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REPORTAGEM
 DEMOCRACIA 

O ódio ganhou terreno
e está a contaminar
o quotidiano

Texto de Sofia Craveiro
Edição de Débora Dias e Tiago Sigorelho
Ilustrações de Marina Mota
Digital de Inês Roque

16.09.2024

A intolerância está a transbordar das redes sociais, ocupando cada vez mais espaço nas ruas e no parlamento. Manifestações de ódio e atos de violência multiplicam-se.
A ascensão de grupos de extrema-direita tem-se intensificado, conforme aponta o Relatório Anual de Segurança Interna. A organização de iniciativas de propaganda e ações de intimidação tornou-se cada vez mais frequente. Especialistas alertam que a normalização destes comportamentos não será fácil de reverter.

Esta reportagem é a terceira parte de uma investigação que o Gerador dedica ao tema dos crimes de ódio.

 

Bastou que a editora Penguin anunciasse a publicação do livro infantil No Meu Bairro para que chegassem as primeiras mensagens de ódio, através das redes sociais. De início o alvo era a linguagem neutra. Depois, com a divulgação de algumas temáticas das estórias, “a coisa começou a escalar e começaram a entrar em acusações de pedofilia e doutrinação [das crianças]”, conforme explica Lúcia Vicente. A autora da obra que reúne pequenas estórias de diversidade e inclusão, nomeadamente sobre pessoas e famílias LGBTQI+, conta, em entrevista ao Gerador, como os comentários de ódio rapidamente migraram do perfil da editora para o seu perfil pessoal. “Inclusive, houve uma senhora que teve uma demanda gigante em colocar o [link do] meu perfil em todos os comentários, para que as pessoas fossem ofender-me [diretamente]”, relata.

Não tardou até as palavras se converterem em atos e ser organizada uma “manifestação contra a ideologia de género”, para o dia do lançamento do livro. “Nunca nos passou pela cabeça que acontecesse o que aconteceu, até porque naquela altura eu não fazia a menor ideia quem era o Afonso Gonçalves”, recorda a escritora.

No dia da sessão de apresentação, na livraria Almedina, no Rato, em Lisboa, Lúcia percebeu de imediato que “cinco ou seis” pessoas do público estavam naquele jardim “para desestabilizar”. Sem fazer caso, falou do livro normalmente. Tudo se manteve calmo até à chegada de Afonso Gonçalves, youtuber e líder do movimento nacionalista branco Reconquista, que interrompeu a sessão. “Eu lembro-me que ele dizia várias coisas, como “vocês recebem dinheiro dos lobbies da pedofilia para fazer esse tipo de livros”, “estão a gastar o dinheiro do Estado, porque têm o apoio da CIG [Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género]”, etc.

Enquanto a maioria dos presentes estranhou aquela interrupção ruidosa, o grupo de cinco pessoas começou a levantar-se e a aplaudir. Algumas filmaram tudo. O youtuber de extrema-direita chegou a usar um megafone.

As autoridades foram chamadas. “Curiosamente, em vez de ser parada a conversa do Afonso, o que foi parado foram as pessoas da plateia, que estavam a ler o livro”, diz a autora.

Afonso Gonçalves foi várias vezes interpelado por um agente da PSP, que lhe disse que seria levado para a esquadra se não parasse de gritar. Estava prestes a ser identificado, quando acabou por sair do local sem sofrer qualquer consequência pela desestabilização que provocou.

 

 

“Lutámos pelo futuro das nossas crianças longe da perversidade liberal-marxista; lutámos pela defesa da identidade étnico-cultural Portuguesa; lutámos para acordar os Portugueses para a sua progressiva substituição”, escreveria depois nas redes sociais, numa publicação feita a 31 de dezembro de 2023 no Instagram, onde fazia uma espécie de balanço das iniciativas extremistas xenófobas e LBTQIfóbicas levadas a cabo nesse ano.

A ação de intimidação a Lúcia Vicente gerou controvérsia e foi notícia nos principais órgãos de comunicação nacionais, que mostraram vídeos amadores feitos nesse dia 24 de setembro de 2023. Augusto Santos Silva, que à data era Presidente da Assembleia da República, repudiou a atitude dos manifestantes classificando-a de “inaceitável”.

