais 733 eram pessoas do sexo masculino e 208 do sexo feminino. Em relação ao número de suicídios, não existem dados oficiais posteriores a 2020.

Não se tendo verificado um aumento dos números de 2019 para 2020, Ana Matos Pires, psiquiatra e elemento da Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental, esclarece ainda que “no início da pandemia houve muitas reações depressivas que não se transformaram, depois, em doenças depressivas, e muitas reações ansiosas que não se transformaram, depois, em doença”. “A resiliência, felizmente, existe”, assegura.

Sobre o número de registos de comportamentos suicidários por parte do INEM, o Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise (CAPIC) – que foi criado pelo INEM em 2004 “com o intuito de atender às necessidades psicossociais da população e dos profissionais”– disponibilizou, ao Gerador, dados nacionais entre 2016 e 2021. Dentro dos comportamentos suicidários, distinguem três tipos de ocorrências: tentativa de suicídio*, intenção suicida** e ideação suicida***. De uma forma geral, podemos observar um aumento significativo do número de comportamentos suicidários registados em 2020 e 2021.

* Tentativa de suicídio: corresponde ao envolvimento num comportamento potencialmente autolesivo em que há uma intenção implícita ou explícita de morrer como resultado desse comportamento.
** Intenção suicida: a intenção que uma pessoa tem de agir sobre os seus pensamentos suicidas e a expectativa que tem de que os seus atos suicidas resultem no término da vida.
*** Ideação suicida: caracterizada por pensamentos relacionados com terminar a própria vida. Estes pensamentos podem ser vistos como antecipadores de atos suicidas, no entanto, também podem referir-se a desejos ou à formulação de um plano para efetivar o suicídio, sem que haja necessariamente uma passagem ao ato.
– Definições presentes no manual Prevenir o Suicídio – O Papel dos Psicólogos e Psicólogas (2022)

Legenda: Número de ocorrências relacionadas com comportamentos suicidários, a nível nacional, entre 2016 e 2021. Números disponibilizados pelo CAPIC – INEM.

Legenda: Número de ocorrências por comportamento suicidário, a nível nacional, entre 2016 e 2021. Números disponibilizados pelo CAPIC – INEM.

 

Apesar de o CAPIC apresentar dados relativos às faixas etárias e género, estes referem-se à totalidade das pessoas assistidas e não estão categorizadas por problemática/tipologia de ocorrência, pelo que não conseguimos aferir se existe uma faixa etária que sobressaia no que diz respeito a comportamentos suicidários, especificamente.

Cátia Alves, coordenadora do Gabinete de Marketing e Comunicação do INEM, explicou-nos ainda que, em relação ao número de suicídios consumados, “até muito recentemente não eram realizados registos de causas de morte, pelo que não registavam os suicídios”. “Apenas considerávamos morte inesperada e/ou traumática. Recentemente, e após implementação de uma nova aplicação de trabalho, este registo já está a ser efetuado, embora ainda esteja em processo de desenvolvimento e, portanto, os dados não são representativos”. Por outro lado, não deixa de fazer a ressalva de que, “a respeito de se assumir o suicídio como causa de morte, existem situações que se encontram em investigação quanto ao contexto de morte e não são assumidas como suicídio. Portanto, os números serão sempre aproximações e nunca dados exatos desta causa de morte”. Porém, no que respeita “à classificação de tentativa, intenção e ideação, temos os relatos dos próprios, pelo que são mais exatos”.

A dificuldade de chegarmos aos números

 

Desde que iniciámos esta investigação e até julho de 2022, os dados mais recentes divulgados pelo INE, relativos ao número de suicídios em Portugal, correspondiam ao ano de 2019.

Por isso, entrámos em contacto com a Direção Geral de Saúde (DGS), no dia 12 de julho, pedindo “informação sobre o número de suicídios e número de tentativas de suicídio nos últimos anos, uma vez que não existiam estatísticas públicas desde 2019”.

