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Primeiro como colónia penal e depois como campo de concentração, o Tarrafal de Santiago, em Cabo Verde, aprisionou mais de 500 portugueses, cabo-verdianos, angolanos e guineenses considerados terroristas. Em 32 anos, morreram 37 homens. Os que sobreviveram, contaram a história do “campo da morte lenta” ainda dentro do recinto, contrariando o esforço do Estado Novo em negar a sua existência. Já na liberdade depois da Revolução dos Cravos, uma nova literatura nasceu: as memórias de quem nunca quis deixar de ser livre – mesmo quando as muralhas encerravam o corpo e o espírito.

 

A vista dava para o mar. O calor era insuportável e os dias de chuva escassos. Abundavam a fome, a água insalubre, as doenças provocadas pela falta de tratamento. O cenário era rico em desastre. Que tipo de pesadelo se pode dar a homens que alegadamente atentavam contra a Ditadura Militar e o Estado Novo? Esse mesmo: uma ilha paradisíaca aos olhos, mas maldita em cárcere.

Por 32 anos, portugueses, cabo-verdianos, guineenses e angolanos foram encerrados no Tarrafal da ilha de Santiago, em Cabo Verde, em duas fases distintas. Eram considerados perigosos, de um risco elevado de conspiração, revoltosos, terroristas. A maioria dos internados nunca foi julgada e as muralhas naturais da ilha constituíam o melhor local para estes internados. Adicionadas as condições rigorosas do local, o Tarrafal marcou várias gerações. Dos encerrados, encontravam-se indocumentados e presos políticos; destes últimos, alguns eram escritores e poetas. E foram eles que, clandestinamente, continuaram a escrever e a dar vapor a uma nova forma de ver o mundo, a uma literatura que despontou de quatro paredes.

“O Tarrafal é a prisão em mim”. As palavras são de José Luandino Vieira, em entrevista no livro Papéis da Prisão – Apontamentos, Diário, Correspondência (1962-1971) (ed. Caminho, 2015), uma coletânea dos seus escritos e ilustrações durante o período de prisão que constituem, também, parte da sua biografia. O escritor angolano aponta que “para o Tarrafal vinham os irrecuperáveis. Era um processo de destruição. O campo do Tarrafal era mesmo para separar a parte pensante da parte executante e da parte militar”.

José Luandino Vieira, pseudónimo literário de José Mateus Vieira da Graça, nasceu na Lagoa do Furadouro, em Ourém (no distrito de Santarém, em Portugal). Filho de pais portugueses, cedo emigrou para o Musseque de Braga, um bairro em Luanda, onde cresceu e passou toda a sua infância e adolescência. Lá absorveu todos os ensinamentos e tradições do povo e que, anos mais tarde, iria aprofundar com as vivências e histórias dos presos angolanos nas prisões por onde passou. O escritor tornou-se cidadão angolano depois da independência de Angola, em 1975, e participou ativamente no movimento de libertação nacional. A sua arma era a caneta ou o lápis, o desenho e o pensamento. Por isso, passou 12 anos entre prisões, sendo a de longa duração a do Tarrafal.

Aos 24 anos, em 1959, é preso na Casa de Reclusão Militar de Luanda sob suspeita de estar ligado ao MPLA. E é aqui que começa mais de uma década de prisões: é libertado, mas por pouco tempo; no entretanto, casa-se com Ermelinda Graça e nasce o primeiro filho, António Alexandre. Começa a colaborar, em 1960, com a Mensagem: Boletim da Casa dos Estudantes do Império, e em 1961 com o Jornal de Angola, já preso pela segunda vez, lê-se no estudo de Mónica V. Silva no livro Papéis da Prisão. Luandino Vieira escreve clandestinamente dentro da prisão e consegue publicar no exterior. Como? Já lá vamos.

Só dois anos depois, em 1963, é que o escritor é julgado no Tribunal Territorial de Angola. Falava-se numa pena de 25 anos ou até pena de morte, mas o veredicto dita 14 anos de prisão pelo crime contra a segurança externa do Estado. Consigo, também António Jacinto e António Cardoso – grandes nomes da literatura angolana – são condenados, e iniciam um périplo pelas prisões em Luanda, pode ler-se no livro Papéis da Prisão.

De Angola para Cabo Verde, são enviados para o Tarrafal de Santiago, num cárcere que só terminaria em 1972 para Luandino Vieira, mas que continuaria em Lisboa, sob o regime de residência fixa, até 1974. Durante esta década, Luandino Vieira, António Cardoso e António Jacinto escreveram clandestinamente e as estratégias de denunciar o que se passava dentro da prisão – que o Estado Novo negava existir – foi fundamental para a emergência de uma nova literatura, não só angolana como cabo-verdiana.

Mas o que foi, realmente, o Campo de concentração do Tarrafal? Este “campo da morte lenta” não recebeu este nome por acaso. E a sua reputação precedeu-o até aos dias de hoje.

Casernas, Tarrafal © Norbert-Banhidi (Flickr)

Tarrafal © Norbert-Banhidi (Flickr)

Entrada do campo, Tarrafal © Norbert-Banhidi (Flickr)

Latrinas, Tarrafal © Gagum (Flickr)

Tarrafal © Norbert Bánhidi (Flickr)

Tarrafal © Norbert Bánhidi (Flickr)

Posto de socorros, Tarrafal © Norbert Bánhidi (Flickr)

Valas e muros, Tarrafal © Gagum (Flickr)

Antes do campo de concentração, o outro Tarrafal e a colónia penal

 

“Eu nasci em Cabo Verde e passei várias vezes no Tarrafal, vivi lá uns tempos e nunca percebi exatamente a história daquela prisão porque não havia algo historiográfico para a contar”, explica Víctor Barros, investigador na École des Hautes Hispaniques et Ibériques (Casa de Vélazquez) Instituto de História Contemporânea (IHC) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH). O investigador decidiu lançar-se num estudo científico mais aprofundado, em 2008, do desterro, da deportação e das prisões nas ilhas de Cabo Verde na dissertação de mestrado que deu origem ao livro Os campos de concentração em Cabo Verde – As ilhas como espaço de deportação e prisão no Estado Novo (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009).

Víctor também queria perceber “o que é que fez com que aqueles indivíduos que foram criminalizados unicamente por terem uma posição política diferente, acabaram por pagar com a própria vida a luta pela liberdade”. No campo que hoje é o Museu da Resistência, muitas décadas de sofrimento estão inscritas nas paredes e nas muralhas. O Tarrafal de Santiago conheceu duas fases e dois nomes: primeiro como Colónia Penal de Cabo Verde e depois como Campo de Trabalho do Chão Bom.

Mas antes deste Tarrafal, curiosamente, outro Tarrafal serviu para uma primeira experiência: o da ilha de São Nicolau. “O Tarrafal de São Nicolau apareceu nos anos 30, particularmente a partir de 1931 e com os presos revoltosos da insurreição que aconteceu na ilha da Madeira. Então eles são desterrados para Cabo Verde”, explica Víctor Barros. Estes deportados ficaram no Seminário-Liceu de São Nicolau, enquanto outro espaço não era construído. Porém, no ano a seguir, com a Amnistia de 1932, uma parte dos internados regressa a Lisboa e outros são espalhados pelas ilhas de Cabo Verde.

