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Texto de Sofia Craveiro
Edição de Débora Dias e Tiago Sigorelho
Produção de Martim Campos
Ilustrações de Nuno Metello
Design de Priscilla Ballarin
Digital de Eunice Gordon
Foi na viragem do milénio que, em Portugal, se deu início ao arquivo de páginas web. O Arquivo.pt nasceu como projeto universitário, sendo considerado serviço público 12 anos depois (2012). “Tal como as páginas dos livros devem ser preservadas, agora que as páginas da web vieram em grande parte substituir as páginas em papel, estas também têm de ser preservadas, porque senão a maior parte da informação que nós produzimos e consumimos todos os dias simplesmente perde-se”, afirma Daniel Gomes, gestor da plataforma, em entrevista ao Gerador.
O Arquivo.pt guarda todas páginas que estejam no domínio “.pt” de forma automatizada, embora o critério não seja uniforme. Funciona um pouco como outros motores de busca, permitindo encontrar sites que podem ou não ainda estar em funcionamento com base em pesquisas por texto, imagem ou outros filtros. Há 130 páginas portuguesas que são guardadas todos os dias porque a sua atualização é diária. Também guardam algumas páginas internacionais. “O critério é abrangente, sendo que qualquer pessoa pode sugerir uma página para ser arquivada independentemente do domínio. Basta ir a arquivo.pt/sugerir e sugerir uma página para ser arquivada”, diz Daniel Gomes.
“Temos 17 mil milhões de ficheiros arquivados da web desde a década de 1990. Portanto, todo este processo tem de ser feito de forma automática com a mínima intervenção humana”, acrescenta.
Apesar de arquivar páginas de órgãos de comunicação social, o Arquivo.pt enfrenta algumas limitações, já que não é capaz de guardar conteúdos de acesso pago, nem tem capacidade para armazenar muitos vídeos. Importa ainda afirmar que o seu propósito não é exatamente esse, mas antes o de guardar o que é produzido na web portuguesa de forma ampla. A própria estrutura, constituída por apenas seis pessoas, é elucidativa da falta de recursos de que o próprio responsável se queixa. “O nosso orçamento não é público, mas é relativamente insignificante em comparação com outras organizações do mundo que fazem a mesma coisa”, lamenta.
Não existe qualquer tipo de coordenação formal estabelecida com a Biblioteca Nacional (BN), entidade responsável pelo depósito legal, pelo que não é assumido, pelo Arquivo.Pt, o papel de obrigatoriedade de arquivo. Há, no entanto, o que Daniel Gomes chama de “coordenação implícita”. “A Biblioteca Nacional, ao abrigo do depósito legal, guarda as páginas impressas e não guarda as páginas da internet”. O Arquivo.pt faz o inverso. “O que acontece é que uma página pode ser alterada várias vezes antes de nós irmos guardá-la, portanto a questão de nós não guardamos as páginas todas prende-se com isso.”
O responsável reconhece que, atualmente, a preservação de informação digital – a que é produzida online e não apenas os PDF que correspondem às edições em papel –, ainda é desvalorizada. “Há redações diferentes para a versão impressa e para a versão online, há artigos diferentes, os recursos são diferentes para uma e para outra e cada vez mais vão para o online.”
“Os utilizadores leem cada vez mais o [conteúdo] online, mas no fim do dia, a informação que é produzida, que demora tempo a escrever, a editar, perde-se. Portanto, basicamente os jornais gastam imensos recursos e depois mandam embora o seu património, que é uma coisa que parece quase meio doida”, questiona.
O problema, segundo diz, tem que ver com a falta de evolução nos processos, que não acompanharam o desenvolvimento tecnológico. “Esse é que é o problema maior: não parecer que haja um problema”, diz.
O gestor equipara a homepage dos órgãos de comunicação social às manchetes dos jornais, referindo que, enquanto no primeiro caso não existe cuidado em preservar, no segundo considera-se que é de extrema relevância. “Aquilo com que fazemos todos os dias a revista de imprensa tradicional, as “pregonas” do dia – que são tão úteis e até há serviços pagos para isso –, ninguém guarda.”
Daniel Gomes acredita, por isso, que há um “problema geral de falta de consciencialização”.
