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A viagem de Lisboa até à Aldeia de Maçainhas, na Guarda, demora cerca de três horas de carro. No dia 3 de julho, seguimos pela estrada A23 e chegámos à freguesia por volta da 13h30 da tarde. Pouco depois, dirigimo-nos para a antiga Fábrica de Cobertores Artur Freire, localizada na Estrada Nacional 338, em Maçainhas de Baixo, onde a tecelã e fundadora da Associação O Genuíno Cobertor de Papa, Maria do Céu Reis, já se encontrava à nossa espera. Apresentações feitas, a tecelã inicia uma visita guiada por aquela que é a atual sede da associação, que tem vindo a manter viva a produção artesanal do tradicional Cobertor de Papa.
«Sabiam que Maçainhas era conhecida pelos seus dramas [teatros], que eram apenas contracenados por homens?», questiona-nos. «E também é conhecida por ser uma região onde sempre se produziram muitas maçãs», relata enquanto nos leva até ao espaço onde se encontra o tear com quase 300 anos de história e no qual ainda são fabricados os Cobertores de Papa de forma manual. No mesmo espaço, contamos também com a presença da mãe de Maria do Céu, Rosa Baía, de 89 anos, e do irmão, Alfredo Baía, de 53.
Não se sabe ao certo a data em que esta freguesia começou a ser conhecida pelo nome de «Maçainhas». No entanto, a família de Maria do Céu conta-nos que, antigamente, a região se designava Vale Verdinho, ou Vale Verdim, devido à abundante produção agrícola de maçãs nos seus terrenos. Consequentemente, Vale Verdinho «começou a ser conhecido como o lugar onde se produziam maçãzinhas» e, daí, ter alterado o seu topónimo para Maçainhas «com a perda do z intervocálico».
O município situa-se a uns oito quilómetros da Guarda. Em 1210, «pertencia ao Mosteiro de Salzedas que a aforou [atribuiu] a seis moradores para que cultivassem as suas terras», nomeadamente pomares. Essas terras, por sua vez, «haviam sido doadas ao Mosteiro de Salzedas, que, através de aforamentos, como é o caso de Maçainhas, asseguravam a sua colonização e o seu cultivo». Segundo o site oficial da Junta de Freguesia de Maçainhas, já no século XIII estava registada a existência de seis regiões pertencentes a este município, e que ainda hoje se mantêm, sendo elas: Maçainhas de Cima, Maçainhas de Baixo, Cubo, Prado, Gulifar e Chãos.
De acordo com a mesma fonte de informação, e corroborada por Maria do Céu Reis, a freguesia de Maçainhas sempre foi, igualmente, um lugar de destino para os pastores e os seus rebanhos, tal como «de começo e fim de algumas das mais importantes rotas peninsulares de lã, abertas pelas Rotas da Transumância».
Já no que diz respeito à indústria têxtil em Maçainhas, esta remonta ao reinado de D. Sancho II (1223–1248), mas terá sido apenas no reinado de D. José (1750–1777), e impulsionada pelo diplomata Marquês de Pombal, que a mesma se desenvolveu verdadeiramente. Em meados do século XVIII, iniciou-se a produção dos Cobertores de Papa.
A existência de fábricas artesanais na Covilhã e na Guarda remonta a 1758, altura em que Marquês de Pombal começou a desenvolver a indústria têxtil nessas mesmas regiões. Mais tarde, este fenómeno acabou por beneficiar a freguesia de Maçainhas, uma vez que alguns tecelões se fixaram na localidade e transmitiram os seus conhecimentos à população aí residente.
A nossa entrevistada Maria do Céu Reis nasceu no distrito da Guarda, em 1969. Quis começar a trabalhar jovem, tendo deixado de estudar muito cedo. Ainda assim, em 2002, concluiu o nono ano de escolaridade através do antigo programa «Novas Oportunidades» (uma iniciativa do Governo português que pretendeu facilitar o acesso ao ensino por parte da população). Nessa altura, Maria do Céu redigiu um pequeno trabalho acerca da história da produção dos Cobertores de Papa, um tema que sempre lhe foi familiar, pois a sua mãe trabalhou na indústria durante toda a vida.