“Eles não chegaram a ir para esse campo [Tarrafal de São Nicolau] porque esse campo não chegou a ser, efetivamente, finalizado e uma boa parte desse material que iria ser utilizado para esse campo acabou por ser transferido para o campo do Tarrafal de Santiago”, aponta o investigador.

A primeira leva de deportados chegou no navio Luanda à colónia penal de Cabo Verde a 29 de outubro de 1936. Nesta primeira leva, mais de 150 presos portugueses são levados para o campo, incluindo os que já tinham estado no Tarrafal de São Nicolau. Estes homens vão encontrar, num terreno de difícil acesso, tendas de lona e condições miseráveis. Vão ser eles, com as suas próprias mãos, a construir a prisão e as valas. São estes e os outros que se juntam até ao encerramento da colónia penal que vão dar forma ao Tarrafal. E mais de três dezenas com a própria vida.

“Desde os finais do século XIX, há uma tendência que é muito forte no caso português. Também há outras metrópoles europeias em que isso acontece, mas aqui é muito forte”, começa por explicar Luís Farinha, investigador no Instituto de História Contemporânea (IHC) da NOVA FCSH e antigo diretor do Museu do Aljube. “O que acontecia em muitos casos, em períodos de muito aperto económico, político, etc, para evitar ou simplificar no fim de contas, é que se recorria muito à deportação. Muito”, refere. “De tal modo que as primeiras comunidades fortes de colonos em Angola e Moçambique são maioritariamente de gente deportada, portanto, de criminosos de vária ordem social, política, comum”. De facto, “existiam prisões, mas as prisões eram para crimes locais. Os desterrados trabalhavam e tinham uma vida livre nos espaços coloniais”, aponta Víctor Barros. Estas decisões espelhavam a reforma que era necessária ter nas prisões em Portugal, mas que ainda não existiam, apesar de existirem prisões modelares, mas insuficientes para a época. O castigo para estes homens era estar longe de casa e, paralelamente, constituir mão-de-obra naquele país.

 

É então que “os ideólogos do regime perceberam a conotação negativa que certas colónias tinham como lugares de desterro, sobretudo colónias de povoamento, como Angola e Moçambique, têm lugares de desterro, o que não atraia a ida de colonos” para estes território, explica Víctor Barros. Então, era necessário desviar a rota dos desterrados para outro local. E o escolhido foi Cabo Verde. Todas as ilhas – São Nicolau, Boa Vista, São Vicente, entre outras – receberam deportados ao longo de vários anos e, antes da criação do Campo no Tarrafal de Santiago, São Nicolau, Boa Vista e Santiago foram visitadas por técnicos portugueses com o propósito de escolher um espaço para instaurar uma prisão especial para deportados políticos.

“A ilha aparece como um espaço por excelência para efetivar esse processo de criminalização e de prisão”, aponta o investigador. A ilha acaba por ter uma dualidade: a ilha como prisão e a prisão na própria ilha. Por um lado, os desterrados estavam livres nas ilhas, embora vigiados: é a ilha a própria prisão. Por outro, é construir uma prisão na própria ilha que já é, ela própria, uma prisão natural: “Essa ideia de ilha como espaço insular e que serve como prisão e ao mesmo tempo como espaço que, criando uma prisão no interior desse espaço insular, configurava uma dupla prisão”, indica Víctor Barros.

Estes pormenores foram, inclusive, estudados por especialistas: “O professor José Beleza dos Santos, de Coimbra, faz uma visita aos campos nazis da Alemanha” em 1935, onde recolheu dados de estudo para uma reforma prisional e para os edifícios que a concretizava, aponta o investigador. É José Beleza dos Santos, referência no Direito Penal em Portugal, o responsável pelo parecer positivo à implementação de uma prisão, que viria a constituir-se como colónia penal, na ilha do Tarrafal.

Mas antes disso, é preciso recuar um ano: em 1934, o regime tinha destacado uma comissão especial de trabalho para se deslocar à ilha da Boa Vista, em Cabo Verde, com o objetivo de recolher as evidências necessárias para se instalar uma prisão naquele local. Esta comissão era constituída pelo Engenheiro Luiz Victoria de França e Sousa e por Eugénio Ribeiro d’Almeida, major de infantaria, segundo-Comandante do Batalhão de Caçadores.

“Se desde os inícios da década de 1930 se pressagiava a ideia de estabelecer uma prisão especial numa ilha do ultramar, então, a referência à ilha de Boa Vista, em 1934, constitui o primeiro destino concreto e objectivamente determinado pelo Estado Novo para a realização de um estudo que confirmasse as possibilidades de exequibilidade e de elaboração do projecto respectivo”, escreve Víctor Barros no seu livro. Mas também as ilhas de São Nicolau e de Santiago mereceram a atenção desta comissão, que as visitou, para que se “justificassem as razões de preferência de uma ilha em detrimento de outra”, continua o investigador no livro.

Após o levantamento das condições das ilhas, percebeu-se que a localidade do Tarrafal, em Chão Bom, na ilha de Santiago, era o local ideal para as condições que o Estado Novo procurava: “(…) um local da ilha de população pouco densa; um local da ilha cuja localização oferecia limitadas margens de fuga. Então, a instalação da colónia penal devia obedecer aos critérios e às fortes condições que determinaram a sua adaptação, fixação e localização na ilha: segurança, vigilância e isolamento” escreve Víctor Barros no seu livro. O desfecho para este local final também se deveu a uma primeira abordagem com o Tarrafal de São Nicolau.

Assim, a deportação de portugueses para as ilhas como prisão natural e como prisão efetiva num estabelecimento longe de Lisboa “significa que não foi só com a Ditadura Militar que esta ida impressionante de pessoas, aos milhares, para a deportação [se apresentou] como solução para a inexistência de prisões aqui [em Portugal]” porque “simultaneamente [apresentou-se] como um sistema muito habilidoso para afastar, para desmobilizar e para pôr nos sítios mais longínquos” estes homens que não tiveram direito a julgamento, conta Luís Farinha. O Tribunal Militar Especial, em Santa Clara (Lisboa), apenas foi criado em 1933, local onde foram julgados, entre este ano e 1945, 13.806 mil presos políticos sem direito a defesa e/ou a recurso, afirma este investigador.

Se no conto Na colónia penal (1919) de Franz Kafka, os internados eram flagelados ou mortos por máquinas de tortura, no Tarrafal eram pelas próprias condições geográficas, carga de trabalho e condições desumanas. O local era árido, isolado, uma localização excelente para impedir a evasão dos presos. A colónia penal ficou conhecida pelo “campo da morte lenta” porque a água era insalubre, a comida putrefacta e os cuidados de saúde dúbios, já que o médico não tinha medicamentos e apenas passava certificados de óbito. Os trabalhos para construir o campo eram feitos sob o sol ardente da ilha, temperaturas acima dos 40 graus.