Lúcia Vicente, escritora, e Tiago M., ilustrador do livro No Meu Bairro, dizem que a situação foi uma tentativa de censura e acreditam que a presença da extrema-direita no parlamento encoraja este tipo de ações. “A verdade é que a extrema-direita existe em Portugal há muito tempo, desde sempre. E só quem estava distraído é que não tinha percebido”, diz a autora. “[O extremismo de direita] existia nesta escala, a diferença é que as pessoas tinham vergonha”, acrescenta.

Este acontecimento, em que a apresentação de um livro infantil de pendor inclusivo e com temáticas LGBTQI+ é interrompida por pessoas que se dizem “defensoras das crianças”, não foi único. Lúcia Vicente já passou pelo mesmo mais vezes e diz que isso a tem afetado psicologicamente. “Agora, de todas as vezes que eu tenho de ir a uma biblioteca ou uma escola, dois dias antes, já estou com ansiedade. E já estou a pensar no que é que eu faço, em soluções [caso a situação se repita]”, afirma.

Apesar disso, ambos os autores negam deixar-se condicionar por estas ações intimidatórias. “Obviamente, quando vamos para alguma apresentação, temos de ir mentalmente preparados para que aconteça alguma coisa”, diz Tiago M. que, não obstante, vê neste tipo de sobressalto uma “motivação pelo qual devemos continuar a estar publicamente presentes e ativos”.

Uma situação semelhante aconteceu em junho de 2024, desta feita numa livraria na cidade do Porto. A escritora Mariana Jones, autora do livro infantil O Pedro gosta do Afonso, apresentava a sua nova obra, O Avô Rui, sobre o comendador Rui Nabeiro, quando a sessão foi interrompida por membros do movimento de extrema-direita Habeas Corpus. “Deixe as crianças em paz”, gritou o ex-juiz Rui Fonseca e Castro, fundador do grupo e cabeça de lista do Ergue-te nas últimas eleições europeias.

Esta foi apenas uma das muitas ações de intimidação dirigidas à escritora, que se tornou um dos principais alvos do coletivo extremista. Os ataques tornaram-se cada vez mais pessoais e chegaram ao ponto em que Mariana Jones viu o seu nome incluído numa lista de “terroristas LGBTQIA +”, junto com o humorista Diogo Faro, a escritora Lúcia Vicente, a deputada do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua, entre outras personalidades.

Nas Entrevistas Centrais do Gerador, Mariana Jones falou sobre o impacto que estes ataques têm na sua vida: “É o meu nome, é a minha imagem que eles mostram. Tocam na minha esfera íntima familiar. Já puseram [nas redes sociais] imagens do meu marido, já tocaram [no assunto] das minhas filhas. [Tudo] para continuarem essa intimidação e esse clima de medo”, disse a escritora. Apesar disso, Mariana Jones rejeita sucumbir às tentativas de repressão e afirma que continuará o seu trabalho literário e de defesa dos direitos humanos.

Perante estes episódios, um grupo de meia centena de agentes da cultura, incluindo associações, editores e livreiros, escreveu às ministras da Administração Interna e da Justiça, Margarida Blasco e Rita Alarcão Júdice, respetivamente. Na carta Pela liberdade de escrever, de publicar, de ler, o grupo expressa a sua preocupação e indignação face a “ataques de elementos da Habeas Corpus e do partido de extrema-direita Ergue-te a escritoras de livros infanto-juvenis e a bibliotecários, à leitura tranquila numa biblioteca pública e a apresentações de livros e debates”. Pediram “medidas urgentes para impedir a continuação destes incidentes graves e para garantir a segurança e a liberdade de qualquer cidadã(o)”.

“O discurso de ódio, violento e discriminatório, proferido por estas organizações, é público e conhecido das autoridades. Muitos destes ataques e ameaças são feitos publicamente, gravados pelos próprios e depois orgulhosamente partilhados nas redes sociais”, lê-se na missiva, que extrapolou o coletivo inicial e foi assinada por centenas de pessoas de outras áreas.