A tecelã, atualmente com 54 anos, ofereceu-nos esse seu trabalho intitulado Notas sobre o Cobertor de Papa de Maçainhas. Nele, Maria do Céu Reis escreveu: «creio ser interessante tentar fazer com que outras pessoas se apercebam da realidade subjacente a um produto tão modesto. Para tal, procurarei explicar as várias etapas do processo de fabricação» [do Cobertor de Papa]. Ao longo da nossa visita, a tecelã assim o faz.
Começa por nos contar que, há cerca de 130 anos, existiam nove teares em Maçainhas e cerca de 45 tecelões, todos ligados à produção do Cobertor de Papa. «Foi dos primeiros cobertores a aparecer e sempre esteve bastante relacionado com a pastorícia, aliás, se não houver lã, não há cobertores», ri-se.
«Antigamente, a grande maioria dos pastores usava-o por ser um cobertor forte e impermeável. Era também um cobertor muito usado para cobrir as camas e não havia uma noiva que não levasse um Cobertor de Papa no seu enxoval».
O Cobertor de Papa é assim designado por ser tecido em teares artesanais manualmente, pelo facto de possuir um pelo bastante comprido típico da lã churra, mas também por ser «empapado em água» numa das suas fases de produção. Caracteriza-se ainda pelo seu cheiro peculiar e pelas suas cores típicas, sendo elas o branco, o castanho, o amarelo, o azul, o verde e o vermelho.
Tal como nos diz Maria do Céu, «o tear, o pisão [«instrumento formado por uma pia de madeira envolta em ferro e dois maços de madeira que serve para amassar os cobertores na água»], a percha [«aparelho com um corpo cilíndrico composto por réguas de madeira e puas, além de vários rolos que fazem o cobertor andar à volta até ficar com pelo»], todos esses instrumentos fazem com que o Cobertor de Papa seja diferente dos demais». Para além de ser feito em água, o produto tem de depois ir a secar nas râmbolas de sol [equipamentos destinados à secagem e estiragem ao ar livre dos cobertores, após estes saírem molhados do pisão], «algo que também não é feito com mais nenhum cobertor», esclarece a tecelã.
Em Notas sobre o Cobertor de Papa de Maçainhas, Maria do Céu Reis relata que, até 1930, «os teares e a produção de cobertores foram aumentando de ano para ano, alargando-se a outras famílias […]». Porém, em 1932, «houve uma grande crise a que poucos fabricantes resistiram. Nessa altura, muitos conterrâneos [da região] decidiram emigrar para a América, Argentina, Brasil e Inglaterra». Cinco anos depois, em 1938, foi possível recuperar-se da crise e, entre 1942 e 1943, podia dizer-se que «cada família [em Maçainhas] possuía um tear para fabricar cobertores».
Maria do Céu Reis explica-nos que, até 1932, os cobertores eram tecidos na aldeia, nos teares domésticos, porém, eram sempre terminados no rio, pois não havia água canalizada. Anos mais tarde, um grupo de 10 sócios-fundadores conseguiu adquirir um alvará que permitiu iniciar a produção dos Cobertores de Papa em fábricas. Assim, há cerca de 100 anos, foi construída a primeira fábrica de Cobertores de Papa: a Fábrica «Fernandes, Tavares e Companhia» – também conhecida por Fábrica Velha – junto ao rio Mondego, de forma a servir-se da força hídrica.
O industrial Artur Freire veio a pertencer ao grupo de sócios. Porém, com o falecimento de dois dos fundadores da Fábrica Velha – José Fernandes e José Fonseca –, o mesmo acabou por comprar o alvará e transferiu a maquinaria da fábrica para umas novas instalações em Maçainhas de Baixo, inaugurando a Fábrica de Cobertores Artur Freire, onde nos encontramos.
Algum tempo após a compra da Fábrica Velha, surgiu uma segunda fábrica de Cobertores de Papa, situada em Vila Soeiro, também na Guarda. Esta, de nome Vales, João, Costas, Clemente e Galinho, ou Fábrica Nova, acabou por ser destruída por um incêndio em 1951. Anos depois, em 1965, a mesma fábrica foi comprada por um outro industrial, o senhor António João, que transferiu, também para Maçainhas, a outrora conhecida Fábrica Têxteis António João. Na nossa entrevista, a tecelã Maria do Céu revela que, com a transferência destas fábricas para a freguesia, mudaram também os pisões, que, antigamente, se encontravam na Barragem do Caldeirão (Guarda).