Em última instância, a não preservação de conteúdos mediáticos vai acabar por traduzir-se, na opinião de João Palmeiro, numa privação do direito à informação, já que haverá lacunas graves na memória coletiva nacional. “Teremos uma grande desigualdade pelo país”, sobretudo no que respeita a informação sobre órgãos de comunicação locais, diz o presidente da assembleia geral da Associação Portuguesa de Imprensa (API).
Rita Almeida de Carvalho, doutorada em História Contemporânea e investigadora no ICS-UL – Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, alarga as críticas a todo o setor arquivístico português. Refere a lentidão das plataformas, em muitos casos desatualizadas, e a digitalização ineficiente de documentos que, quando não incluem o reconhecimento de texto para pesquisa de palavras-chave, se torna pouco útil.
“Eu sou muito crítica em relação àquilo que se passa nesta área. No meu entender deveria ser muito melhor. Já passou tempo suficiente para se aprender com os erros. Por exemplo: o problema dos softwares proprietários, que é uma coisa que as bibliotecas e os arquivos têm tendência a adquirir, coisas que são caríssimas, que têm uma manutenção que também é exorbitante… Depois há crises económicas, e a primeira área afetada é sempre esta, da cultura, deixando de haver fundos para custear as atualizações de software”, analisa.
Referindo que a área dos arquivos de órgãos de comunicação não é aquela sobre a qual tenha mais conhecimento, já que trabalha mais diretamente sobre a administração pública, a historiadora admite que a situação de carência crónica de recursos na área arquivística podia mudar se as mais-valias fossem bem identificadas. “Toda essa memória é útil para perceber o que somos hoje, para perceber opções do passado, para evitar, de alguma forma, que nós venhamos a cometer erros que cometemos anteriormente”.
“Há também um lado mais ligado com o marketing e a publicidade, o utilizar a memória das instituições, das empresas, para consolidar uma imagem, para transmitir confiança aos consumidores”, diz Rita Almeida de Carvalho.
Recentemente, a BN lançou o Depositório Digital de Jornais. Ainda numa fase embrionária, esta medida, desenvolvida no âmbito do Simplex, programa de simplificação da administração pública, tem o objetivo de facilitar a logística de entrega de exemplares em papel. Ao invés, os exemplares físicos podem ser dispensados se as entidades de comunicação enviarem os ficheiros em PDF, que depois são disponibilizados online, após um período de embargo, definido pelos próprios. Nesta fase, pouco mais de uma dezena de jornais aderiram a esta modalidade, sendo a maioria títulos locais ou regionais. O jornal Expresso é o único título nacional generalista que adotou esta prática.
Miguel Mimoso Correia acredita que a plataforma possibilita a facilidade de envio e a redução de custos necessários para tratar a logística dos envios em papel. O autodepósito, como está formulado no DDJ, facilita o trabalho da BN porque “não teríamos de ter uma pessoa a contar jornal a jornal, a ordenar”. “Uma vez que o depósito legal vem [por vezes] com números em falta, isso tem de ser tudo muito verificado e é moroso. Por outro lado, o editor acabava por não ficar com esse custo do transporte de enviar para cá”, diz.
Para o responsável da BN, a dispensa dos exemplares em papel é uma forma de dar “alguma resposta” à carga burocrática e de logística que implica o depósito legal. Não obstante, a preservação dos exemplares em papel é valorizada por historiadores, não só pela sua durabilidade, como pela impossibilidade de alteração dos escritos. “A vantagem do analógico é que é mais fácil distinguir os fakes”, diz o historiador José Pacheco Pereira, em entrevista ao Gerador, referindo-se à possibilidade de um artigo em formato digital poder ser adulterado, mesmo após o seu arquivo. “Se o tiver em papel é mais difícil. Tanto que há tribunais que não aceitam fotografias digitais como prova, só fotografias analógicas”, acrescenta.
“Os materiais digitais são muito mais precários” até porque existem diferentes equipamentos para leitura, que ficam obsoletos, explica o historiador.