À noite, por vezes, o frio instalava-se e os insetos, como os mosquitos, eram visitas constantes. Quando a conduta dos presos era contra as regras, estes homens eram enviados para a solitária, apelidada de Frigideira. Com pouco espaço e uma pequena abertura gradeada, este espaço exíguo chegou a ter mais de dez homens lá dentro, ao mesmo tempo. Localizada no sítio onde o sol incidia mais, as temperaturas dentro da solitária rondavam os 50 graus. A adicionar, a falta de água, de saneamento e a solidão tinham como missão enlouquecer o prisioneiro.

A Frigideira era muito semelhante à Holandinha, apelidada assim pelos presos da segunda fase do campo de concentração do Tarrafal. © Gagum (Flickr)

A Frigideira ganhou fama e a tortura na colónia penal resultou na morte de 32 portugueses: uns em consequência desta solitária, outros de doenças provocada pelas condições desumanas. Neste rol encontrava-se Bento Gonçalves, à época dirigente do Partido Comunista Português, e Mário Castelhano, líder da Confederação Geral do Trabalho.

Dos portugueses que sobreviveram, Edmundo Pedro foi o mais jovem preso político: tinha 17 anos quando embarcou com o pai, Gabriel, para o Tarrafal. Juntos tentaram fugir, mas sem sucesso, o que culminou no maior castigo da história do Tarrafal: “Eu bati o recorde da frigideira porque tentei fugir. O castigo era 70 dias. Eu e o meu pai estivemos 70 dias. Não se pode imaginar o que era aquilo. A temperatura lá dentro chegava a atingir quase 50 graus”, referia Edmundo Pedro em entrevista ao jornal i, em 2017, citado pelo Diário de Notícias em 2018. “À noite havia uma condensação e a humidade escorria pelas paredes e nós lambíamos aquilo. Tiraram-nos a água. Não se faz ideia do que era aquele sofrimento”, explica.

Edmundo Pedro saiu do Tarrafal aos 28 anos, dez anos depois de entrar. Viu muito sofrimento, passou fome e acalentou as tormentas de outros. Viu a transladação dos portugueses do Tarrafal para Lisboa, numa manifestação que encheu as artérias da Avenida Almirante Reis em 1978. Morreu em 2018, aos 99 anos.

 

Jazigo dos mortos no Campo de Concentração do Tarrafal – Memorial do Cemitério do Alto de São João

Manifestação de 1978 Tarrafal

Contas feitas, estes homens que entraram no Tarrafal, até 1944, tinham cumprido, no total, 200 anos de pena em excesso. “Em 1944, num total de 226 presos internados no Tarrafal, 127 encontravam-se em situação ilegal. Destes últimos, 72 encontravam-se ali sem julgamento e 55 tinham terminado de cumprir as penas determinadas pelos tribunais há muito tempo”, o que perfaz as duas centenas de anos em excesso, escreve Luís Farinha no artigo As Prisões da P.I.D.E. publicado em 2019.

As portas fecham-se como colónia penal de Cabo Verde quando o único preso, Francisco Miguel Duarte, volta a Lisboa. Durante meio ano viveu sozinho no Tarrafal, sob vigilância apertada, isolado de todos, e a 26 de janeiro de 1954 é libertado. Ruma à capital, doente, continua no périplo das prisões portuguesas. Porém, só seis meses depois do último preso sair é que se torna oficial o encerramento da colónia penal com o decreto-lei de 7 de julho.

Mas nem uma década se celebra quando Adriano Moreira, à época Ministro do Ultramar, volta a reabrir o espaço, desta vez como Campo de Trabalho do Chão Bom. Se na primeira fase o objetivo era o de aprisionar os antifascistas portugueses, agora, o foco estava nos anticolonialistas de Cabo Verde, de Guiné-Bissau e de Angola, que lutavam pela Independência dos seus países.

Neste navio embarcados
somos náufragos ancorados
Oh!
neste navio ancorado
somos náufragos embarcados
Oh! Navio!
Oh! Náufragos da terra longe!
Oh! Terra longe!
Oh! Terra!
Oh!
António Jacinto, Campo de Trabalho de Chão Bom, 1965

“… ontem, hoje, amanhã…”: o mantra de 17 cadernos com dois mil manuscritos

 

Cinquenta anos. Cinco décadas de preservação de dois mil manuscritos, espalhados por 17 cadernos ilustrados, que representam 12 anos de prisão de Luandino Vieira, desde o Aljube até ao Tarrafal. Na maioria das suas capas lêem-se as palavras “… ontem, hoje, amanhã”. As memórias são, por definição, a conservação de ideias ou de imagens no espírito, que as recupera sem muito esforço; é também lembrança, indica o dicionário da Priberam. Este ato de recorrer à memória parece tão banal quanto respirar, mas pode ser doloroso para quem vivenciou situações traumáticas. Embora nem sempre fácil, é reação e ação para um bem maior: a luta pela independência.

As anotações pessoais de Luandino Vieira, os desenhos e postais, recortes jornalísticos, textos escritos em quimbundo, cancioneiros, exercícios de tradução e esboços literários, estão agora disponíveis num acervo digital, fruto de um trabalho conjunto com um grupo de investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, com financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian, e no livro Papéis da Prisão, que resulta deste projeto. Até ao final do ano, espera-se a estreia de um documentário preparado pela jornalista Sandra Inês Cruz sobre este espólio e sobre as vivências do escritor angolano.

“Quando comecei a tentar arrumar estes Papéis, a guardá-los, durante vários anos dividi-me entre a tentação que, às vezes, me assaltava de queimar tudo, esquecer. Porque lia e achava que não tinha grande interesse…”, afirma o escritor em entrevista no livro Papéis de Prisão. “Quer dizer, com aqueles papéis ou sem aqueles papéis, o que se passou, passou; e aquilo que ficou para o conhecimento da realidade angolana daquele tempo, chega. Achava que aqueles papéis não acrescentavam nada. Quando cheguei a essa conclusão disse: «Não vale a pena queimar ou não queimar, é a mesma coisa.»”. As memórias prevaleceram durante estas cinco décadas e nelas se refletem a vida de um homem preso à mercê do regime.

Capa do Caderno nº6 (de 28-06-1963 a 06-11-1963) © José Luandino Vieira, Acervo Digital Papéis da Prisão, 2023 | luandino.ces.uc.pt

 

 

O Estado Novo negava que tinha um campo de concentração. A má reputação da Colónia Penal de Cabo Verde, o “campo da morte lenta”, espalhava-se não só em Portugal, mas um pouco por todo o mundo. Quando o Tarrafal voltou a ser reaberto em 1961 foi apelidado de Campo de Trabalho de Chão Bom. “O Estado Novo jogava com essas designações, inclusive porque as autoridades do Estado nunca designaram Tarrafal como campo de concentração”, afirma Víctor Barros. Aquando da sua reativação, houve uma pressão internacional, nomeadamente da Cruz Vermelha, que pediu justificações a Salazar. A resposta foi sempre negativa: não existe Campo de concentração, mas sim um campo de trabalho. “Sempre tentaram envernizar ou criar uma cosmética para não passar a ideia de que se tratava de um campo de concentração”, afirma o investigador.