 

Expressão do ódio está a normalizar-se

 

 

Os grupos de extrema-direita não são uma novidade em Portugal, mas a sua atuação tem vindo a intensificar-se. A conclusão está patente no último Relatório Anual de Segurança Interna, relativo a 2023, que foi apresentado ao parlamento no final de maio do presente ano. “Após um período de estagnação, as organizações tradicionais e os militantes dos setores neonazi e identitário retomaram a sua atividade, promovendo ações de rua e outras iniciativas com propósitos propagandísticos”, diz o documento realizado pelo Sistema de Segurança Interna. “Paralelamente, também foram criados projetos e organizações por jovens que estendem o alcance da mensagem extremista a uma nova geração com um perfil distinto”, lê-se.

“Este crescimento da extrema-direita, nomeadamente entre as gerações mais jovens, deveu-se, em grande parte, ao esforço desenvolvido na esfera virtual, tornando-a o seu principal veículo de disseminação de propaganda e motor de radicalização e contribuindo, assim, para a proliferação das narrativas extremistas, que atingem um público mais alargado e diversificado”, diz o relatório.

O campo da extrema-direita é destacado como sendo aquele onde se desenvolvem grandes ameaças, mas também é mencionado no documento o radicalismo de esquerda, nomeadamente no seio de movimentos anarquistas e ambientalistas.

Em maio deste ano, ações violentas contra imigrantes tiveram lugar na cidade do Porto. Na zona do Campo 24 de Agosto, dois imigrantes argelinos relataram ter sido agredidos por um grupo de quatro ou cinco atacantes, com tacos de basebol. A PSP foi alertada por volta das 23 horas. Cerca de dez minutos depois, na Rua do Bonfim, imigrantes foram atacados por um grupo de dez a quinze homens, alguns deles encapuzados, que entraram na habitação onde estes dormiam para os agredir. Dois tiveram de receber assistência hospitalar. Na mesma noite, mas já perto da 3h da manhã, na Rua Fernandes Tomás outro imigrante marroquino foi agredido. Dias mais tarde, viria a ser noticiado que um dos suspeitos das agressões, um jovem português de 27 anos, participou na marcha neonazi organizada pelo grupo de Mário Machado, no Porto, em abril. A Polícia estava a investigar as possíveis ligações dos agressores ao grupo 1143.

Dias após estes episódios violentos terem ocorrido, uma criança nepalesa foi alegadamente agredida em contexto escolar, na Amadora.

 

A eleição do deputado André Ventura, líder do partido Chega, em 2019, marca o fenómeno de normalização social das ideias nacionalistas, LGBTIfóbicas, xenófobas e racistas em Portugal. No livro O Fim da Vergonha – Como a Direita Radical se Normalizou (2024, Gradiva) o cientista político Vicente Valentim explica detalhadamente como esse processo aconteceu, dissecando-o em três etapas: fase de latência, de ativação e de revelação.

Em entrevista ao Gerador, o especialista afirmou que a normalização “é um processo ao nível do eleitorado”. “Havia pessoas que tinham essas ideias [de extrema-direita e direita radical], mas que não se expressavam em público, [pois] achavam que elas não eram consideradas aceitáveis”, diz o investigador no departamento de Ciência Política da Universidade de Oxford, Reino Unido, referindo-se à fase de latência.

Faltava um “empreendedor político” capaz de perceber que uma fatia da população apoia essas visões, mesmo sem as expressar. Em Portugal essa pessoa foi Ventura, que rapidamente ganhou destaque mediático com o discurso xenófobo contra pessoas da comunidade cigana. Esta foi a fase de ativação, segundo o autor.

“Uma das etapas mais essenciais no processo de normalização, é precisamente quando estes partidos entram para o Parlamento. Porque a partir daí tornam-se um ator político essencial no sistema partidário. E isto tem vários efeitos. Por um lado, as pessoas que já tinham nessas ideias apercebem-se que há muitas outras que têm as mesmas ideias, suficientes para que o partido entre no parlamento. Ao mesmo tempo, o simples facto de o partido estar lá e ter uma espécie de cunho de legitimidade, por ser parte de uma instituição representativa, também leva à percepção de que estas ideias são mais legítimas do que eram antes”, diz o especialista em entrevista ao Gerador, descrevendo a terceira e última fase: a de revelação.