No que respeita ao áudio, há novas estruturas a ser desenvolvidas. O Arquivo Nacional do Som será, segundo anunciado, uma realidade palpável em 2026 ou 2027. Por agora é apenas uma “estrutura de missão” centrada na pessoa de Pedro Félix, antropólogo, investigador do Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança da Universidade NOVA de Lisboa (FCSH) e do Instituto de História Contemporânea (FCSH).
Em conjunto com um trabalhador a tempo parcial, Pedro Félix tem sido responsável pelo desenvolvimento de relatórios técnicos e investigação prévia.
O objetivo deste arquivo – cuja concretização ficou definida numa Resolução de Conselho de Ministros de 2019 – é “centralizar aquilo que não é financeiramente viável dispersar”, ao mesmo tempo em que se diversifica o acesso, que é “o que de facto importa às pessoas”, diz o antropólogo.
“Tudo aquilo que é um evento sonoro que tenha sido registado num suporte que permita ser reproduzido é o nosso objeto [de arquivo], desde que, obviamente, tenha a ver com a realidade portuguesa, com o português e com os portugueses.”
No site, são referidos alguns exemplos de “património sonoro nacional”: “o som de um pássaro, de um vulcão, de uma rua ou de um bosque, uma entrevista, uma reportagem, um disco de um intérprete celebrado, uma gravação esquecida que não foi incluída no disco comercial com milhões de cópias vendidas, uma notícia transmitida que relata um evento aparentemente banal, mas que virá a revelar-se determinante na história de um país”, entre outros.
A estrutura será instalada em Mafra, num edifício construído de raiz que permitirá preservar cerca de 500 mil itens, 170 mil dos quais ameaçados. O ficheiro mais antigo que está sinalizado é de 1900, de acordo com o responsável.
Pedro Félix diz que o grande objetivo é trabalhar com as entidades públicas e privadas para as ajudar na preservação deste património, de forma que a prática se torne sistemática.
Apesar do papel do Estado, a responsabilidade de preservar a memória coletiva cabe, também, a cada cidadão. Esta é, pelo menos, a opinião de historiadores e responsáveis que deram o seu contributo para esta reportagem.
O Estado “deve fazer tudo para que as coisas não se percam, mas eu não sou a favor da ideia de que o Estado seja a única instituição” a fazê-lo, opina Pacheco Pereira. A sociedade civil e os arquivos pessoais – como o Ephemera, que fundou –, também desempenham um papel fundamental, na sua visão.
Também João Palmeiro, presidente da assembleia-geral da Associação Portuguesa de Imprensa, tem uma opinião semelhante. “Há com certeza muitos cidadãos que têm 30, 40, 50 anos, que têm umas caixas de sapatos [com jornais, cassetes, ou outros objetos históricos], que não sabem o que lhes hão de fazer lá em casa.” Na Feira da Ladra, em Lisboa, por exemplo, podem encontrar-se publicações e documentos antigos vendidos ao desbarato. “Na maior parte dos casos, estas pessoas queriam ver-se livres disto. Não têm nenhum incentivo e até podem ter algum medo de ser responsabilizadas por ter aquilo, que não sabem sequer como é que lá chegou a casa”, diz o dirigente.
Além disso, “os arquivos não são repositórios mortos”, na opinião de Filipe Guimarães da Silva, diretor executivo da Fundação Mário Soares e Maria Barroso. Esta entidade detém o arquivo Casa Comum, que disponibiliza online diversos conteúdos, entre os quais as edições publicadas do extinto Diário de Lisboa. Para o responsável, existe uma necessidade crescente de “envolver os cidadãos no enriquecimento dos próprios arquivos”.
“Estamos a falar, muitas vezes, sobretudo nos arquivos contemporâneos, de termos a possibilidade, quase inédita, de termos as pessoas ainda vivas e capazes de poderem ajudar na descrição de vários arquivos”, refere.
“Cada vez mais temos projetos internacionais, de crowdsourcing, de identificação de fotografias, transcrição de cartas, enfim… são várias as possibilidades de envolvimento dos cidadãos, no fundo desta inteligência coletiva.”
Apesar disso, em Portugal, têm pouco respaldo, acredita. “São muito poucos os projetos, no âmbito dos arquivos que, no fundo, têm respondido a esta necessidade que é também um desafio colocado pela própria sociedade civil”, diz o diretor.