Simultaneamente, entrámos em contacto com o INE, a 15 de julho, enviando um formulário de contacto em que explicámos a finalidade desta reportagem e deixámos algumas questões, tais como: a razão por detrás do desconhecimento do número de suicídios, em Portugal, a partir de 2019 (último ano com dados disponíveis, à data do contacto); o pedido do número de suicídios em 2020 e 2021; o número de tentativas de suicídio; dúvidas sobre a forma como se contabilizam estes números; se estes números estavam a ser analisados, nomeadamente por grupo de risco; ou se tinham dados sobre o número de pessoas com depressão, em Portugal. No próprio dia, recebemos uma resposta com a indicação do link no qual poderíamos consultar os dados relativos ao número de suicídios, em Portugal, em 2019. No dia 19 de julho, reforçámos o pedido de resposta às perguntas que tínhamos enviado, uma vez que nenhuma delas fora, de facto, endereçada na resposta do INE.

No dia 20 de julho, fomos contactados por Maria João Rebelo, do serviço de difusão do INE, dizendo: “Lamentamos, mas a informação que enviámos é a que está disponível. Contudo, sugerimos o contacto com a DGS (Direção-Geral da Saúde) na tentativa de obter mais alguma informação.” Respondemos, de seguida, perguntando se teriam algum contacto direto na DGS que nos pudessem facultar. A resposta foi negativa.

A 25 de julho, conseguimos falar com Diana Mendes, do gabinete de imprensa da DGS, via chamada telefónica, que nos informou de que os temas relacionados com a saúde mental saíram da alçada da DGS, ficando agora sob responsabilidade do Programa Nacional para a Saúde Mental. Adiantou ainda ter a sensação de que os números de morte por suicídio referentes ao ano de 2020 estariam quase a ser tornados públicos, mas que teria de ser o INE a fazê-lo, e que as respostas às nossas perguntas teriam de ser dadas diretamente pelo Ministério da Saúde, sendo que estava a par de que o processo do nosso pedido já estaria em andamento.

A 2 de agosto, enviámos um novo email fazendo um pedido de entrevista a um representante do INE. Partilhámos que, após falarmos com uma representante da DGS que nos indicou que os números dos suicídios em Portugal são oficialmente lançados pelo INE e que decorrem de um processo moroso em que as mortes são analisadas caso a caso, gostaríamos de falar com alguém do INE que fizesse parte deste processo de confirmação dos números para percebermos como o mesmo é feito e quais os procedimentos envolvidos. Não tendo obtido resposta, reforçámos este pedido, via email, no dia 16 de agosto. A 19 de agosto, recebemos o seguinte feedback por parte da Sra. Ernestina Baptista, do serviço de comunicação do INE: “Uma vez que deu conhecimento ao Serviço de Comunicação, seremos nós a prosseguir este assunto. O processo de articulação interna e internacional no âmbito da classificação dos óbitos pode ser descrito pelo INE. No entanto, os técnicos desta área encontram-se de férias, pelo que teremos de aguardar pelo seu regresso, em setembro.” A 22 de agosto, respondemos a este email pedindo uma previsão de data de regresso dos técnicos. No mesmo dia, Maria Manuel Martins, diretora do serviço de comunicação do INE, respondeu-nos: “Estimamos que possa contar com envio de informação nossa no final da semana que termina a 9 de setembro.”

Já em setembro, no dia 5, através da entrevista com Ana Matos Pires, soubemos que o INE havia publicado, entretanto, números relativos ao ano de 2020. No dia 8 de setembro, fomos contactados via email pelo INE, em que partilharam o link para as estatísticas de suicídios, em Portugal, no ano de 2020, “por sexo, grupo etário e municípios”. Adiantaram ainda que “o apuramento do número de óbitos por causas de morte, incluindo os óbitos causados por ‘suicídios e lesões autoprovocadas voluntariamente’, é obtido pelo INE com base nas codificações das causas de morte efetuadas pela Direção-Geral da Saúde, que assegura este procedimento moroso tendo em conta as diretrizes da Organização Mundial da Saúde e com base nos dados dos Certificados de Óbito”. “O INE, em articulação com a DGS, assegura a validação final dos resultados tendo em conta a coerência anual dos óbitos por causas de morte com os dados demográficos, em termos de sexo, grupos etários e geografia, e em termos de coerência temporal com os anos anteriores”, acrescentaram. Por fim, nesse mesmo email, foi-nos transmitido que o INE não tem “dados sobre tentativas de suicídio”.

