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Entrevista Diogo «Gazella» Carvalho

Para ficares a saber mais sobre a obra gráfica desta Revista

Texto de Amina Bawa

 

Diogo «Gazella» Carvalho © Fotografia da sua cortesia

 

Nascido em 1997, em Lisboa, Diogo «Gazella» Carvalho foi inicialmente criado na cidade, mas, mais tarde, mudou-se com a sua família para os subúrbios de Sintra. A sua jornada artística começou desde cedo, mas foi na França que ele encontrou sua visão artística e uma maneira de pensar que moldaria seu caminho criativo.
Gazella nunca esqueceu suas raízes e sua criação na Linha Sintra, e isso influenciou profundamente os seus projetos artísticos. Envolveu-se em projetos significativos e profundos nas áreas do cinema, do design de cenários teatrais e da fotografia.
O que diferenciou Diogo foi sua perspetiva ativista. Usou a sua arte não apenas como forma de expressão pessoal, mas também como uma poderosa ferramenta para advogar por aqueles que muitas vezes passam despercebidos na sociedade. O seu trabalho é uma declaração da necessidade de um espaço não apenas para si mesmo, mas para inúmeras outras pessoas que lutam para encontrar seu lugar no mundo.
Em 2018, Gazella cofundou o coletivo Unidigrazz, trazendo uma perspetiva fresca e inovadora à cena cultural portuguesa. Através desse coletivo, pretende desafiar as normas estabelecidas e criar uma plataforma para ampliar vozes diversas dentro do mundo das artes.
Conversamos com o artista que apresenta a sua obra gráfica nesta edição da Revista Gerador.

A vida entre Portugal e França, idas e vindas são reflexos da tua carreira artística?

França foi um período da minha vida, marca também o começo da reflexão sobre classes sociais, da desigualdade entre elas. Sendo vítima de uma crise, a minha família foi obrigada a procurar uma melhor vida fora de Portugal. Sentindo na pele o rebentamento da corda, que sem exceção, arrebentou do lado mais fraco, ou dos lados mais fracos da sociedade, fez-me procurar o porquê, dando personalidade ao meu trabalho ou a tentativa de a ter.

 

Como a tua arte abre espaços e amplifica vozes?

Como cidadão, não me vendo mais do que isso, falo do que sinto que falta, a mim e ao meu redor, para ter uma vida digna, ou seja, ter direito a uma alimentação boa, educação sem maquilhagens, segurança para todos sem barreiras, saúde não capitalizada e habitação justa. E como estas exigências refletem as exigências de muita gente, certa maneira, pela arte que faço e usando o pouco de “palco” que tenho, amplio o que muitos reclamam, que têm voz, mas não têm ninguém para ouvir.

Por que razão é importante representar os corpos que dançam, cantam…?

A inclusão para mim, não é algo de agenda, nem só uma palavra-chave, mas traço no meu trabalho. Represento gente como eu, sem espaço para serem ouvidas e não como salvador nenhum, algo que para mim é natural.

 

Falar sobre as diferenças sociais acaba por causar tensões no seu trabalho?

Não me foco nesse lado, mas todas as tensões que existam ou existirem só reflete que, se calhar, de alguma forma, o meu trabalho, na base da sua existência pode estar a ser, qualquer coisa parecida como importante.

Sem docu’

 

Tapei o olho, forço a vista direita.

– O que vê?, perguntou o médico. Pergunta-me o médico.

– Não vejo nada, ou melhor, minto. Vejo, mas embaçado, murmurei, tentando expressar o que via.

– Uma vez mais, insistiu o médico, e senti a pressão da sua expectativa sobre mim, como se minha resposta pudesse desvendar algo.

Dobrei minha vontade sobre o olho aberto. A imagem parecia tomar forma, num nevoeiro que cria asma.

– Agora, sim, vejo. Ninguém.

O médico arqueou a sobrancelha, – Ninguém?, ele, como se a palavra tivesse escapado.

– Ninguém, confirmei.

– Ninguém dança, ninguém canta, ninguém se ergue todos os dias de manhã para trabalhar.

Ninguém possui uma família cujos laços transcendem o tempo e o espaço. Ninguém contribui para o tecido social com seu suor e esforço.

– Vejo um vulto que deslizava apressado pela rua, de azul ou rosa não sei bem, de costas. Ar familiar, embora de costas, um quadro que eu, hesitante, tentava decifrar.

– Então?, perguntou o médico, tom carregado.

«Ninguém. Vejo ninguém.»

Naquele instante, as palavras eram como um véu que se desfazia, revelando a crua realidade daqueles que, sem documentos, eram reduzidos a meras sombras na sociedade.
Com nevoeiro menos denso agora, e eu via com clareza: as vidas silenciadas, as histórias não contadas, os sonhos não compartilhados. Ninguém, uma palavra que refletia a invisibilidade imposta àqueles que, mesmo estando presentes, eram tratados como ausentes.
O médico permaneceu em silêncio, e eu sabia que minhas palavras haviam transcrito uma verdade profunda, uma realidade enraizada na terra lusitana. Com o olho tapado, via uma janela para uma realidade invisível, uma realidade em que tantos eram «ninguém», não por escolha, mas por um sistema que os negava.
Assim, enquanto a imagem do vulto de costas continuava ali e muitos queriam que se esvaísse, eu permanecia ali, um olho vendado diante da injustiça que persistia, um testemunho mudo daqueles que, sem cidadania, eram reduzidos a sombras, a silêncios, a ninguéns.
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