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*Esta reportagem surge no âmbito do género jornalístico de jornalismo literário, pelo que foram usados recursos narrativos ao longa da mesma.
Era noite, e as ruas estavam lentas. No lugar onde normalmente passam os carros, havia o espaço livre e, só por poder lá estar, ela deslizava. Sem pressa alguma, ziguezagueava pela avenida. De um lado ao outro, riscando as faixas de trânsito, rompendo as regras. Os cabelos atrás e o sopro no ouvido, o som das rodas no asfalto. Rua que não era sua, que foi feita para os veículos singulares, pela gente que passa sem nunca sentir o vento no rosto. O ar que não se pisa era seu, enfim.
Atrás vinha um carro, a quem se diz pertencer a liberdade. Liberdade questionada pela menina que vinha e ia. Ela, que não está num lugar seu, mas que, por tanto lá estar, faz casa desse lugar que é. O motorista não interrompe. Absorvido pela graça do deslizar em rodas, ele segue atrás, bem devagar, deixando a rua ser dela mais um pouco.
Essa história, eu ouvi da Laís. No dia em que nos conhecemos e, de boleia, passávamos pela mesma rua. Uma rua que nunca atravessei no ar.
O ano é 2020. Existe medo na rua, medo no toque e na ameaça de transitar. A casa ficou pequena por tanto se repetir, e, no scroll do telemóvel, vídeos mostram o corpo em movimento. Uma tábua de madeira, lixa e quatro rodas: o skate ressurge como um ato libertário
Através das redes sociais e após a admissão do skate como desporto olímpico, a prática tem vindo a popularizar-se nos últimos anos. Especialmente durante a pandemia da covid-19, muitas pessoas decidiram investir num skate e pôr o equilíbrio à prova. Dentre os novos adeptos, estão muitas mulheres, que até há pouco tempo eram socialmente desincentivadas a praticar este tipo de desporto.
Mas a essência do skate sempre foi a liberdade. Surge na década de 70 por aqueles que questionam, provando haver existência para além das linhas e regras impostas. E tal como o movimento das mulheres tem vindo a abrir brechas em paredes duras, o skate feminino cresce em Portugal a criar curvas onde havia retas, reforçando a ideia de que o skate é para qualquer um que queira skatar.
Sento-me no chão do skatepark improvisado na Doca do Espanhol, em Lisboa. Ao meu redor, estão Meggy, Joana e Maria. Os skates descansam ao seu lado, e o ambiente é de conversa descontraída, como se já nos conhecêssemos umas às outras. As três fundaram, em junho de 2022, a primeira zine de skate feminino de Portugal: a Betesga SkateZine.
«Fiz Erasmus em Barcelona, e lá tive contacto com as fundadoras de algumas revistas de skate, como a Dolores Magazine», conta a designer gráfica Joana Melo, de 21 anos. Quando voltou a Lisboa, decidiu fazer algo parecido em Portugal, com o intuito de criar um espaço seguro para a prática e desenvolver a comunidade feminina e não-binária no skate.
Até há pouco tempo, o skate era uma atividade tida como masculina. Apesar de não haver dados quantitativos que englobem toda a comunidade do skate, 80% dos skaters associados à Federação de Patinagem de Portugal ainda são homens. Segundo Carolina Barroso, de 16 anos, a falta de representatividade feminina nos skateparks é bastante desanimadora. «Normalmente, há uma ou duas raparigas, se tanto. É muito triste porque começamos a olhar para os outros e a não nos reconhecermos, a não nos sentirmos integradas. E, depois, começamos a pensar que aquilo não é para nós», diz a skater.
Margarida Santos (Meggy), de 21 anos, comenta que cada vez mais vê homens a incentivar o skate feminino, mas que ainda é comum haver quem não seja recetivo ao encontrar mulheres nos skateparks. Isso acontece principalmente porque muitas das raparigas estão num nível inicial da prática e, ao se depararem com o ambiente hostil do skatepark, não se sentem seguras para treinar. A cofundadora da Betesga diz que demorou para estar realmente à vontade entre os outros skaters. «Só quando atinges um certo nível é que ganhas mais legitimidade para andar confortável no skatepark. Do género: agora já mereço estar aqui. E não é assim, mas é o pensamento que todas têm quando começam», conta Meggy.