Com o passar dos anos, foram desaparecendo os teares domésticos, bem como as fábricas outrora instaladas em Maçainhas. Resistiu apenas a Fábrica de Cobertores Artur Freire, posteriormente herdada pelo filho José Pires Freire, em 1966. Ainda assim, também essa acabaria por cessar laboração em dezembro de 2012.
O Cobertor de Papa ficou, por essa razão, extinto durante dois anos, até ao surgimento da associação sem fins lucrativos: Associação Genuíno Cobertor de Papa (AGCP).
São vários os fatores que têm vindo a influenciar o desaparecimento dos Cobertores de Papa. Maria do Céu destaca, sobretudo, o facto de a «industrialização se ter sobreposto à produção artesanal», pois foram sendo inventados «teares e fibras mais sofisticadas, que permitem, hoje em dia, produzir cobertores mais leves e tão quentes como o Cobertor de Papa tradicional».
Outro fator importante é a largura e o comprimento das camas atuais. «As camas aumentaram muito, ou seja, o cobertor tradicional acaba por ficar demasiado pequeno para elas. E nós não conseguimos aumentar o tamanho, porque estamos a trabalhar num tear artesanal. Se reparar, o tecelão tem de movimentar os pés, os braços, a cabeça… quer dizer, não podemos aumentar muito mais do que o que já está», explica apontando para o irmão que se encontra neste momento a trabalhar no tear. Este envolve-se pela primeira vez na nossa conversa e acrescenta: «O cobertor sai do tear com cerca de 2 metros e 50 centímetros, só que depois encolhe nas várias fases de produção por ser 100 % lã. Na sua fase final, deve ficar apenas com 1 metro e 80, 1 metro e 75.»
Um outro aspeto que tem conduzido à extinção deste produto artesanal, é o desaparecimento da própria profissão da tecelagem manual. Tal como Maria do Céu faz questão de sublinhar no seu documento Notas sobre o Cobertor de Papa de Maçainhas, «os tecelões, os homens que fazem o tear manual, estão a desaparecer por morte ou por reforma, e não há jovens que se dediquem a esta arte que exige muito esforço».
Na tentativa de a salvaguardar, Maria do Céu Reis reuniu 16 voluntários e fundou a Associação O Genuíno Cobertor de Papa a 15 de maio de 2018. A associação designa-se como o «único lugar do mundo onde ainda se faz o tradicional, artesanal e autêntico Cobertor de Papa», uma vez que não recorre a nenhuma técnica industrial e utiliza a verdadeira lã que permite a sua produção: a da ovelha típica de raça autóctone portuguesa, churra mondegueira – oriunda da Guarda e da Covilhã – e a da ovelha churra do campo, proveniente de Penamacor.
Apesar de a Associação ter surgido com 16 sócios, atualmente fazem parte apenas 13, sendo que, para a própria produção dos Cobertores de Papa, existem somente quatro tecelões: Maria do Céu Reis, o seu irmão Alfredo, a sua mãe Rosa Baía, e a sócia Dulce Bastos, que não pôde estar presente ao longo da nossa visita.
Rosa trabalhou na indústria dos cobertores desde os 11 anos. Enquanto vamos percorrendo o espaço e observando os vários instrumentos – claramente ancestrais – que se encontram à nossa volta, a dona Rosa vai trabalhando no caneleiro, o aparelho de madeira no qual se coloca um pequeno canudo – a canela – para que o fio, designado de trama, se vá enrolando e preparando para o processo de tecelagem.
Por momentos, sentamo-nos à sua frente e perguntamos se podemos interromper o seu trabalho por um instante. Responde-nos afirmativamente com algumas falhas na voz e um grande sorriso no rosto. Começa por nos contar que nasceu cá, na Guarda e em casa, como antigamente era habitual. Já no que diz respeito ao trabalho enquanto tecelã, afirma que, atualmente, não descreve o que faz na associação como trabalho, mas sim como uma distração «para se ir mantendo ativa». «Eu, encher, ainda vou enchendo», ri-se. «Antigamente, isto não era assim. Agora trabalho o dia todo sentada. Trabalho a descansar.»