Luís Farinha explica, também, que “o Tarrafal fechou em 1954 porque era necessário aderir à ONU” e acrescenta que é nesta fase que reativaram outras prisões das antigas colónias devido à Guerra Colonial. Todo este cuidado na cena internacional e já depois de Portugal ter aderido à ONU, em 1955, fez com que o cuidado em negar tal ação se tornasse praticamente imperativa.

Nesta situação, são enviados homens de Cabo Verde, Guiné-Bissau e Angola para o Tarrafal, no total de 230 anticolonialistas. Neste primeiro grupo de presos encontra-se Agostinho Mendes de Carvalho, conhecido por Uanhenga Xitu, um dos escritores mais conhecidos de Angola e que, mais tarde, escreveu sobre a sua viagem para o campo de concentração no livro Os sobreviventes da máquina colonial depõem… (Edições 70, 1980).

Nesta leva, também se encontrava Luandino Vieira. Antes de ser transferido para o Tarrafal, porém, o escritor partilhou as prisões de Angola com os presos de delito comum – ele próprio era um preso político – e é neste ponto que absorve as realidades díspares entre os angolanos. Transforma as histórias de vida, os poemas, os cancioneiros, os costumes e as crenças destes homens, que representam um povo, numa arma de luta através da literatura que escreve. Apesar do cárcere, Luandino continua a publicar e a comunicar com o exterior, tudo graças a um saco com fundo falso.

No livro Papéis da Prisão, Mónica V. Silva explica que Luandino Vieira criou duas redes de comunicação clandestinas: uma dentro da prisão, que era a forma como comunicava com os outros presos e fazia esta recolha lírica, e uma externa, quando conseguia que os seus manuscritos passassem cá para fora. Nesta rede estava envolvida a sua esposa, Ermelinda Graça, mais conhecida por Linda, que quando o visitava para lhe dar alimentos ou roupa, tinha um fundo falso no saco. Era aí que escondia os bilhetes, a correspondência, os manuscritos e as colaborações com os jornais. “São estes veículos de comunicações clandestinas, internas e externas, que lhe permitem continuar o seu trabalho literário e político”, escreve Mónica V. Silva.

Quando Luandino é transferido de Angola para o Tarrafal, em 1963, tanto ele como os restantes presos políticos cumprem um mês de quarentena, isolados de todos. O escritor leva consigo alguns livros que são apreendidos – apenas devolvidos meses depois – e começa a compreender as idiossincrasias daquele lugar. E mais uma vez, longe de casa e da família, continua a escrever, a desenhar, a escrever ficção e a contar sobre a vida e tortura do Tarrafal. A amizade que desenvolveu com Ana de Tchuntchum foi essencial neste desenrolar que, ao levar-lhe bens alimentares nas visitas, transportou clandestinamente os manuscritos para o exterior e preservou-os. São estes manuscritos que hoje estão disponíveis para consulta no acervo digital do autor.

Num deles, partilhado no livro Papéis de Prisão, Luandino descreve uma cena de tortura, em 1963: “Continuam as torturas tendo estado a espancar um moço das 3 menos 10 até às 4 horas. Nem sei como almocei. Eram berros horríveis e mesmo assim parecia que lhe tinha posto um lenço na boca, porque chegavam abafados. Estive quase a vomitar o almoço, o estômago recusou-se a digerir e cada vez me sinto pior. Terei ainda que aguentar isto muito tempo? Ficarei a mesma pessoa? Às vezes tenho medo de perder a cabeça, de enlouquecer. Pensando na tristeza desde ontem naquele súbito sentimento de solidão total descobri que foi devido a uma coisa que a K. me contou.”.

Uma nova literatura angolana e cabo-verdiana que sai do Tarrafal

 

“(…) Se o que aqui está publicado tiver valor para permitir pesquisa da história de Angola, da história da literatura angolana, fica justificada a publicação. Quando cheguei a essa conclusão deixei de pensar em destruir os papéis ou de utilizar aquilo como material para ficção.”, revela Luandino Vieira em entrevista no livro Papéis de Prisão.

A literatura angolana, até à década de 1950, era fruto da aprendizagem do que se passava no país e na Europa. Na escola eram ensinados os rios de Portugal, os costumes portugueses, a identidade de um povo; mas não o angolano. Há um período em que se produzem grandes obras, conta Carlos Ervedosa no ensaio A literatura angolana (1963, ed. Casa dos Estudantes do Império), mas estas obras não refletem com assertividade a identidade de Angola, antes a compõem de artifícios inspirados noutros países.

Da ida de portugueses para Angola, há uma geração que nasce da mestiçagem entre os colonos e os angolanos e é dela que se desencadeia um grito de revolução: “Enquanto estudam o mundo que os rodeia, o mundo angolano de que eles fazem parte mas que tão mal lhes ensinaram, ressalta a necessidade de uma literatura que fosse a expressão da sua maneira de sentir, que fosse o veículo das suas aspirações, uma literatura que fosse uma afirmação de presença. (…) Uma literatura que fosse verdadeiramente angolana”, escreve Carlos Ervedosa. É assim que nasce o “Movimento dos Novos Intelectuais de Angola”, em 1950, em que a poesia do movimento “é social, reivindicativa, feita por poetas de todas as raças que irmanados num mesmo coro pugnam pelos mesmos ideais”, afirma o autor.

Este movimento edita a revista literária Mensagem, através da Associação dos Naturais de Angola, que apenas teve dois números. A revista “é o espírito da liberdade do homem”, explica Maria Raquel Álvares, investigadora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, especializada em Literaturas Africanas (Literatura Cabo-verdiana), e “vêm lá grandes ensaios de grandes escritores angolanos, e o Luandino Vieira e o António Jacinto escrevem para lá e também [escritores] de Cabo Verde”.

Apesar da dissolução deste movimento literário com o encerrar da revista, sete anos mais tarde surge o jornal literário Cultura, o “elemento aglutinador duma nova camada de jovens que conscientemente assimilaram a lição dos «Novos Intelectuais de Angola»”, escreve Ervedosa e que “na senda de «Mensagem», continuaria edificando em bases sólidas a literatura angolana”.

Maria Raquel Álvares explica que este movimento de poetas e escritores quer “que os seus rituais, os seus costumes não sejam influenciados pelos europeus, querem permanecer fixos. A sua terra é que deve ser valorizada, portanto todo o angolano, na sua literatura, procura valorizar”.