© Viriato Vilas-Boas
Acaba por ser um círculo vicioso: por ainda não saberem andar muito bem, as raparigas não vão aos skateparks, e por não irem aos skateparks, não conseguem evoluir na prática. «Os rapazes dizem que não andamos bem, mas como vamos ficar boas se eles não nos dão espaço para skatar?», questiona Maria Santos, de 18 anos, outra cofundadora da Betesga SkateZine.
Essa dinâmica dificulta a diversidade entre os praticantes. Viriato Vilas-Boas, presidente da associação algarvia de skate WallRide, começou a skatar há 20 anos e diz que nunca houve espaço para muita representatividade. «Sempre vi essa ausência. E quando não era uma ausência, era uma luta. E quando não era uma luta, era uma estigmatização. As raparigas ou eram assediadas, ou eram ridicularizadas.» Segundo ele, essa atitude afasta as mulheres do skatepark, o que impossibilita a criação de uma comunidade. «Nunca houve uma âncora para o skate feminino em Portugal, e é isso que se está a tentar criar agora», comenta.
Foi para construir uma rede de apoio e para se sentirem mais confortáveis ao skatar que coletivos e grupos de skate feminino e não-normativo começaram a surgir no país. O primeiro deles foi o Her Wheels, criado em 2019 pela brasileira Laís Reis. Depois, vieram o South Girl Skate, em Faro, a Betesga SkateZine, em Lisboa, e o GirlSkate, no Barreiro. Pouco a pouco, esses movimentos têm dado visibilidade à comunidade de skaters mulheres e pessoas não-binárias em Portugal, trazendo mais pluralidade aos ambientes do skate.
Segundo Liliana Rodrigues, investigadora do Centro de Psicologia da Universidade do Porto e presidente da associação feminista UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta), grupos como esses são essenciais para rompermos com um imaginário coletivo engessado. «Movimentos assim trazem-nos a possibilidade de dizermos que temos o direito de estar em todos os lugares, inclusive nos lugares de desportos mais subversivos. O movimento feminista, nomeadamente, desafia os estereótipos de género e nos possibilita a todos vivermos de forma muito mais ampla do que aquilo que nos foi imaginado coletivamente», diz a investigadora.
Para a socióloga e pesquisadora Ana Lúcia Santos, a criação desses coletivos também auxilia na expansão da própria prática, uma vez que mais pessoas se sentem acolhidas para começar a skatar. «Às vezes, nós precisamos desses espaços seguros para nos inserirmos em certos contextos e, depois, pouco a pouco, abrirmos o círculo», explica.
«É preciso destacar o skate feminino agora, para depois haver uma igualdade. Se não houver um speak up, a malta não vai ter a consciência de que nós existimos», diz Joana, da Betesga SkateZine. «Nós queremos que a cena seja igual para todos porque, de facto, somos todos iguais. Mas, se uma cena está mais em baixo, tens de puxá-la para cima para ela ficar ao mesmo nível», complementa Meggy.
Desde a fundação da zine, elas têm organizado encontros de skaters, chamados de skate jams, com foco no skate feminino e não-normativo. O objetivo é tornar comum a presença dessas pessoas no ambiente do skate, para que, eventualmente, a inclusão aconteça de maneira orgânica.
Betesga SkateJam no Portas Abertas do Centro Cultural de Belém. © Rita Carmo
Era início do outono, fazia sol, mas o vento já trazia algo que estava por vir. Chego ao Centro Cultural de Belém (CCB) e tento achar o meu caminho. Por entre os prédios, vejo pessoas a dançar numa aula livre de forró, encontro exibições de arte, livros para ler e um mercado artesanal. Em casa aberta, inaugurava-se a temporada de 2022–2023 do CCB, de nome Um chão comum, e, em simultâneo, acontecia o primeiro grande evento organizado pela Betesga SkateZine. No dia em que um dos centros culturais mais importantes do país decide respirar a arte no lado de fora, o skate está presente.
