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Observação de baleias: Mamas, recondicionamento estético e o No Body

Na Revista Gerador 42, na crónica Observação de baleias, que agora partilhamos contigo, Pedro Pires aborda a complexa discussão em torno das representações de mamas e corpos, destacando o papel do Meta Oversight Board (MBO) na recente polémica sobre a proibição de mamilos em plataformas como o Facebook. Pedro destaca ainda a necessidade de transcender normas sociais ao discutir a natureza do corpo, explorando artistas contemporâneos, como Michaela Stark, Ney Matogrosso e Arca, que desafiam as convenções e redefinem conceitos de beleza e identidade corporal.

Que vivemos em paradoxo já sabemos, mas continua a ser muito agradável observar alguns de perto. 

O assunto é mamas. E mais particularmente mamilos. E o que isso envolve. Ou o que a sua representação envolve. Porque deste assunto muitas perspetivas poderíamos ter. Algumas bem sérias até.

Entretém-se parte do mundo nessas, felizmente. Diverte-se a outra parte com a discussão do simbolismo das mamas. O Meta Oversight Board (MBO) identificou esta política como discriminatória. Passaram dez anos desde que a campanha Free the nipple começou no Facebook. Dez anos depois, o MBO afirma que – desviando-se de outras questões válidas como: «Porque é que uma mama é diferente de um cotovelo?» Ou «E a de um homem diferente da de uma mulher?» As regras que proíbem mamilos são aplicadas a um mundo género normativo e não se aplicam a «pessoas intersexuais, não binárias e transgénero», levando a que «os revisores façam avaliações rápidas e subjetivas de sexo e género». A discussão está ao rubro em Espanha, depois de Eva Amaral, ter tirado o top para cantar a música Revolución, afirmando o gesto como uma «defesa da dignidade da nossa nudez».

É ou não um gesto feminista mostrar as mamas? Há perguntas que, só depois de feitas, ganham dimensão.

Em todas as representações, Eva mostra as mamas. Os gregos mostravam as mamas de Afrodite e os romanos, as de Vénus, e as de todos, na verdade, que o clima era bom. Os indianos mostravam as de Parvati, a deusa da fertilidade, e vê-se que tinham gosto em fazê-lo. Na idade Média e na Renascença, era um ver se te avias. Para os franceses, são um símbolo de liberdade.

Então e se não for nem homem nem mulher? A questão do MBO é a que mais interessa: «O que é o corpo? O que é que ele significa? Para que é que ele é preciso?»

A discussão à volta de mamas tem muito que ver com o peso simbólico do corpo, e do poder que resulta do controlo sobre a ideia e a prática do corpo, porque esse controlo leva a outros.

A questão não é a de apenas se existe ou não o direito da mulher mostrar o corpo como um homem. Essa formulação é, em si, patriarcal. Discutir o corpo como ele é, nipple or no nipple acaba por enfermar do próprio preconceito que lhe dá origem. É fazê-lo com base em princípios normativos histórico-sociais que desprezam a discussão sobre o que é o corpo. Antes a centram no que parece o corpo e na classificação e codificação dessa aparência, e logo, no ganhar poder de influência sobre as representações que todos temos. A verdadeira questão é a da propriedade intelectual e simbólica sobre a definição de corpo, a própria classificação de corpo, e a redefinição dos conceitos de beleza, iconográficos e simbólicos a ele associados. Porque dependem destes conceitos e da sua estabilidade, a estabilidade desses mecanismos de poder. A única discussão que, neste momento, é capaz de ultrapassar o preconceito é a que se faz acerca da natureza do corpo – do que ele é, do que ele representa e, claro, da sua ou não inevitabilidade. Ao retirar a questão do corpo do assunto, o MOB transferiu a ideia e a política de corpo para o centro da discussão. Por coincidência com particular intensidade, e sucesso, nos últimos dez anos.

Ainda assim, não mostrar as mamas pode ser mais provocador do que o fazer.

Michaela Stark explora este paradoxo melhor do que ninguém na atualidade. A sua síntese coloca-a como atriz desta nova/velha discussão. A sua art lingerie, focada na peça do espartilho e ou corpete, é totalmente consciente do seu papel de condicionador físico e social, e intencional na exploração do poder sexual que dele emana.

A partir de todos estes arquétipos, parte numa viagem de desconstrução formal do papel funcional da própria peça no corpo da mulher, mas também do seu efeito visual e da forma como a mecânica sexual, a ficção, é ou não efetivada perante o absurdo de tão grande transformação da expetativa. 

Uma pin up é uma pin up e (nunca) é uma pin up. É uma viagem de curvas com piscar de olho a Araki, a Gaultier, e, na verdade, a toda a história da arte e da moda.

Sempre foi esta a discussão que determinados artistas tentaram trazer para o domínio público. A dialética de poder que emana da estabilidade de certas representações.

É isso que Ney Matogrosso fez/faz com a sua cenografia pessoal e sua cosmogonia simbólica de recuperação do humanismo da alma brasileira, que resulta da miscigenação de tudo.

O que Grace Jones fez/faz ao colocar o corpo feminino, negro, musculado, orgulhoso, brilhante no centro da sua imagem, e dizer «isto sim, isto é perfeito».

É isso que Arca faz, ao diluir não só a noção de género, mas também a noção de limite do corpo, não só através da criação de apêndices e próteses, mas também acerca dessa virtualidade real onde habitam as suas ficções.

É o que Tracy Emin sempre fez e tem vindo corajosamente a reforçar no seu «diário de vida com um Estoma», na sequência da operação a um cancro da bexiga em 2020.

E é neste momento de confluência entre body politics e tecnologia de upload de consciência, que se extremam as discussões da representação do corpo e dos seus limites e mais se começa a falar da ausência do corpo – e da passagem para um domínio existencial em que esse corpo é dispensável.

«Agora, mais do que nunca, o sonho é poder possuir a capacidade para criar novos mundos.» Quem o diz é Diz Hans Ulrich Obrist, em artigo do Artsy, em que elege os artistas para 2023, excitado com os videojogos e em artistas como Gabriel Massan e centrado em artistas que exploram noções de propriedade e corpo como Ventura Profana.

Numa entrevista que faz a Elmgreen & Dragset, no contexto da exposição Useless Bodies, na Fundação Prada, define o momento de transição em que estamos no que toca à discussão sobre o corpo. «[esta exposição] trata da noção de que o corpo migrou, ou mudou ao longo do tempo, na era industrial, quando era fundamentalmente importante. Depois perdeu a centralidade, […] na era pós-industrial ao ponto que talvez hoje pareça que se tornou supérfluo.» [tradução livre].

Se calhar, o melhor é continuar a mostrar as mamas.


-Sobre o Pedro Pires-

É CCO/CEO da Solid Dogma. O que quer dizer que é criativo, mas que também tem outro tipo de responsabilidades enquanto não aparecem outras pessoas que façam melhor o serviço. É o autor da crónica «Observação de baleias» na Revista Gerador.

Texto de Pedro Pires
As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.
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