Sem obter mais nenhuma resposta por telefone ou via email, tentámos prosseguir contacto com a DGS e o Ministério da Saúde, lembrando que o processo do nosso pedido já estaria em andamento desde o final de julho, e, a 12 de agosto, voltámos a enviar um email para aferir se seria possível darem-nos um ponto de situação do despacho institucional. De 24 de agosto a 2 de setembro, ligámos três vezes, sem sucesso, e, a 6 de setembro, enviámos um novo email. Não obtivemos nova resposta por parte da DGS ou do Ministério da Saúde até à data de fecho desta reportagem – 16 de setembro.

Também tentámos chegar a números e outro tipo de informações junto da Polícia de Segurança Pública (PSP). A 21 de julho, fizemos o primeiro contacto telefónico para aferir a disponibilidade de um representante da PSP para conversar connosco. Fomos atendidas pelo chefe Nicolau, do Gabinete de Imprensa e Relações-Públicas da PSP, que nos pediu que enviássemos um email com algumas informações como uma breve apresentação do Gerador, a finalidade da nossa reportagem, ou as questões que gostaríamos de levantar. O email com todos os elementos requisitados pela PSP foi enviado, pelo Gerador, a 22 de julho. No dia 27 de julho, recebemos um email do chefe Nicolau que confirmava a disponibilidade da PSP: “A PSP informa que está disponível para colaborar na reportagem em causa. No entanto, o interlocutor só terá disponibilidade para a próxima semana, pelo que se solicita a indicação da V/ parte, de uma data para agendamento. Adicionalmente, questiona-se qual o formato que pretendem para a realização da entrevista (presencial, telefone ou videoconferência).” No mesmo dia, respondemos a este email, avançando a nossa disponibilidade.

Entre 28 de julho e 12 de agosto, ligámos frequentemente para o Gabinete de Imprensa e Relações-Públicas da PSP. No total, fizemos 26 chamadas, de 1 a 12 de agosto, com o intuito de agendar a entrevista, das quais 10 tiveram resposta por parte do chefe Nicolau ou da comissária Patrícia Firmino. Ao longo destes contactos, o feedback manteve-se, dando conta de que o intendente destacado para falar connosco estaria com um “calendário muito complicado”.

A 12 de agosto, não tendo obtido resposta por via telefónica, enviámos um novo email procurando saber se haveria disponibilidade para realizarmos a entrevista até dia 9 de setembro ou de, em caso contrário, haver a possibilidade de outro representante da PSP falar connosco, reforçando ainda o nosso pedido para adiantarem os dados estatísticos que iam mencionados nas perguntas que endereçámos à PSP no dia 22 de julho. Não tendo obtido resposta, a 18 de agosto, voltámos a contactar a PSP por via telefónica, tendo-nos sido dito que fariam um esforço para responder por escrito ao maior número possível das nossas perguntas e que, caso ficasse algo por responder, tentaríamos agendar a conversa com o Intendente.

De 25 de agosto a 1 de setembro, tentámos entrar em contacto sete vezes, sem obter respostas, enviando, nesse mesmo dia, um novo email. Ligámos à PSP mais quatro vezes, entre os dias 5 e 6 de setembro, sem sucesso. Dia 7 de setembro, recebemos um email diretamente do intendente Nuno Bugalho Carocha dizendo: “Tendo sido indicado como interlocutor da PSP para corresponder ao V/pedido, por grande sobrecarga de agenda, não me será possível corresponder nas próximas duas semanas. Lamento o incómodo causado, mas não tenho qualquer capacidade de solucionar este problema. Caso pretendam abordar o tema depois dessa data, poderemos agendar.”

Tendo em conta as datas de fecho da reportagem e a longevidade do adiamento desta entrevista por parte da PSP, comunicámos o nosso lamento por não ter sido possível encontrar um espaço na sua agenda para conversar connosco ou responder às nossas questões por escrito, por vermos o testemunho da PSP como fundamental para a nossa reportagem, e por termos de avançar sem o mesmo.

Que caminho é feito até se chegar aos números de suicídios, em Portugal?