Sigo em passos vagos, atravesso a exposição de shapes pintados pela artista Mariana Simão e, logo à frente, vejo um grupo de pessoas a espreitar. Cerca de vinte indivíduos com o pescoço inclinado: alguma coisa no andar de baixo chamava-lhes a atenção. No fundo do som, percebo o barulho de rodas e tábuas a chocarem-se. Aproximo-me do batente e, também eu, inclino o pescoço. Lá em baixo, no ringue do CCB, estão mais de 100 skaters. Eles riscam o ar como se estivessem em timelapse, em movimentos focados e repetitivos. Com a presença dos projetos South Girl Skate e PushHer, além de marcas como CyberCafé, Pop, Saudade e Dilabor, a skate jam da Betesga criava a ponte entre as margens e um dos centros da cultura em Portugal. O vento seguia a anunciar a mudança, e a música estava sempre a dar. Eu desço as escadas e piso um chão que acaba de encontrar novos públicos.
São cinco horas da tarde, e o speaker anuncia o início da betesga jam, uma sessão de uma hora dedicada ao skate feminino e não-normativa. Abre-se espaço no ringue e, lentamente, começam a aparecer raparigas com o skate nas mãos. Se antes pareciam poucas, é porque estavam divididas, a praticar as suas manobras pelas laterais, em redor da pista. Agora, encontravam-se todas no meio. Eram cerca de 30 e, com tempo e calma, ficavam mais e mais à vontade com a oportunidade de skatar.
Corria uma rapariga de trancinhas no cabelo. Ela atirava o skate e pegava-o em movimento: um pé em cima, e o outro a dar impulso. Em alta velocidade, subia o obstáculo, dava um flip no ar e tentava cair com os pés na tábua. Ao microfone, o speaker Bernard Aragão continuava a dar o hype, nomeando as manobras feitas e incentivando as skaters. Perdeu-se a pressão, e todas elas arriscavam os seus truques, puxando umas pelas outras e vibrando todas as vezes em que alguém caía em pé. Alguns dos rapazes mantiveram-se alheios à jam e continuaram a skatar sem lhes dar muita atenção. As raparigas apareciam por entre o vulto dos homens, como se estivessem num espaço protegido, mas ainda à parte do todo.
Eu estava sentada à beira da pista, ao vê-las a fazer o que gostam, e, após o fim da jam, fui conversar com algumas delas. Mara e Aurora estavam extasiadas pela adrenalina. «É muito fixe porque dá tempo às raparigas de terem coragem para dar os seus toques e experimentar as suas cenas. É como um jogo: tu vais, tentas a tua manobra e voltas», diz Aurora Santos. «E ficas entusiasmada pelas coisas que as outras pessoas estão a tentar [fazer]», completa Mara Pascoal Lisboa.
Em apenas uma hora, o ambiente transformou-se completamente. As raparigas conversam entre si e sentem-se mais seguras para skatar mesmo na jam mista, com os rapazes. A skater Carolina Barroso celebra esse momento de união: «Em todos os eventos a que vou, conheço pessoas novas e encontro raparigas que me deixam orgulhosa por ver nelas o mesmo espírito, que é o espírito do skate», diz Carol. «É bué fixe porque elas estão espalhadas pela Tuga, e aqui estamos todas juntinhas», concorda Aurora.
Madalena Galante, de 15 anos, é a menina das trancinhas. Está toda contente com o skate debaixo do braço e comenta, de sorriso nos olhos, que nunca tinha feito uma manobra daquelas num obstáculo tão alto. Diz não sentir dificuldade em skatar com os rapazes, mas percebe a importância de dar espaço às mulheres. «Eventos assim ajudam bastante porque as raparigas começam a ver que o skate não é só masculino e que nós também podemos andar muito bem», afirma.
Converso com a Merry ao pé da pista improvisada. O barulho das manobras era alto, e falávamos aos gritos. Com 22 anos, Maria Roque é uma das professoras de skate da Pop Skate Shop no Parque das Gerações. A convite da Joana, Merry ajudou a organizar o evento e, enquanto falava, não conseguia conter a alegria. «Ó pá, ‘tá a ser incrível! Foi a primeira vez que eu vi miúdas efetivamente numa jam com os rapazes!», grita ao meu ouvido.
Carolina Barroso e Madalena Galante. © Thais Espezin / Betesga Skate Zine
Segundo a skater, ao contrário do que algumas pessoas podem pensar, criar uma secção só para o skate feminino e não-normativo não é um ato de segregação. «Ter uma jam assim não significa fechar a cena, é o oposto disso. Nós estamos a colocar um grupo de minoria, que nunca teve voz, num espaço seguro. Para, depois, poder abrir a possibilidade de convívio», diz Merry. Para André Filipe, realizador do documentário Push Her sobre skate feminino em Portugal, esse é um grande passo em direção a uma inclusão efetiva. «É importante criarmos esses espaços agora para irmos, aos poucos, quebrando essa bolha de proteção. Assim, as próximas gerações já virão com uma outra visão e, quem sabe, um dia os miúdos digam que querem skatar como uma rapariga», comenta.