Maria do Céu Reis, por sua vez, também pertenceu à Fábrica Artur Freire durante 28 anos, apesar de ter trabalhado numa outra fábrica durante um ano, «clandestinamente», quando era mais nova. «Eu tenho 54 anos, mas não nos podemos esquecer de que a minha mãe começou nisto aos 11», afirma. «Eu costumo dizer que tenho 54 anos mais nove meses, porque a minha mãe já trabalhava nisto enquanto estava grávida de mim. Isso diz tudo. Ficamos sempre ligados às coisas através do cordão umbilical, não é verdade»?
O irmão de Maria do Céu, Alfredo Baía, seguiu um caminho diferente ao longo da sua vida. Foi camionista durante 20 anos e somente há um ano é que se juntou à família para ajudar no projeto. Aceitou vir para a associação «para desenrascar», mas também pela paixão que tem pela arte da tecelagem. «A gente, se não gostar, não faz as coisas benfeitas», remata Alfredo enquanto se coloca junto do tear, prosseguindo com o seu trabalho. «Eu não tinha conhecimentos acerca da tecelagem manual, apenas tinha dos teares das fábricas industriais. Para fazermos estes cobertores, é preciso muito trabalho manual, aliás, até já tenho problemas de hérnias na lombar», afirma parando por breves momentos. «Se eu tivesse de estar aqui das 8 às 17 horas como era antigamente, não me aguentava. Agora, venho para aqui, faço uma manta ou duas no máximo. Demora umas quatro horitas a andar bem, porque isto não é só tecer!
Enquanto vamos conversando com Maria do Céu e a sua família, somos surpreendidos pela entrada de um senhor, com idade claramente avançada, de bengala e com o passo desacelerado. «Ora, boa tarde», cumprimenta, parando para nos observar. É o senhor José Pires Freire, de 90 anos, que veio fazer uma das suas visitas diárias à fábrica do seu falecido pai.
José Freire senta-se numa das cadeiras junto da parede do salão, e nós não perdemos a oportunidade para lhe fazer algumas perguntas. No final de contas, foi José Freire que optou por encerrar esta última Fábrica de Cobertores de Papa. Por que razão? «Já estava farto disto, o Xô Zé», brinca Alfredo.
José não parece levar a mal o comentário do tecelão e responde-nos: «Eu conheci esta região toda. Havia tanta gente a fabricar disto, havia tantos teares e desapareceu tudo. Mas a vida é assim. Digo, e continuarei a dizer: uma pessoa não pode trabalhar até cair para o lado, não é?»
Alguns momentos de conversa depois, conta-nos que os verdadeiros motivos que o levaram a vender a maquinaria da fábrica foram financeiros. Desta forma, percebemos que José Freire vendeu, «a um conhecido seu», todos os teares automáticos que tinha neste espaço, tendo apenas mantido os manuais. Este facto, por sua vez, levou ao encerramento dos vários postos de trabalho da Fábrica de Cobertores Artur Freire e à falta de mão de obra disponível para trabalhar.
Apesar da decisão de José Freire, Maria do Céu Reis quis alugar o espaço da Fábrica ao antigo proprietário para que pudesse continuar a produzir os Cobertores de Papa e sediar a sua associação. «Acho que devemos olhar para trás para podermos avançar para a frente. Estas pessoas possuem um saber que mais ninguém tem, e penso que isso seja o mais importante. Termos alguém que nos ensine», elucida a tecelã apontando para José Freire e para dona Rosa. «Nós herdámos isto graças a estas pessoas e a associação também é uma homenagem a todos aqueles que trabalharam aqui.»
É durante os meses de maio e junho, com a tosquia das ovelhas, que se inicia o longo processo de produção do Cobertor de Papa. Tal como se pode ler no documento de Maria do Céu Reis, «não obstante as experiências levadas a efeito com máquinas modernas por lavradores progressistas, os rebanhos da Beira-Baixa continuam a ser tosquiados com as antigas tesouras fabricadas na forja de velhos ferreiros do Jarmelo, na Guarda».
Na Fábrica de Cobertores Artur Freire, podemos ver grandes pedaços de lã churra espalhados pelo chão. Maria do Céu explica-nos que estes, mais tarde, serão transportados para a Sociedade Têxtil Manuel Rodrigues Tavares, na Guarda, para passarem por todo o processo de lavagem, seleção de lã e fiação.