 

Sabendo que o suicídio é uma questão que entra num domínio legal e perante a dificuldade em perceber, de uma forma clara, como e por quem é registado e tratado o número de suicídios em Portugal, fomos procurar saber que processos decorrem a partir do momento da morte junto de João Gouveia Nascimento, médico especialista em medicina legal.

O mesmo começa por nos explicar que “um médico especialista em medicina legal é um médico que tirou uma especialidade médica que se dedica às questões que envolvem o direito, ou seja, o nosso objetivo é ajudar os juízes a tomarem as melhores decisões em áreas em que não são entendidos”.

Procurámos traçar o caminho que se percorre até chegar ao número de óbitos. Uma das primeiras distinções que João destaca é entre a verificação de óbito e a certificação de óbito – duas fases distintas de um óbito em que um médico pode intervir. A verificação de óbito acontece, por exemplo, quando se chama o INEM e, chegando ao local, “a equipa médica verifica que a pessoa está morta, então, nessa situação, o médico do INEM faz a verificação do óbito, isto é, declara que aquela pessoa está morta”. “A certificação do óbito já é um processo mais legal que pode ser qualquer médico a fazê-lo, inclusive os médicos dentistas”, nota. Explica-nos ainda que aquilo que está previsto é ser o médico de família a certificar um óbito “em situações de morte que estamos à espera – por exemplo, uma pessoa de 90 anos com cancro terminal”, ou um médico dos cuidados paliativos. Outro princípio é ser o médico “que avaliou a pessoa nos últimos sete dias de vida”, nos casos em que tal se aplica. “À falta destes médicos, pode entrar o médico de medicina legal”, esclarece.

João distingue ainda três tipos de mortes: “mortes naturais de causa conhecida, mortes de causa ignorada ou indeterminada, ou as mortes de causa violenta em que há a intervenção daquilo a que chamamos de agente externo, normalmente provocada por traumatismos”. “Nas situações de morte violenta e morte de causa ignorada ou indeterminada, a lei determina que esses cadáveres têm de ir para os serviços médico-legais. É aí que entra o médico de medicina legal ou outros médicos contratados para o efeito de certificar o óbito desses cadáveres”, acrescenta, pelo que, em caso de suicídio ou suspeita do mesmo, o procedimento deverá passar por um médico-legista que emite o certificado de óbito e, portanto, regista a causa da sua morte. Ademais, frisa que “o certificado de óbito é um ato exclusivamente médico”.

Porém, existem outras entidades que poderão estar envolvidas ao longo do processo. As forças de segurança fazem “autos de notícia que entram para a nossa [do Instituto de Medicina Legal] informação, e que explica aquilo que eles viram, o que encontraram e o que aconteceu. É um auto de ocorrência”, aponta. “Legalmente, está previsto que todas as mortes que possam ter ocorrido por suicídio tenham de passar pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INML)”, frisa. Note-se que, em Portugal, existe apenas um Instituto de Medicina Legal, com vários serviços pelo país.

Já nos serviços médico-legais, um cadáver pode ter dois destinos, uma vez que “nem todos os cadáveres que entram no Instituto de Medicina Legal são autopsiados e quem dá a indicação ou ordem de realização da autopsia é o Ministério Público”. João explica-nos que, em qualquer caso, é feito “o exame do hábito externo, isto é, olhar para o cadáver sem o abrir, sem o eviscerar, sem tirar os órgãos”. Quando o Ministério dá autorização, é feita também a autópsia com hábito interno, que implica a abertura do cadáver e a análise dos órgãos.

Em relação à realização ou não da autópsia, “a família acaba por não ter grande poder de decisão, a última palavra é do Ministério Público”, explica o médico. “A boa prática, que nem sempre acontece, diz que, em todos os cadáveres que entram no Instituto de Medicina Legal, deve ser feito o exame de hábito externo antes deles saírem. Já houve situações em que a autopsia tinha sido dispensada, foi feito um exame do hábito externo e foi enviado um auto para o tribunal, para o Ministério Público, a dizer que havia sinais duvidosos e que, na nossa opinião, aquele cadáver devia ser submetido a uma autopsia médico-legal. Mas, mais uma vez, a última palavra é sempre do Ministério Público”, garante. Note-se que quem toma esta decisão, dentro do Ministério Público, é um magistrado, não um médico.