Ao final do dia, homens e mulheres skatavam lado a lado. Elas exploravam os obstáculos como queriam e não tinham vergonha de tentar as suas manobras. O skate era, ali, só o skate, um lugar de expressão e de criar no espaço o fazer artístico. O CCB estava vivo, jovem, e cheio de criatividade. Sofia Mântua, Coordenadora de Comunicação do Centro Cultural de Belém, surpreendeu-se com o evento e lamentou o estigma que ainda circunda a prática. «O nosso objetivo é sempre usar a nossa influência para destruir os muros», diz ela, ao confirmar futuras parcerias com a comunidade do skate.
South Girl Skate
Levo o meu skate debaixo do braço e pergunto-me qual é a forma certa de fazê-lo. É a minha primeira vez e, para além do medo, levo na mochila um capacete e todas as proteções necessárias. Chego ao skatepark e vejo a sede da WallRide. Pais procuram os filhos que acabaram de sair da aula, enquanto rapazes e raparigas andam ágeis pelos obstáculos da pista. É um sábado quente, um dia de encontros.
Dali a algum tempo, iria acontecer a primeira jam noturna da South Girl Skate. Eu carregava o meu skate recém-montado de um lado para o outro, sem encontrar, em mim, a força para experimentar. Mas conforme a noite foi chegando, o skatepark foi-se esvaziando e mais raparigas apareceram. Catarina encoraja-me a subir para a tábua uma primeira vez. Tenho vergonha, mas ela dá-me a mão, explica-me os movimentos básicos e lembra-me sempre de flexionar os joelhos.
Com o céu escuro, Viriato e Catarina ligam focos de luz em cima de escadas, improvisando a iluminação da pista. A música enche o ar, e eu enxergo um mundo que eu nunca vi. Todos têm em si algo do outro, e veem-se no skate como um todo que é um. Há risadas, manobras, quedas e gente sentada só a conversar. Sorrio. Pratico o meu movimento em linha e acho graça de mim mesma por não ser capaz de dar a curva. Mas ninguém se importa e, quando os meus olhos se cruzam com os de outra rapariga, encontro ali um lugar de incentivo.
No total, apareceram sete mulheres. Algumas já assíduas, outras não. Emma Adams, de 39 anos, não conhecia o projeto e decidiu aparecer após ver a divulgação nas redes sociais. «Esse tipo de movimento é bué fixe para motivar as mulheres e sentirmos que temos uma comunidade», afirma. Era um momento de comunhão: sentámo-nos todas nos degraus do skatepark, elas contavam-me histórias e riam umas com as outras. Ella Munn-Giddings, de 32 anos, é de Inglaterra e mora em Faro desde 2017. Fala comigo num português estrangeiro e conta-me que jogava Tony Hawk Pro Skater, mas que só foi começar a andar de skate durante a pandemia. Quando conheceu a South Girl Skate, o entusiasmo para praticar ficou ainda maior. «Sinto-me mais à vontade para tentar coisas novas com as raparigas, porque elas são muito mais supportive [solidárias]», diz Ella.
Depois de andarmos todas de skate, cada uma à sua maneira e ritmo, Viriato chega com quatro caixas de piza e vamos comer à sede da WallRide. A luz estava baixa e o ambiente era leve. Alexandra Barros, de 21 anos, skater e coeditora da Lodo Zine, comenta que, antes da associação, nunca iria imaginar poder andar de skate de noite tão tranquilamente. Pipa concorda e diz que, apesar de a cena do skate em Faro ser ainda bastante pequena, o trabalho feito pela WallRide tem construído um ambiente acolhedor para toda a gente. Meggy e Maria da Betesga SkateZine são um exemplo disso: as duas viajam com frequência a Faro, só para skatar com as outras raparigas. «É impressionante porque toda a gente se dá com toda a gente. Rapazes com raparigas, faixas etárias diferentes, géneros, orientações sexuais e religiões. Eu nunca tinha estado em contacto com tanta gente diferente», comenta Pipa.