“As expressões públicas de apoio à direita radical normalizam-se, o que resulta num aumento de comportamentos de direita radical também em público – tais como a participação em protestos, a exposição de ideias discriminatórias em discussões com amigos ou o uso de símbolos de direita radical”, conforme descreve no livro.

 

Marchar, marchar

 

 

No início da tarde de 3 de fevereiro, na Rua do Benformoso, em Lisboa, o ambiente não era muito diferente do habitual. Os vários restaurantes e lojas detidas por imigrantes indianos e paquistaneses trabalhavam de forma aparentemente normal.

Obter comentários dos comerciantes não foi fácil. Se uns desconheciam o facto de estar marcada uma marcha da extrema-direita para aquela tarde, outros preferiam não se pronunciar sobre o assunto. “Eu ouvi falar, mas não estou preocupado. Não devem vir para esta zona, mas, se vierem, fechamos a loja e vamos para casa. Não estamos preocupados”, disse ao Gerador o proprietário de uma mercearia, que preferiu não se identificar.

Mais a cima, no Largo do Intendente, começavam a concentrar-se cada vez mais pessoas. A marcha do grupo 1143, de Mário Machado, não iria passar por ali, já que não obteve autorização para tal. Assim, enquanto o grupo nacionalista se preparava para reunir no Largo Camões – a localização alternativa -, o Intendente enchia-se de ativistas antirracistas, que ali quiseram marcar presença para afirmar a sua solidariedade com os imigrantes.

“Vim aqui hoje porque há uma luta que é preciso ser feita pelos lados democráticos da população, que é combater a retórica racista, fascista, que é evidente na manifestação que foi convocada por uma entidade que eu próprio não sei o nome, mas que se diz combatente da ‘islamização da Europa’”, disse Rafael Quinteiro, jovem manifestante.

O protesto antifascista acabaria por ter muito mais adesão que a marcha neonazi. Enquanto a primeira mobilizou quase um milhar, a segunda juntou pouco mais de uma centena de pessoas.

Nessa tarde, no Largo de Camões, sentia-se um ambiente radicalmente diferente daquele que era vivido no Intendente. Havia tensão e ansiedade, embora o grupo não fosse muito numeroso. À medida que os jornalistas começaram a concentrar-se à volta do perímetro, agentes da polícia formaram um cordão para impedir curiosos de se aproximarem dos supremacistas brancos.

Junto aos Armazéns do Chiado, a tensão agudizou-se. Uma ativista antifascista empunhava um cartaz que dizia “circo”, com setas a apontar para o grupo. Foi fortemente insultada com palavrões e expressões misóginas.

O final da marcha, já na Praça do Município, ficou marcado pelo virar de costas do grupo ao edifício da autarquia, atitude simbólica de contestação ao voto de repúdio da manifestação, que foi aprovado em Assembleia Municipal com a abstenção do partido Chega, partido que, aliás, foi mencionado várias vezes por membros do 1143.

Durante todo o percurso o grupo extremista foi sempre acompanhado de um forte cordão policial, que se dispersou após o término da marcha. Antes de os neonazis chegarem à Praça do Município, a polícia agiu contra manifestantes antifascistas que ali se encontravam com violentas bastonadas. O objetivo era expulsá-los do local, de forma a evitar que os dois grupos entrassem em confronto. Entre os elementos agredidos estavam jornalistas que, apesar de se identificarem como tal, também levaram com os cassetetes.

Para Vicente Valentim, esta mobilização é um exemplo ilustrativo do processo de normalização. “Se fosse o PNR a organizar essa manifestação, há 10, 15 anos provavelmente teriam muito menos pessoas na rua”, analisa. “Há muito mais pessoas dispostas a dar a cara por essas ideias agora.”