João aclara ainda que 75 % da informação que leva à determinação da causa da morte, vem de fatores não associados à análise do cadáver. Essa informação pode vir de um auto de notícia por parte das forças policiais, mas também “está previsto ser feita uma entrevista com os familiares”. “Está previsto fazer aquilo que se chama a colheita da história social – falar com algum familiar, algum conhecido, saber, por exemplo, que medicação tomava, se tinha algum problema de saúde, se tinha acontecido algum problema anteriormente”. “Não lhe sei dizer ao certo em que percentagem de casos isso acontece. Diria que depende muito do sítio em que é feita a autópsia”, acrescenta.

Embora não seja uma prática comum em Portugal, existe ainda o conceito de autópsia psicológica – “uma colheita de história social com passos extra, que é feita por um médico especializado para fazer essa avaliação e envolve, não só falar com as pessoas próximas do cadáver antes de acontecer o óbito, como também ter acesso à informação clínica do seguimento que ele tivesse”, explica João. “O objetivo é sabermos como estava a estrutura mental daquela pessoa nos momentos anteriores a ocorrer o suicídio e ajudar a fortalecer esse diagnóstico diferencial de suicídio”, continua. João aponta ainda que, durante a sua experiência profissional, nunca viu uma autópsia psicológica ser feita em Portugal. “O mais próximo que já vi ser feito foi falar com os familiares, ter acesso à informação, mas nunca vi ser feito aquilo a que formalmente se chama uma autópsia psicológica”, nota. Não tendo, por isso, experiência empírica neste tipo de procedimento, partilha que, daquilo que investigou sobre o assunto, “a autópsia psicológica está indicada para mortes por suicídio, ou suspeitas de suicídio”.

Em relação a esta prática, Ana Matos Pires avança que “não é verdade que não se fazem autopsias psicológicas, mas é verdade que se fazem rarissimamente”. “É uma técnica cara, morosa”, que envolve várias pessoas com formação na área da saúde mental como “psiquiatras, psicólogos, enfermeiros especialistas, algumas pessoas com formação na área do serviço social e gente do lado da medicina legal”, e, “portanto, não é uma prática habitual”. Apesar de ser preciso desenvolver investigações bem fundamentadas para provar que esta medida seria realmente eficaz para ser tomada como um procedimento a fazer na maioria dos casos, por parte do Governo, Ana afirma que a Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental “acha que as autópsias psicológicas são uma boa medida”.

Focando-nos no caso de uma morte por suicídio, João explica que, “por definição, uma morte por suicídio tem de ser uma morte violenta”, ou seja, uma morte que teve influência de um agente externo. Para tentarmos perceber melhor como decorre todo o processo, o médico-legista elencou as várias etapas percorridas quando se dá uma morte por alegado suicídio.

Outro fator significativo para compreendermos o trajeto feito até chegarmos às estatísticas nacionais relacionadas com o suicídio é o tipo de elementos que existem num certificado de óbito, visto ser uma das fontes primárias para a identificação e agregação de mortes por causa.

João mostrou-nos como se preenche um certificado de óbito, na página do SICO, esclarecendo o tipo de informações que o mesmo contém, das quais destacamos algumas: “O sexo é registado, o género, não”; o “estado civil”, que pode ficar registado como ignorado nos casos em que não se tenha essa informação; o campo destinado à profissão que, segundo João, “praticamente nunca é preenchido”; um registo da morada da pessoa; a ficha do INEM com a verificação do óbito; a classificação do tipo de óbito; o dia, hora e sítio onde a pessoa morreu; se estava infetada por covid, ou não; existe ainda um espaço para descrever a “cadeia de eventos mortal”, assim como um “espaço para informação adicional que não esteja diretamente relacionada com a morte (ex. doença psiquiátrica), mas não é um espaço de preenchimento obrigatório”; a “causa de morte”; e a decisão do Ministério Público sobre a realização, ou não, de autópsia.

Entendemos que, nestes casos, depois do médico-legista emitir o certificado de óbito com estas informações, submete-o ao SICO, que é uma plataforma online. Posteriormente, João diz não saber como é feita a agregação estatística do número de mortes por causa.