Tem girassóis amarelos
o meu quadrado de sol
a vida espancada passa
mas no quadrado de sol
aberto sobre o jardim
os girassóis amarelos
velhos
mostram o fim

 

Luandino Vieira, Girassóis, 1962

Para Carlos Ervedosa, saiu do jornal literário Cultura o “maior contista e novelista de sempre: Luandino Vieira” que “colheu directamente do povo ensinamentos que o tornariam no maior escritor neo-realista angolano”, assevera. A obra Luuanda (1963) rompe com esta tradição na literatura angolana e é constituída por três contos que revelam as tradições do povo. O livro ganhou uma série de prémios, entre eles o Grande Prémio da Novelística, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE), em 1965. Contudo, a obra foi extremamente censurada pelo regime e levantou uma série de problemas e represálias que, em última instância, levou ao encerramento da própria SPE.

Luandino Vieira conhece António Jacinto antes do cárcere no Tarrafal e será Vieira a ilustrar o livro Poemas, editado pela Casa dos Estudantes do Império em 1963, já preso no Campo de concentração. Este livro reúne 14 poemas escritos entre 1950 e 1953, mas não será devido à sua atividade literária que é preso: António Jacinto foi uma das figuras a fundar o Partido Comunista Angolano e isso valeu-lhe a ida para o Tarrafal.

Com uma vida de peripécias e périplos por prisões, António Jacinto viu a Independência acontecer: foi ministro da Educação e da Cultura em 1978 e ocupou outros cargos importantes. Continuou a escrever as suas obras de ficção e em 1985 publicou uma das obras de referência sobre as condições do campo de concentração. Sobreviver em Tarrafal de Santiago reúne as suas memórias daquele período, um soco no estômago sobre as condições do homem preso neste local. Morreu aos 66 anos, em Lisboa, e em homenagem foi criado o Prémio Literário António Jacinto, em Angola.

Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
Uma carta que dissesse
Deste anseio
De te ver
Deste receio
De te perder
Deste mais que bem querer que sinto
Deste mal indefinido que me persegue
Desta saudade a que vivo todo entregue…
Eu queria escrever-te uma carta
Amor,
Uma carta de confidências íntimas,
Uma carta de lembranças de ti,
De ti
Dos teus lábios vermelhos como tacula
Dos teus cabelos negros como diloa
Dos teus olhos doces como macongue
Dos teus seios duros como maboque
Do teu andar de onça
E dos teus carinhos
Que maiores não encontrei por ai…
(…)
Eu queria escrever-te uma carta…
Mas, ah, meu amor, eu não sei compreender
Por que é, por que é, por que é, meu bem
Que tu não sabes ler
E eu – Oh! Desespero! – não sei escrever também!

 

António Jacinto, Carta dum contratado, 1961

“As medidas de segurança eram das formas mais bárbaras de manter as pessoas presas sem nenhum fundamento, porque o que acontecia muitas vezes é que não havia matéria para o julgamento, não tinham possibilidade de culpar alguém.”

Luis Farinha, investigador no Instituto de História Contemporânea (IHC) da NOVA FCSH

“Muitas vezes se tem dito por uma opinião pouco informada e pouco rigorosa que a segunda fase do Tarrafal foi mais suave que a primeira. Não, não há cadeias suaves”. As palavras de Víctor Barros revelam que há maneiras diferentes de torturar o homem e no Tarrafal houve, definitivamente, duas distintas: “Os presos que foram na primeira leva estavam totalmente desamparados de um apoio ou de uma conexão com redes políticas para publicar para fora a repressão que eles sofriam internamente”, avança. “No segundo momento, o que acontece é que após o primeiro encerramento do Tarrafal em 1954, o Tarrafal já encerra com uma carga negativa e com uma mancha” o que faz com que o regime tome “muita cautela em não publicitar para fora, em não exercer determinadas lógicas de violência capaz de pôr o Tarrafal na opinião pública internacional”, afirma o investigador.

Parte da violência a estes homens passava pela limitação de circulação dos presos para, não só os isolar, como também para precaver alguma ligação que resultasse em revolução dentro do campo (os cabo-verdianos, guineenses e angolanos não se misturavam); a imposição de símbolos do regime, como a bandeira portuguesa ou o hino, e a obrigação de frequentar as missas religiosas (os guineenses eram muçulmanos e eram forçados a assistir); O controlo de comunicação e de correspondência era feito diariamente (as cartas dos presos eram lidas e, por vezes, alvo de chacota por parte dos guardas); a censura dentro da própria prisão (Luandino Vieira fundou a biblioteca do campo, mas viu livros a serem censurados) e a comida deixava a desejar e os cuidados médicos eram insuficientes.

A solidão dentro da prisão era a arma do regime. Nesta segunda fase, a conhecida Frigideira deu lugar à Holandinha, uma solitária com dimensões um pouco maiores que a primeira, mas com o mesmo objetivo. “Tudo isso são processos que estão claramente alinhados com violências estruturais que o próprio regime aplicava”, aponta Víctor Barros.

Por outro lado, “o que é mais marcante em todo este processo de repressão é aquilo que podemos considerar as medidas de segurança”, explica Luís Farinha. E o que são? “O indivíduo é considerado perigoso. Então, o que se faz?”. “As medidas de segurança eram das formas mais bárbaras de manter as pessoas presas sem nenhum fundamento, porque o que acontecia muitas vezes é que não havia matéria para o julgamento, não tinham possibilidade de culpar alguém”. Essa espera podia durar anos: “Uma das coisas que é mais marcante e que impressiona é os presos a pedirem para serem julgados”, conta o investigador. “No fim de contas, era anular politicamente aquela pessoa iludindo-a, ao dizer que se está a constituir um processo e o processo nunca mais surgia”. Nesta fase, havia pessoas com penas muito longas que, no fim de contas, apenas tinham meses para cumprir. “O problema aqui é que a lei era aplicada sem critério judicial”.

Livro de Onésimo Silveira © Ana Sofia Paiva

Também a literatura cabo-verdiana vai sofrer alterações nesta época devido a inúmeros fatores. Um deles é precisamente a emigração. A pobreza nas ilhas de Cabo Verde no final do século XIX e no começo do século XX foi um dos principais motivos para a partida com destino a países da Europa e Estados Unidos da América. Com esta política de saída, a própria literatura reflete o que é consagrado lá fora: a escrita gira em torno dos clássicos literários como as obras de Camilo Castelo Branco ou Eça de Queirós, por exemplo.“Nós aprendemos isso na escola”, conta Mário Lúcio Sousa, músico e escritor cabo-verdiano, “mostramos o nosso país daquele jeito” em que “os escritores tinham o romantismo e tinham uma transmissão do realismo, mas que não era denunciador da situação” real de Cabo Verde. As dificuldades, a pobreza e a fome faziam parte do quotidiano que era romantizado na literatura caboverdiana.

Para romper com esta corrente, surge o Movimento Claridoso, um conjunto de escritores e poetas que se unem para uma emancipação cultural, política e social. Os que continuavam nas ilhas contam essa mesma história, como é o caso do livro Os Flagelados do Vento Leste (1960), de Manuel Lopes. Nesta obra, o autor utiliza uma expressão que vai dar origem à identidade do movimento: “fincar os pés no chão crioulo”, pois reflete a realidade social das ilhas de Cabo Verde. edita a revista Claridade, publicada entre 1936 e 1966 num total de nove números.