No livro Skateboarding and Religion (2020), o investigador Paul O’Connor aproxima a prática do skate da religião. Sendo um lifestyle sport, o skate vai muito além dos truques e manobras. Apresenta um universo próprio, em que normalmente se mergulha de corpo inteiro. O skate começa a ser um aspeto importante, senão central, da identidade da pessoa, motivando uma espécie de devoção. E por ser assim tão intenso, é bastante comum que praticantes queiram construir uma carreira através dele.
Especialmente após a sua popularização nos anos 90, o skate criou ao seu redor uma indústria única e autónoma, estimada a atingir os três bilhões de dólares até 2028. Essa indústria complexa permitiu que skaters conseguissem um retorno financeiro sem necessariamente ter de participar em competições. Seja através de patrocínios ou gravando as chamadas video parts, vídeos em que um grupo de skaters é convidado por uma marca para mostrar as suas habilidades em cima da tábua.
No entanto, para as mulheres, essas oportunidades são bem mais escassas. Segundo Laís Reis, skater e única jurada feminina da Liga Pro Skate em Portugal, ainda é muito raro marcas incluírem mulheres nas suas equipas. E, quando o fazem, cumprem apenas a quota mínima. Laís explica que isso estreita as possibilidades para as skaters que querem seguir carreira. «Para nós, mulheres, o caminho ainda é participar em campeonatos. Espero que, um dia, seja diferente, porque muitas mulheres não querem competir e preferem fazer vídeos, mas não há muito apoio nesse sentido». André Filipe, do projeto Push Her, comenta que, além disso, as marcas funcionam como gatekeepers da comunidade. Por isso, é fundamental que incluam skaters de outros géneros, para que essa presença seja normalizada.
Catarina Florido. © Bruna Soraia
Sem portas abertas, o skate feminino vai continuar minimizado. Se não há perspetiva de crescimento, é mais provável que as raparigas desistam da ideia de ser uma skater profissional, uma vez que não encontram apoios para isso. «O pessoal confunde por achar que nós só queremos os direitos iguais, mas não é isso. Nós queremos oportunidades iguais. Não preciso que ninguém faça nada por mim, só quero a mesma oportunidade», diz Laís. Segundo ela, ainda existe uma disparidade muito grande entre homens e mulheres no skate, especialmente em Portugal. «Quando você não passa por essa dificuldade, você acha que ela não existe. Mas eu vejo. No campeonato, por exemplo, no open masculino, todos os skaters têm patrocínio, enquanto no feminino, são só duas ou três», afirma a jurada.
Margarida Cepeda, de 16 anos, quer viver do skate. Apesar de não gostar tanto de competir, ela percebe que são os campeonatos que lhe vão dar visibilidade para crescer e abrir caminhos profissionais. Nos últimos anos, tem-se dedicado mais intensamente ao skate, participando em competições internacionais e gravando vídeos para as redes sociais. Aos poucos, tem vindo a ganhar mais destaque e apoio de marcas, mas indica que, quando se trata de incentivo ao skate feminino, Portugal está muito atrás dos outros países. «Se estivéssemos na Holanda, já teríamos patrocínios gigantes, mas acho que estamos a fazer a coisa certa. Indo para campeonatos lá fora, as pessoas vão começar a perceber que há skaters mulheres cá em Portugal», comenta.
– Laís Reis
Rafaela Costa, de 17 anos, é um caso excecional. Tida como uma das grandes apostas do skate português, chegou aos quartos de final do World Street Skateboarding, em Roma, e viralizou após ser a primeira mulher a dar um flip nos blocos do MACBA, em Barcelona. Hoje, é patrocinada por grandes marcas e tem levado o nome de Portugal a outros cantos do mundo. Em novembro de 2022, foi uma das cinco skaters convidadas pela Etnies Skateboarding para uma girls session na Califórnia. Rafinha, como é conhecida, comenta que jamais imaginava chegar aonde chegou. «Antes de andar de skate, nunca sequer tinha saído do país, e a primeira vez que saí foi para skatar. Essas coisas marcaram-me imenso», conta ela.
Madalena Galante. © Thais Espezin / Betesga Skate Zine
Não preciso de olhar para o mapa para saber o caminho até ao Parque das Gerações. Desço na estação de São João do Estoril e sigo o menino a skatar na beira de estrada. Era o primeiro dia do último circuito da Liga Pro Skate e, ao entrar pelo portão do skatepark, deparo-me com um ambiente bastante diferente das jams a que tenho assistido. Com maior espaço e estrutura, o campeonato mostra uma versão mais organizada da prática. Há uma bancada elevada para os jurados, banners de patrocinadores e arquibancadas para o público assistir à competição.