Consultando as Estatísticas da Justiça, um “site com informação diretamente do Instituto de Medicina Legal”, encontramos informação que, “supostamente, vem da classificação dos óbitos dentro do Instituto, a nível nacional”, não sendo considerada uma estatística nacional oficial por apenas contemplar os óbitos que foram certificados pelo INML.

Na área da etiologia médico-legal, conseguimos ver o número de atos realizados pelo INML por tipos de morte: morte violenta – homicídio; morte violenta – suicídio; morte violenta – acidente de trabalho; morte violenta – outros; morte natural e morte de causa indeterminada. Relativamente às mortes violentas por suicídio, vemos que foram registadas, nesta plataforma, 907 em 2019, 880 em 2020 e 952 em 2021. Se recordarmos os dados disponibilizados pelo INE sobre o número de suicídios em Portugal, notamos que os dados nacionais oficiais são superiores aos óbitos certificados apenas pelo INML, uma vez que foram contabilizadas 975 mortes por “suicídios e lesões autoprovocadas voluntariamente” em 2019, e 941 em 2020. Ana Matos Pires salienta estes “desencontros de números” entre os apresentados pelo INE e pelo INML e, quando lhe perguntámos por quais nos devemos guiar, a resposta foi que “aquele que serve para as estatísticas do país é o INE, agora, tecnicamente, acho que deviam coincidir”.

João não descarta ainda a hipótese de existirem algumas mortes registadas pelo INML como “causa violenta – outros”, mas que podem ser suicídios, por serem mortes que acontecem por interferência de um agente externo, mas em que pode não se ter conseguido determinar se foi uma morte acidental ou intencional. Se olharmos para os números de mortes por “causa violenta – outros”, registou-se, nas Estatísticas da Justiça, 985 em 2019, 1000 em 2020 e 1037 em 2021.

O possível problema de subnotificação do número de suicídios

 

A OMS reconhece que existem algumas ressalvas a ser consideradas quando avaliamos as estatísticas de suicídios nos vários países, notando que alguns não têm sistemas de registo de qualidade. “Dos 183 estados-membros da OMS para os quais foram feitas estimativas para o ano de 2019, 87 possuem dados de registo vital de boa qualidade (rotulados como alta e média qualidade) que podem ser usados diretamente para estimar as taxas de suicídio”, escrevem, apontando ainda que é mais provável que sistemas de registo de boa qualidade estejam disponíveis em países com rendimentos mais elevados.
Os restantes 96 estados-membros, que representam cerca de 61 % do número global de suicídios apresentam problemas de baixa qualidade dos dados de mortalidade por suicídio.

A mesma entidade alerta que o problema “de dados de mortalidade de baixa qualidade não é exclusivo do suicídio, mas dada a sensibilidade do suicídio – e a ilegalidade do comportamento suicida em alguns países – é provável que a subnotificação e a classificação errónea sejam problemas maiores para o suicídio do que para a maioria das outras causas de morte”, acrescentando que “o registo de suicídios é um procedimento complicado e multinível que inclui preocupações médicas e legais e envolve várias autoridades responsáveis que podem variar de país para país”. A OMS indica ainda que as mortes por suicídios são as que mais comumente são encontradas “mal classificadas de acordo com os códigos da 10.ª edição da Classificação Internacional de Doenças e Condições Relacionadas à Saúde (CID-10) como ‘óbitos de intenção indeterminada’ (códigos CID-10 Y10-Y34), e também como ‘acidentes’ (códigos V01-X59), ‘homicídios’ (códigos X85-Y09) e ‘causa desconhecida’ (códigos R95-R99)”.

Embora no mesmo artigo da OMS vejamos uma infografia sobre a qualidade dos dados das taxas de suicídio padronizadas por idade, com dados relativos a 2019, que indica Portugal como um dos países com registos de suicídios com a melhor classificação – 1 (numa escala de 1 a 4, sendo o 1 relativo a melhor qualidade de dados), permanece a dúvida, na comunidade científica, sobre a precisão das estatísticas sobre o suicídio em Portugal, por existirem indicadores que sugerem a existência de uma subnotificação dos mesmos.