As bases do movimento claridoso são “o quero partir e ter que ficar ou querer ficar e ter que partir; o apelo do mar na vida do cabo-verdiano, que será grandemente discutido na literatura cabo-verdiana, a seca, e a fome, a força da música na alma do povo crioulo, a nostalgia, o espírito cabo-verdiano na diáspora que nunca se esqueça de sua terra e as emigrações para a América”, escreve Elisangela Rocha, investigadora que se debruçou neste assunto na tese de doutoramento com o título Claridadeo canto e o louvor de um povo no percurso da construção identitária: O diálogo com o regionalismo, publicada em 2015.

Este sentimento de “ter de ficar querendo partir e ter de partir querendo ficar” foi introduzido por Baltasar Lopes na obra Chiquinho (1947) e marcou este movimento que foi, também, influenciado pelos escritores regionalistas brasileiros, explica a investigadora.

Mas a revista Claridade e o movimento que surgiu dela viu-se prolongado por outro: a revista Certeza. Esta surge em 1944, fruto das personalidades de estudantes do Liceu Gil Eanes, em São Vicente: “Quando publicada pela primeira vez, Claridade tem em Cabo Verde a atribuição de instrumento de veiculação de ideias modernas em diálogo com a tradição, com o intuito de fundar a literatura crioula, na sua singularidade. Desse modo, Claridade foi o passo inicial para a emergência de outras revistas e folhetos culturais do arquipélago, dentre os quais podemos destacar a Certeza, periódico de divulgação do grupo homônimo”, escreve Elisangela Rocha. E esta revista aprofundou o sentimento que a Claridade já possuía na sua essência.

Porém, apesar deste conjunto de escritores ter sido extremamente importante para Cabo Verde, Onésimo Silveira considera que “faltou, no entanto aos claridosos o verdadeiro sentido do povo”. Considerado uma das figuras mais importantes da cena literária do seu país, Silveira defende que não havia “aquele grau de comunhão emocional e intelectual que leva espontaneamente à identificação da consciência individual do escritor com a consciência colectiva das massas”, escreve no ensaio Consciencialização na literatura caboverdiana (1963, ed. Casa dos Estudantes do Império).

Continua: “Uma literatura assim inautêntica, oferecendo ao povo, em vez dos caminhos duma resolução do seu problema, alguns dados propícios à romantização do mesmo, não pode logicamente, conduzir à consciencialização, sem a qual todo o povo se sujeita sempre à perda de sua dignidade, por enfeudalização e consequente omissão dos seus anseios, manifestados em reinvidicações justas e adequadas à sua participação no concerto universal dos povos”. A caracterização cultural cabo-verdiana acabou por falhar por não ter, ainda, expressão nas artes, como na escultura ou na pintura.

Mas Elisangela Rocha analisa porque é que Onésimo Silveira tece uma crítica ao movimento: “É nesse texto que ele vai fazer a crítica, mas por incrível que pareça, o Onésimo, ele tem textos que publica na Claridade, embora ele não concordasse com o que ele estava fazendo ali” porque o próprio pertence ao movimento da revista Certeza. Porém, aponta a investigadora, o pensamento do escritor foi mudando ao longo do tempo, apesar de, à época da escrita do ensaio, não concordar totalmente com a essência do movimento claridoso.

“Em termos de engajamento político, de crítica à metrópole, a crítica a Portugal, tudo, ela é muito mais marcada nesse movimento da revista Certeza. Na Claridade não havia isso muito evidenciado” afirma a investigadora, “quando eles, por exemplo, subvertem uma série de proibições que havia como colocar textos em crioulo, como publicar uma série de coisas que não era permitida naquele momento, eu acredito que eles também, de certo modo, questionavam, né? Mesmo diante das proibições, eles eram corajosos e se colocavam por meio de, principalmente com esses textos que vão falar, que vão usar a língua cabo-verdiana”.

Esta construção da cabo-verdianidade, como escrever textos em crioulo, outros sobre funaná, por exemplo, são marcas “dessa literatura que se vai construindo a partir dessa consciência regional” e que se prolongou no tempo, afirma a investigadora.

Outro ponto de ruptura surgiu ainda antes da reabertura do Tarrafal, em 1959: “Primeiro com o processo dos 50 em Angola e depois com o massacre de Pinddjiguitu na Guiné, há um despertar diferente. Aqui já se começou a usar a violência contra as denúncias, e aí a literatura também tem de responder”, explica Mário Lúcio. “E não só surge uma literatura de engajamento como por liberdade, surge uma literatura urbana, realista”.

O povo das Ilhas quer um poema diferente
Para o povo das Ilhas:
Um poema sem gemidos de homens desterrados
Na quietação da sua existência;
Um poema sem crianças que se alimentem
Do leite negro das horas abortadas
Um poema sem mães olhando
O quadro dos seus filhos sem mãe…
O povo das Ilhas quer um poema diferente
Para o povo das Ilhas:
Um poema sem braços à espera de trabalho
Nem bocas à espera de pão
Um poema sem barcos lastrados de gente
A caminho do Sul
Um poema sem palavras estranguladas
Nas grades do silêncio…
O povo das Ilhas quer um poema diferente
para o povo das Ilhas:
Um poema com seiva nascendo no coração da ORIGEM
Um poema com batuque e tchabéta e badias de Santa Catarina
Um poema com saracoteio d’ancas e gargalhadas de marfim!
O povo das Ilhas quer um poema diferente
Para o povo das Ilhas:
Um poema sem homens que percam a graça do mar
E a fantasia dos pontos cardeais!

 

Onésimo Silveira, Poemas do Tempo das Trevas (reed. Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 2008)

Nesta fase do campo de concentração do Tarrafal, já reaberto, “a literatura cabo-verdiana e de qualquer literatura africana de origem portuguesa foi afetada pela política salazarista colonial e, portanto, os escritores vão dar o espelho, o reflexo [da sua situação] e vão ansiar pela sua liberdade” e “ao ansiar pela sua liberdade, eles mostram na escrita literária, eles mostram os vários focos, os vários momentos”, afirma Maria Raquel Álvares porque “é a ânsia de mudar, é a ânsia de respirar. O povo estava oprimido”.

E a escrita foi, assim, o veículo para provar aquilo que o Estado Novo negava: um campo de concentração que torturava, humilhava e provocou a morte a cinco presos. E contar essa história, sob diferentes ângulos, exige um grande trabalho que Mário Lúcio não virou costas quando uma simples frase “lhe desceu”: “Eu fui morrido em 1970 e conheci o diabo às quatro da tarde”.