Na pista, vejo muitas raparigas a treinar as suas manobras. Uma delas puxa-me a atenção. É uma miúda pequenina, com cabelos encaracolados e postura alegre, chama-se Valentina dos Santos e tem apenas sete anos. Converso com Bruno Valentim, o seu pai, que fica na beira da pista, atento aos movimentos da filha. Ele conta que sempre teve interesse pelo skate e que, por isso, decidiu dar uma tábua à filha quando ela fez cinco anos. Valentina apaixonou-se pela prática e diz que sonha em ser uma skater profissional. A sua grande inspiração é a brasileira Rayssa Leal, medalha de prata nas Olimpíadas de Tóquio. Movido pelo entusiasmo da filha, Bruno ganhou coragem para começar a skatar, e os dois têm feito aulas juntos desde então. «Tens de ter uma rotina no skate, e eu nunca consegui conciliar isso. Mas quando vi isso nela, quis tentar também. Nunca imaginei conseguir descer uma rampa com o skate, e agora consigo. Só por causa dela», comenta Bruno.
Para a família de Matilde Ribeiro, de 12 anos, o desporto também trouxe muitas transformações. Há três anos, quando a filha lhes pediu um skate pelo Natal, João Pedro Ribeiro não pensou que uma simples prenda iria tomar tão grandes proporções na sua vida. Matilde está, hoje, em primeiro lugar no ranking nacional e almeja chegar às Olimpíadas de Paris, em 2024.
– Mónica Isabel Ribeiro, mãe da Matilde
Com um pouco de timidez, ela conta-me os seus planos e projetos no skate e, por um segundo, esqueço-me de que estou a falar com uma menina de 12 anos. Extremamente focada, Matilde pratica com frequência e vai a campeonatos internacionais a fim de expandir as suas habilidades. Segundo os seus pais, ela amadureceu muito desde que começou a praticar skate e, inclusive, melhorou o seu desempenho escolar.
Conversamos ao pé de uma pista no Parque das Gerações. Eles estão à vontade e conhecem muitos dos competidores que andam de um lado para o outro com o skate debaixo do braço. João diz que sempre viu a prática com um pouco de estigma, mas que descobriram ali uma comunidade que é como uma família, em que todos se apoiam e torcem uns pelos outros. «Temos aqui uma coisa que nos une a todos, e isso é que é importante», conclui.
– Natália Sanchez, presidente da Comissão de Igualdade de Género da World Skate
Quando surgiu, o skate estava longe de ser um desporto. Mantinha-se como um estilo de vida, uma atividade próxima da arte e da expressão de si próprio. No entanto, com o desenvolvimento da prática e a popularização de campeonatos, o skate foi-se expandindo e aproximando-se também desse conceito. Hoje em dia, é um desporto olímpico. E ainda que isso gere descontentamento por parte de muitos skaters, essa inclusão trouxe diversos benefícios para a prática. Principalmente, no que diz respeito ao skate feminino.
Por requisito do Comité Olímpico Internacional, foi criada, em 2017, a Comissão de Igualdade de Género da federação internacional World Skate, com o objetivo de assegurar os mesmos prémios e condições às categorias masculinas e femininas. Em Portugal, o coordenador nacional do Comité Técnico de Skate, Paulo Ribeiro, confirma essa uniformidade e garante que a Federação Portuguesa de Patinagem é promotora da igualdade de género.
De acordo com dados disponibilizados pela federação, houve um crescimento significativo do skate feminino em Portugal. Enquanto havia apenas 16 raparigas a competir na Liga Pro Skate de 2018, o ano de 2022 contou com 120 skaters femininas, o que equivale a um aumento de 650%. No entanto, apesar desse avanço, a participação feminina segue ainda muito abaixo da masculina, representando apenas 7.4 % dos 1604 competidores.
Para Natália Sanchez, presidente da Comissão de Igualdade de Género da World Skate, assegurar as mesmas condições nos campeonatos não é o suficiente. Quando a disparidade é estrutural, o trabalho deve ser feito desde a base. «É muito simples, para nós, impormos certas regras de igualdade de género, mas, depois, tem o outro lado que é a parte que precisa de crescer do zero. Não é possível haver mais mulheres em competições se não houver mais meninas em skateparks ou a fazer aulas em escolinhas», explica.