Mas nem sempre foi assim. Antigamente, «a lã era lavada manualmente pelas pessoas da aldeia. Depois de lavada, era posta ao sol e estendida pelos caminhos». Para além disso, antes da mecanização dos processos que atualmente conseguem transformar a lã em fio, este trabalho também era feito artesanalmente, pelas mulheres, e em casa.
«O fio já chega aqui à fábrica pronto a tecer», prossegue Maria do Céu, destacando alguns dos mecanismos. «Portanto, são criados dois tipos de fio: o barbim [fio teia ou urdume] e o trama [transversal]. Se quisermos que o fio seja colorido, temos de o mandar tingir em Seia, na Fábrica Camello, mas tem de ser um tipo de tingimento específico, porque se não, quando levarmos o cobertor ao pisão e o empaparmos em água, podemos correr o risco de o tingir todo ou de misturar cores.»
A fase seguinte do processo de produção do Cobertor de Papa designa-se «urdir», isto é, dispor os fios barbim na urdideira para, posteriormente, criar-se o tecido. Estes fios são montados no aparelho em comprimento e em número suficiente para se conseguirem tecer três pisas [conjunto de sete cobertores, ou seja, um total de 21]. Para exemplificar, a dona Rosa pega num dos fios barbim e começa a dispô-lo na urdideira, convidando-nos depois a experimentar. Desajeitadamente, nós assim o fazemos.
Depois deste processo, a teia criada é, então, removida da urdideira e enrolada no órgão do tear manual, para depois ser atada aos fios que sobraram da teia anterior. Nesta altura, o tear já está pronto a tecer. Contudo, tal como explica Maria do Céu em Notas sobre o Cobertor de Papa de Maçainhas, «para que tal aconteça, o tecelão deve dominar as várias partes do tear por ele acionadas, de forma coordenada e sequencial. Este trabalho requer persistência e força».
Juntamo-nos a Alfredo Baía perto do tear e é precisamente esse trabalho que pedimos que nos demonstre. «A isto chama-se ponto tafetá», começa por nos dizer, apontando para o cruzamento dos diferentes fios no tear. Com a sua mão direita, Alfredo aciona a rédea que faz andar a lançadeira, a peça de ferro que permite mover a canela com o fio trama para a esquerda e para a direita.
O tecelão esclarece: «o fio trama é este mais grosso, que passa aqui na transversal», aponta, «e que vem na canela transportada pela lançadeira. Já este é o fio barbim, que fica na teia por onde passa a lançadeira».
À medida que Alfredo repete estes movimentos, o cobertor vai ganhando forma e enrolando-se no rodete. Depois de tecida, a pisa é finalmente cortada e levada para o pisão. Aí, é empapada em água e batida pelos maços de madeira até ficar encorpada, mais forte e espessa. A meio desse processo, retira-se a pisa para se esticar e coloca-se, depois, novamente, dentro do pisão.
Enquanto Alfredo e Maria do Céu nos vão elucidando acerca de todas estas técnicas, somos presenteados com a presença do Jorge Elias, marido de Maria do Céu há 31 anos. Este, que também já esperava a nossa visita, percebe imediatamente qual a fase do processo a que estamos a assistir no momento. Apresenta-se rapidamente à equipa do Gerador, acabando por se envolver na nossa conversa de uma forma muito natural. «Coloca lá um cobertor no pisão para elas verem como funciona», pede Jorge a Maria do Céu. A tecelã pega num cobertor e introdu-lo no aparelho, colocando-o a trabalhar de seguida. Aos poucos, começamos a ver a água a correr e a ser absorvida pela manta. É desta forma que assistimos, de perto e pela primeira vez, à principal técnica que levou à designação destes cobertores como «Cobertores de Papa».
Jorge Elias explica-nos que, após 20 minutos no pisão, o cobertor deve ser transferido para a percha ainda molhado, onde permanece durante quatro horas para ganhar pelo em ambos os lados.
Por fim, saímos da fábrica e caminhamos junto de Maria do Céu e Jorge Elias até ao local de secagem dos cobertores – as râmbolas de sol. O casal demonstra-nos de que forma se devem pendurar os cobertores nesta armação de ferro, que possuiu vários picos nas extremidades, para que os mesmos fiquem bem presos até secarem. «Depois de secos, os cobertores retiram-se da râmbola e vão para o armazém onde são dobrados e embalados.»