Quando um local de sofrimento e morte se transforma num local de aprendizagem

 

Quando entrou, soube que aquela iria ser a sua casa durante os anos seguintes. Tanto terreno por explorar, por conhecer, por proteger. Aquela torre, ali no alto, é ideal para vigiar este castelo, muralhado e pintado com a cor de sol. Podia ser, se quisesse, rei, príncipe, explorador, aventureiro. Cada canto era uma descoberta. Cada porta, uma entrada para outro mundo. Cada dia, a sensação que aquele espaço e aquela oportunidade iriam mudar-lhe a vida para sempre. E assim foi.

Mário Lúcio foi encontrado na rua a declamar poesia aos dez anos. Relembra com os olhos marejados de água, a voz trémula, carregada de gratidão, o dia em que aquele soldado, de nome Mário Elísio, viu em si algo que ele próprio desconhecia à época. A independência de Cabo Verde era já uma realidade, o campo de concentração do Tarrafal já tinha encerrado portas – desta vez para sempre – à tortura e ao cárcere de prisioneiros.

“Foram falar com os meus pais para eu receber uma educação especial”, conta, e foi o primeiro bolseiro de Cabo Verde a receber este apoio do Estado. Mário Lúcio foi o soldado 131 e a primeira criança a entrar no campo de concentração do Tarrafal depois de 32 anos de tortura. Aquele que antes era um local de sofrimento, transformou-se no seu castelo, na sua aventura, no sítio onde, de 1975 a 1980, percorreu e conheceu todos os espaços: a Frigideira ou a Holandinha, a cantina, o posto médico, as casernas, os locais onde correram tanta tinta e sangue. Mário Lúcio não sabia que local tinha sido aquele: “Nós não tínhamos conhecimento do que se passava”, relembra, “a grande parte da população não conhecia, não sabia o que era aquilo”.

Foi feliz? “Uma criança é feliz em qualquer parte, desde que seja respeitada”, responde o escritor. “Eu fui dono de mim desde muito cedo, era respeitado”, continua. “A minha felicidade era ter um espaço tão grande para brincar. Brincava de Rei Artur lá em cima das muralhas, aquilo parecia um castelo”, lança um sorriso. Como soldado, era também independente nas suas tarefas: lavava a sua roupa, estudava, fazia as tarefas de um adulto. Esta educação permitiu a Mário Lúcio voar para outras paragens: primeiro para Cuba, para tirar o curso de Direito em Havana, depois pelo mundo com a música e a escrita nos dedos.

Lembra-se do dia em que os últimos prisioneiros do Tarrafal foram libertados. Uma coluna de pessoas de Praia acorreram ao Tarrafal para os libertar, no dia 1 de maio de 1974. Confinados, os presos não sabiam que a Revolução dos Cravos tinha derrubado o regime. “Foi a população que abriu as portas da prisão”, mas de todo aquele cenário, o que mais marcou Mário Lúcio foi um indivíduo “com uma guitarra folk preta e uma harmónica pendurada ao pescoço a tocar”. Era Sana Papers, nome artístico de Tadeu Fontes, figura acarinhada em Praia que faleceu em 2022. “Ele despertou em mim – já lá estava – mas acendeu essa sina, essa vocação, esse desígnio de ser músico”.

Com vários álbuns lançados, o caminho de Mário Lúcio tem vindo a ser trilhado e dividido entre a música, a escrita e a política: foi deputado do Parlamento cabo-verdiano, embaixador cultural do país e ainda Ministro da Cultura de Cabo Verde entre 2011 e 2016. Lançou, contudo, um livro em 2019 que lhe é muito querido: O Diabo foi meu Padeiro (ed. D. Quixote).

Mário Lúcio © Bárbara Monteiro

“Há coisas da minha vida que só se explicam num tempo que não é nem passado, nem presente, nem futuro”, explica Mário Lúcio. A história do Tarrafal era “o livro que há muitos anos eu dizia que alguém devia escrever sobre o campo de concentração do Tarrafal.” O curioso, refere o escritor e músico, é que quando a primeira frase lhe surgiu, apenas iria escrever sobre os cabo-verdianos no campo porque conheceu a história do único prisioneiro que conseguiu engravidar a esposa dentro da prisão altamente vigiada. Mas isso já é outra história.

Percebeu, então, que conhecia aquele lugar “melhor do que ninguém. Os presos estavam confinados, só conheciam a sala onde estavam, os guardas também, porque eram por zonas prisionais e eu fui lá criança. Brinquei desde a cozinha à enfermaria até as guaritas dos guardas. Conheço aquilo como a palma da minha mão.” E, a adicionar, percebeu a grande oportunidade de fazer da história, uma unidade. “Na pesquisa entendi que a história já nos fragmentou tanto que nós devemos fazer um esforço para ver onde é que a história nos pôs e não usar essa relação para estarmos permanentemente a apontar o dedo uns aos outros, mas para ver o que é que essa relação tem ainda de broto e de semente”, afirma.

O denominador comum destas histórias verídicas é o nome Pedro, a agulha que cose as histórias de vida: “(…) percebi que todos tinham sido vítimas e todos tinham sido heróis para mim. Naquele momento, eu me senti um homem livre e essa liberdade circunstancial, essa, não tinha começado com os cabo-verdianos, mas com 132 portugueses. E muitos deles morreram para que eu fosse livre, tal como os angolanos, os guineenses e não morreu nenhum cabo-verdiano na prisão. Eu percebi essa dinâmica da luta antifascista ter começado na própria metrópole e não nas colónias.”

Para o escritor era importante escrever um livro “que fosse a transformação do horror em beleza”. Explica melhor: “Dizer que tem um lado belo, não tem, é nossa obrigação, nós, os sobreviventes, ir buscar o lado belo, que esse lado belo ressuscita. As vítimas, para nós… esse lado belo também vence o terror. Porque conseguimos ultrapassar isso. Isso tem a ver com a nascença, tem a ver com as misturas, tem a ver com o que é que ficou. Tem a ver até com aprendizagem da não repetição.”

Neste processo, também de conhecimento, Mário Lúcio sofreu com as histórias dos prisioneiros. Chorou com eles, sentiu-se nauseado quando escreveu sobre a insalubridade da água no campo. Ainda conheceu Edmundo Pedro, o prisioneiro mais jovem a ir para o Tarrafal. Ia a meio da escrita do livro quando soube do seu falecimento. “Eu chorei”, começa por recordar aquele janeiro de 2018. “Eu conheci o Edmundo Pedro casualmente. Mais de 30 anos depois de ter saído da prisão” e “já tinha terminado a parte dos portugueses e a minha felicidade era conseguir que os últimos sobreviventes lessem o livro, vissem a história deles pela primeira vez contada em romance”. Fala com a voz embargada: “para ele talvez visse um filme, para ele se ver como é que se comportou, qual era a imagem que nós tínhamos dele. Um dia fui mandar um e-mail e abro a página da internet, eu fiquei… Gelado. Chorei com ele, chorei a morte dele, chorei todo o processo. Chorei de gratidão pela coragem, pelo que ele fez por mim. Quando falo por mim, eu sou o símbolo dos que são livres, dos que nasceram depois, dos que nasceram ainda durante a época colonial” afirma com vigor. “Eles participaram disso, é preciso ter essa visão de como as nossas ações, tanto dos portugueses como dos africanos, foram importantes conjuntamente para a liberdade no seu todo.”