A fim de empoderar mulheres, a comissão viaja pelo mundo para realizar cursos técnicos ensinando skaters a organizar campeonatos, abrir escolas e atuar como juradas em competições. Argentina, Uganda e México foram alguns países visitados. Natália afirma que é importantíssimo haver mais diversidade no backstage dos campeonatos. «As mulheres também querem estar nesses lugares, mas é preciso dar-lhes a confiança de que elas conseguem chegar lá. Se tu vais a uma competição em que há speakers mulheres ou um painel de jurados com diversidade de género, começas a pensar que também podes estar ali», comenta.
Segundo a presidente, o objetivo principal da Comissão é normalizar a presença feminina em todos os âmbitos do skate. «Isso devia ser algo, como dizemos em espanhol, dado por hecho, algo que simplesmente acontece. Mas ainda não chegámos lá. Temos de nos lembrar de que o desporto não tem género», diz Natalia. Enquanto for necessária a criação de uma comissão de igualdade, é porque ainda há muito trabalho a ser feito.
Margarida Cepeda estava sem os fones. Eles haviam-se partido na noite anterior, e agora não conseguia acertar em nenhuma das manobras na competição de best tricks. Só lhe faltava uma rodada e, para continuar, teria de acertar em tudo. Mas, sem os fones, não se conseguia concentrar, porque é a música que lhe dá o tom do movimento.
No desespero, improvisa. Com o telemóvel na mão ao pé do ouvido, carrega no play e corre no skate. Ela sai do chão, mexe o corpo inteiro, e o tempo para para observar os seus gestos. O cabelo ao alto, a mão na altura do peito, e o olhar de quem está em casa. A tábua gira com um chute, e ela retorna à Terra com a maestria de quem dança. O skate é uma extensão de si, e é a música que a faz juntar as duas coisas.
Margarida lembra-me que, no skate, o estilo é importante. Não basta saber manobras, é preciso fazê-las como parte de quem és. E só é possível fazê-lo quando nos sentimos realmente à vontade. De acordo com um estudo feito pela Universidade do Sul da Califórnia, 76 % dos praticantes andam de skate para se divertir, o que ajuda a aliviar o stresse e a desenvolver a criatividade. Para Joana, da Betesga, o skate feminino e não-normativo traz mais liberdade nesse sentido. «Eu, se calhar, nunca na vida vou conseguir mandar um kickflip. Mas acho que nós, raparigas, temos aquela cena: se não conseguimos fazer isso, então como é que podemos chegar a outra manobra, de outra maneira? E, por isso, acaba por ser bem mais divertido», diz a skater.
South Girl Skate
Laís Reis comenta que, com mais mulheres no cenário, os homens começam a, lentamente, explorar mais. «Sinto que para eles é muita pressão e, aos poucos, vejo-os a libertarem-se, até no modo de se vestirem e se expressarem», afirma. Para André Filipe, o skate feminino tem retomado o verdadeiro sentido do skate. «Sinceramente, não me revia muito nas atitudes da comunidade e, com as raparigas, encontrei o meu lugar seguro. A essência do skate, na realidade, está nelas», diz.
O chamado skatefeminismo, termo cunhado pela investigadora canadense Steph Mackay, é um movimento, por vezes inconsciente, que vem rompendo com os estereótipos de género, abrindo um espectro de expressões dentro da comunidade. Em Faro, a primeira ação da South Girl Skate foi pintar a bandeira LGBTQIA+ no skatepark. «Queremos criar um espaço mais seguro para todos, inclusive para as pessoas que não se identificam nem como homens, nem como mulheres. No fundo, é um bocado como o feminismo no skate. No significado real do feminismo, que é a igualdade para todos», comenta Catarina, diretora do departamento.
«Estamos aqui a começar. Não dá para falar sobre skate feminino e não falar de intersecionalidade, por exemplo», comenta Merry. Segundo a skater, com a expansão do skate e com uma maior receptividade por parte dos praticantes, ela começa a ver mais diversidade dentro dos skateparks, mostrando que a prática é aberta a todos. «Para mim, o skate está a voltar. Isso, para mim, é voltar à essência», diz, com um sorriso no rosto.
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