Estamos prestes a terminar a nossa visita à Fábrica de Cobertores Artur Freire.
Quando regressamos para dentro do espaço, espera-nos uma mesa recheada de gastronomia tradicional da Beira Interior, na qual se inclui o belo queijo da Serra da Estrela, umas tostas e um pão de ló. Maria do Céu mostra-nos ainda alguns dos artefactos que estes quatro tecelões produzem na fábrica com a lã churra, tais como almofadas, agendas, rocas de cheiro com alfazema e sabonetes de glicerina vegetal, nos quais se podem encontrar pequenos fios de lã, de diferentes cores, em representação dos vários Cobertores de Papa. Estes, por sua vez, mudam de padrão consoante a localidade onde são vendidos, destacando-se:
• a manta barrenta ou de pastor (listas castanhas e brancas);
• a manta lobeira ou espanhola (listas brancas, castanhas, verdes, vermelhas e amarelas);
• o cobertor branco;
• o cobertor branco com três linhas nas pontas (castanhas ou verdes);
• o cobertor bordado (fundo branco com riscas azuis, vermelhas e verdes, sendo bordado à mão com losangos num dos lados do cobertor;
• o cobertor de várias cores, apesar de este ser muito raro atualmente.
Maria do Céu Reis revela-nos que a Associação O Genuíno Cobertor de Papa criou o projeto Papachurra, de forma a obter a certificação do Cobertor de Papa de Maçainhas. Para tal, o grupo de sócios candidatou-se à 4.ª edição do Programa Tradições da EDP, acabando por se destacar como um dos 10 vencedores. Ainda assim, o pedido permanece em avaliação.
Jorge Elias, que também se junta à conversa, relembra que todo o processo de produção de Cobertores de Papa se encontra em vias de extinção, não somente o produto. «Já só existem 500 ovelhas churra do campo e 2000 churra mondegueira. Já para não falar da falta de apoios que temos», conclui.
Para nos despedirmos deste grupo de tecelões e da aldeia de Maçainhas, esperámos que o pôr-do-sol começasse a surgir para nos dirigirmos até Pousade, onde fomos visitar um dos rebanhos de ovelhas churra mondegueira, as verdadeiras protagonistas desta história. Foram cerca de 20 minutos de carro. Quando chegámos à localidade, o grupo de ovelhas pastava calmamente, sendo que muitas delas vieram mesmo ter connosco sem sentirem o seu espaço invadido. A grande maioria apresentava o pelo branco ou castanho, porém, conseguíamos distinguir duas ovelhas pretas que se destacavam por serem de uma raça diferente: as bordeleiras da Serra da Estrela.
A acompanhar o seu rebanho, estava o jovem pastor João dos Santos, de 34 anos, com os seus dois cães: o Batatas, de raça border collie, que serve de cão-pastor para a condução do rebanho, e o Morango, de raça castro-laboreiro, que, por sua vez, serve de cão de guarda do rebanho.
Com o desenvolvimento do projeto Papachurra, a Associação O Genuíno Cobertor de Papa tem tentado promover a produção destes cobertores através de workshops, visitas guiadas ou até de formações na própria Fábrica Artur Freire. No que diz respeito à venda deste produto «artesanal, único e genuíno», o mesmo pode ser adquirido diretamente nestas instalações, encomendado online através da página oficial de Facebook d’Associação ou do website do projeto Papachurra. Atualmente, pode ainda ser encontrado nalgumas lojas físicas em Lisboa, Coimbra, Vila Franca de Xira ou Cartaxo.
Cada vez mais, é notória a «falta de interesse» por parte da população – nomeadamente jovem – em manter viva esta produção ancestral. «Somos apenas quatro a trabalhar em conjunto e já reparou que temos uma pessoa com 89 anos», lamenta Maria do Céu. «Isto só acaba se nós deixarmos que acabe! É importante chamar a atenção dos governantes, dos presidentes das câmaras municipais, porque eles, às vezes, empatam para que as coisas sejam feitas. É uma vergonha para Portugal que não se dê valor ao que cá se passa – e não me refiro apenas aos Cobertores de Papa. Enfim, mantemo-nos aqui, sozinhos, mas estamos cá. E vamos dar luta.»