Mário Lúcio © Bárbara Monteiro

Há, aliás, um momento poético para o autor, que é quando Luís Fonseca recebe o telegrama do nascimento da filha, Rosa, no Tarrafal:

 

Eu me vi, naquele momento, o homem mais solitário do universo. Senti duas pernas de água a descer-me cara abaixo. Essas pernas levaram-me dali. Por horas, tive Rosa nas mãos, Fernanda no peito, sorri para as duas, e partilhei com elas a maior sensação de liberdade que jamais pude viver. Voei, voei. Nunca mais meus pés tocaram o mesmo chão. Quando desci à Terra, deixei propositadamente ali o meu corpo, para que dele os esbirros fizessem o que lhes desse na cuca, seja tortura, seja feridas, pó. Porque aquele corpo que eles maltratavam já não era meu. Não o queria mais. O meu espírito fora demasiado longe com a Rosa, e eu já não era daquele Mundo.
(O Diabo foi meu Padeiro, 2019, p. 320).

 

A história de como Luís Fonseca conseguiu engravidar a esposa é contada no livro. “O romance tem essa possibilidade de tocar os corações, enquanto os livros científicos tocam a razão. E as metáforas são poderosas nos romances, os símbolos, todas as figuras de estilo bem utilizadas transmitem mensagens subliminares de uma grande potência.”, afirma.

A história do Tarrafal é, também, parte da história de Mário Lúcio. Em 2015 doou o valor do prémio literário Miguel Torga que conquistou com a obra Biografia do Língua (que também recebeu o Prémio PEN Clube Português de Narrativa) para a requalificação do Tarrafal. A razão está no símbolo que representa para ele e para todos os que sofreram para que hoje exista uma sociedade livre de amarras: “Eu quando doei o prémio, eu fiz tudo o que eu fiz para manter com alguma dignidade o antigo campo de concentração” porque se hoje é possível a liberdade, também se deveu aos homens que sofreram e morreram no Tarrafal. “É esse sentido de gratidão que eu tento expressar nos meus livros. Gratidão pelo que sabemos e pelo que não sabemos. Gratidão pelo que temos e pelo que não temos”.

A preservação da memória e o espaço da união

 

O Museu do Campo de Concentração do Tarrafal, mais conhecido por Museu da Resistência, é local da memória de décadas de repressão. O museu foi inaugurado em 2000 e desde então tem vindo a ser reabilitado e a expandir as suas áreas para visita. É Património Cultural Nacional de Cabo Verde desde 2004. No website do Museu da Resistência pode ler-se que “o Museu do Campo de Concentração hoje não deixa de ser, um espaço de referência capaz de transmitir e muito mais do que isso, educar o seu público para que se sinta engajado na conservação e preservação e valorização da memória coletiva dos povos de Cabo Verde, da Guiné, Angola e Portugal, na sua luta incansável pelo bem comum, a liberdade e a paz”.

O Tarrafal de Santiago faz, agora, parte da lista de candidatos a Património Mundial da UNESCO. “Neste momento, o país já colocou em marcha o processo para a elevação do Campo de Concentração de Tarrafal de Santiago para a sua classificação junto da UNESCO, num trabalho conjunto que reúne além de técnicos nacionais, uma cooperação já rubricada com Portugal”, afirmou o Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas numa informação acedida pela Lusa e citada pelo jornal Público em 2022.

Nesta tentativa de preservar a memória, também o município de Tarrafal na ilha de São Nicolau está a tentar musealizar o primeiro campo de concentração de Cabo Verde que outrora albergou os 400 deportados da insurreição da ilha da Madeira. José Cabral, historiador que investiga o Tarrafal de São Nicolau, aponta ao jornal digital dnotícias esta situação, no final de 2022: “Estamos perante uma história profunda, interessantíssima da lusofonia e do regime salazarista, que é pouco conhecida”, mas que o município quer preservar.

“Não é conhecido de todo, o Tarrafal de São Nicolau é conhecido por meia dúzia de pessoas”, comenta Víctor Barros, que vinca a sua contribuição académica para o assunto e “com o trabalho que o José Cabral tem feito sobre a identificação da trajetória de alguns prisioneiros que passaram pelo Tarrafal de São Nicolau, o trabalho começou a aparecer”, aponta. Contudo, “o Tarrafal de São Nicolau ainda não é objeto do programa de ensino nas aulas de História ou de cultura cabo-verdiana ou, inclusive, nos manuais escolares de História portuguesa”, afirma. Há, então, a necessidade de fazer um trabalho de patrimonialização dos dois Tarrafal, no geral, mas, em particular, produzir conhecimento que seja alargado à sociedade, que não fique na Academia, porque “se não houver estratégias dentro da patrimonialização para produção de conhecimento e disseminar informações históricas sobre esse espaço, a patrimonialização fica só como cosmética”, refere Víctor Barros.

O antigo ministro da Cultura de Cabo Verde, Mário Lúcio, apoia a candidatura do Tarrafal de Santiago a Património Mundial da UNESCO e afirma que é necessário “nos despirmos do tabu «Aquilo é nosso», no sentido em que está em Cabo Verde, construído pelos presos portugueses” porque “é património nosso [dos PALOP e de Portugal]. Porque nós somos todos vítimas do salazarismo”, afirma. “Hoje a sociedade portuguesa é outra. Uma sociedade que venceu aquela época. Então não tem que ter tabu nem vergonha de um determinado tempo histórico. Temos é que assumir e assumir o lado menos bom, que existe, e assumir o lado bom que existe. Nesse sentido, preservar monumentos ou datas que significam uma luta por muitos, significa um processo comum, que significa uma partilha… Esse é o caminho.”

O escritor afirma ainda que é necessário “tentar criar um outro espaço de diálogo, um outro espaço de partilha do que foi e é o resultado da relação em que a História nos colocou. Não temos que apagar, nem esquecer, nem arrombar, mas aceitar, interpretar, contextualizar e seguir. O campo de concentração é um dos exemplos raros. E talvez é um bom começo porque há mais equanimidade, há mais consenso e por aí vamos construindo, porque é preciso pensar nas novas gerações”.

As memórias do Tarrafal de Santiago e a prova que os escritores e poetas presos marcaram uma geração está expressa em tantas obras de referência dos PALOP no século XX. Os trabalhos académicos que preservam, sob diferentes ângulos, as memórias destes 32 anos de repressão, de tortura e de luta constante, o romance de Mário Lúcio sobre os 45 anos do Tarrafal e os documentários produzido ao longo das últimas décadas são a prova necessária que o esforço de outros para se ser livre, hoje, deve ser reconhecida e preservada.

A 1 de maio de 2024 celebram-se 50 anos da libertação, às costas da população de Praia, dos últimos presos do Tarrafal. Um passado ainda recente, com feridas por sarar.

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