De acordo com o estudo “Suicide time-series structural change analysis in Portugal (1913–2018): Impact of register bias on suicide trends”, publicado no Journal of Affective Disorders em 2021, os “suicídios mascarados constituem uma componente crucial do problema de saúde pública que é o suicídio e assume-se que é particularmente elevada em Portugal por entre mortes por causa indeterminada e por acidentes violentos”, acrescentando que “os suicídios mascarados podem resultar de um procedimento de registo impreciso que envolve forças policiais, médicos, codificadores, diferentes agências e falta de comunicação entre eles”.

Este é o primeiro estudo, de acordo com a pesquisa feitas pelos investigadores, sobre suicídio em Portugal que recolheu, por completo, a base de dados de fontes primárias desde o início do registo do número de suicídios em Portugal (1886), conseguindo identificar dados anuais incompletos ou ausentes, e olhando para mortes registadas como suicídios, mas também como acidentes e de intenção indeterminada desde o início do seu registo, o que permitiu examinar, nomeadamente, a ocorrência de irregularidades nos registos ao longo dos anos. O mesmo estudo aponta ainda, nas suas considerações finais, que, “em Portugal, de acordo com estudos internacionais, a ocultação do suicídio é um fator muito importante quando comparado com a maioria dos países e, embora alguns estudos nacionais antigos identifiquem o efeito de mascaramento do suicídio através de mortes por causa indeterminada, a maioria dos estudos recentes descartam este efeito, minimizando, assim, o erro que é considerado constante ao longo do tempo sem fazer nenhuma quantificação ou definição do seu significado”.

Ana Matos Pires declara que “há imensas mortes catalogadas como mortes violentas por causa desconhecida e que, efetivamente, são suicídios”, explicando que o afirma com segurança porque “há um rácio muito importante que é o número de casos de morte por suicídio sobre o número de mortes violentas de causa desconhecida e dizem os entendidos da estatística que um bom rácio deve andar à volta dos 0,5 ou menos. Ora, Portugal tem, em alguns sítios e períodos, rácios acima de um, o que indiretamente é uma medida que nos diz que estamos a notificar mal a morte por suicídio.”

João Gouveia Nascimento explica que “há suicídios mais típicos e outros menos típicos”, sendo “possível que uma morte por causa indeterminada seja um suicídio mascarado, mas também é possível ser um homicídio”. “Porém, as mortes por causa indeterminada não são tão frequentes quanto isso”, considera, apontando que “quando temos uma morte de causa indeterminada é uma morte, normalmente, em teoria, de causa natural, ou seja, não é uma morte violenta, só não conseguimos encontrar o porquê, visto não haver traumatismos”.

Se olhamos para dados do INE, de 2020, relativos a “outras mortes súbitas de causa desconhecida, mortes sem assistência, outras causas mal definidas e as não especificadas”, foi contabilizado um total de 4182 mortes, das quais 2507 eram do sexo masculino e 1675 do sexo feminino. Já as estatísticas da Justiça apontam 299 mortes por causa indeterminada, em 2019, 312 em 2020 e 354 em 2021.

Ana Matos aponta ainda que o SICO apareceu em 2014 com a previsão de se “avaliar num período de cinco anos se tinha havido alterações significativas com a entrada do SICO, ou não”, na notificação do número de mortes, porém “a pandemia veio, naturalmente, estragar esta possibilidade”. Ademais, vê a subnotificação como um problema multicausal, não sabendo “se a passagem do modo de registar os certificados de óbito [para o SICO] melhorou, ou não, a notificação”. “Depois, há um fator que, no meu ponto de vista, é muito importante para esta notificação errada que é o não uso habitual, em caso de dúvidas, da autópsia psicológica – porque é caro, porque implica com a vida das pessoas ao irmos bater à porta das famílias, mas é um instrumento muito útil na identificação do suicídio”, aponta ainda a psiquiatra.

Qual a importância de se saber o número de suicídios ou de tentativas de suicídio?

 

Sara Malcato, psicóloga e coordenadora do Serviço de Apoio Psicológico (SAP) da ILGA, ressalva que “quando não temos números”, significa que o fenómeno “é invisível, inexistente”. “Se é inexistente, porque vou estar a criar uma política pública, uma legislação ou um procedimento para um fenómeno que não existe?”, questiona, para concluir que “os números são fundamentais”, pois, “sem números, faz-se muito pouco neste país”. Nesse sentido, “os números interessam-nos, não para termos números, mas sim para podermos entender o fenómeno e porque nos dão indicação de estratégias de prevenção”, avança Ana Matos Pires.

“Os números interessam-nos, não para termos números, mas sim para podermos entender o fenómeno e porque nos dão indicação de estratégias de prevenção”

Ana Matos Pires

A psiquiatra aponta ainda alguns cuidados a ter na interpretação dos números que existem. Sendo o suicídio “um fenómeno raro, como em todos os que o são, não devemos tirar elações, em suicidologia, em espaços de tempo inferiores a 3–5 anos, porque é aí que a tendência nos dá informação, não é de um ao para o outro”. Ana esclarece que, por detrás desta indicação, está a noção de que “qualquer morte, para baixo ou para cima, pode ter implicações na percentagem”, pelo que “devemos ter números todos os anos”, mas as elações devem ser feitas a partir de maiores intervalos temporais.

Já em relação ao número de tentativas de suicídio, Ana garante que estes são ainda mais subnotificados do que os suicídios consumados e, nesse sentido, “na Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental, lutamos para que haja um botão que permita registar a tentativa de suicídio”. “É um assunto que tem de ser pegado e tem de haver uma estratégia de passarmos a saber duma maneira mais aproximada o número de tentativas de suicídio, porque a maioria não é notificada”, explicando ainda que quando alguém é recebido nas urgências de um hospital é-lhe feita a triagem de Manchester que permite registar o efeito físico observável no utente e não o que o possa ter provocado, como por exemplo, uma tentativa de suicídio.

Outra questão apontada pelos entrevistados para esta reportagem foi o facto de os dados disponibilizados pelo INE surgirem de acordo com zona geográfica e sexo, não permitindo conhecer dados agregados de suicídios por variáveis como género, idade, profissão, ou história clínica. Nesse sentido, Ana aponta que a criação “do tal botão” poderia dar acesso a todos esses dados, destacando que uma das preocupações da Coordenação Nacional “é a boa colheita de dados epidemiológicos, porque só assim se fazem boas estratégias preventivas”.

Refletindo sobre a qualidade dos dados recolhidos de óbitos por suicídio, no documento “Live life: an implementation guide for suicide prevention in countries” (2021), pela OMS, são referidos alguns exemplos de informação que se recomenda incluir em situação de análise do número de suicídios ou de comportamentos autolesivos. Recomenda-se que seja recolhida informação de acordo com “a) contexto (por exemplo, nacional, região, distritos, serviços de internamento, campo de refugiados, etc.); e b) grupo da população (por exemplo, total da população por sexo, grupo etário, grupo étnico, grupo religioso, estado de migrante, urbano, rural e estado socioeconómico); calcular taxas (por morte ou casos por 100 000 habitantes) juntamente com números que identifiquem subpopulações impactadas desproporcionalmente; rever dados anuais para identificar tendências.”

VII. Contactos úteis

*O conteúdo desta reportagem não substitui a procura e a consulta de ajuda profissional

Número Europeu de Emergência
112

Serviço de Aconselhamento Psicológico da Linha SNS24
808 24 24 24

Linhas de Apoio e Prevenção do Suicídio (todas garantem o anonimato):

SOS Voz Amiga
Lisboa, das 16h às 24h
213 544 545 / 912 802 669 / 963 524 660

Linha Verde gratuita
800 209 899 (entre as 21h e as 24h)

Conversa Amiga
Inatel, das 15h às 22h
808 237 327 / 210 027 159

Vozes Amigas de Esperança de Portugal
Das 16h às 22h
222 030 707

Telefone da Amizade
Porto, das 16h às 23h
228 323 535

Voz de Apoio
Porto, das 21h às 24h
225 506 070

Apoio a Sobreviventes:

www.associacaosobreviver.org/ | www.fb.com/depoisdosuicidio

Esta página é um dos capítulos da reportagem “Suicídio em Portugal: como se pensa este comportamente em sociedade”.

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