Esta marcha, embora tenha levantado mais preocupação – devido à intenção inicial do grupo, em fazê-la na Rua do Benformoso, onde se concentra um grande número de imigrantes da Índia, Nepal e Bangladesh – foi apenas um exemplo das ações de mobilização dos supremacistas brancos em Portugal. A 5 de abril último, o grupo 1143 fez uma nova marcha xenófoba no Porto com o mote “Menos imigração, mais habitação”. A 10 de junho, data emblemática para a extrema-direita portuguesa por ter sido definido pelo Estado Novo como Dia de Camões, de Portugal e da Raça (hoje Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas), fizeram a habitual concentração junto ao Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, no que dizem ser uma “manifestação de patriotismo”. Nas duas ocasiões, realizaram-se contramanifestações antifascistas nos mesmos locais. Para dia 5 de outubro próximo, está a ser convocada uma nova marcha extremista, desta feita em Guimarães.

Há, no entanto, muitas outras ações públicas de extrema-direita organizadas por outros grupos e partidos políticos. O partido Ergue-te, por exemplo, já organizou concentrações à porta da sede do Bloco Esquerda, a última das quais acabou com um homem a ser agredido. A par disso, há as já mencionadas invasões de apresentações de livros infantis.

O Conselho da Europa promove há vários anos conferências, formações e relatórios sobre a temática do discurso de ódio. No relatório The hate factor in political speech – Where do responsibilities lie? assinado pela magistrada belga Françoise Tulkens, no âmbito de uma conferência sobre O Fator Ódio no Discurso Político, que decorreu em 2013 em Varsóvia, Polónia, está reconhecido o papel nefasto de políticos populistas de extrema-direita, nomeadamente no que concerne à normalização do discurso de ódio no espaço social. No documento é também, contudo, referido que o discurso de ódio não é exclusivo dos últimos, tendo-se alargado a partidos mainstream. O relatório faz várias recomendações para combater o fenómeno e alerta para a responsabilidade dos detentores de cargos de poder. “Os políticos e outras figuras públicas têm uma responsabilidade acrescida porque eles têm maiores possibilidades de espalhar preconceitos contra certos grupos”, lê-se. “Além disso, o impacto do discurso político também é maior, visto que os políticos estão numa posição de autoridade. Assim, o discurso de ódio tem impacto em potenciais agressores que se sentem encorajados na sua intolerância e preconceitos”, escreveu a ex-presidente do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

 

Do preconceito ao ódio, em cinco passos

 

“Não é coincidência que os números relativos a crimes de ódio estejam a aumentar em países onde a extrema-direita está em ascensão. Esta tendência é estimulada pela revolução digital e a deturpação que dela fizeram indivíduos sem rosto, a extrema-direita e agentes estatais”, diz Matthew Williams, no seu livro A Ciência do ódio – Como o Preconceito se Transforma em Ódio e o que Podemos Fazer para Travá-lo editado em 2022 pela Contraponto.

O professor de criminologia da Universidade de Cardiff, descrito como “um dos maiores especialistas do mundo em crimes de ódio, discurso de ódio, cibercrime e extremismo online”, faz uma análise aos crimes de ódio numa perspetiva social e biológica, mostrando como existem mecanismos no cérebro que nos tornam predispostos a preferir o “nosso” grupo, ao outro e que são potenciados pelo medo, por exemplo. “Numa época em que personalidades da política usam uma retórica decisiva contra os imigrantes “perigosos”, o nosso detector de ameaças dispara quando nos cruzamos com um forasteiro de capuz”, exemplifica.

“Os preconceitos alimentam-se de estereótipos, características atribuídas a uma pessoa ou a um grupo com base em categorias e generalizações grosseiras. Os preconceitos formam-se quando o nosso comportamento e as nossas ideias sobre os outros são moldados pelas nossas percepções em relação ao grupo que pertencem. Por essa razão , os preconceitos concentram-se naquilo a que os psicólogos chamam exogrupo (“eles”) e endogrupo (“nós”)”, de acordo com a mesma obra.

“Quando os preconceitos se centram no exogrupo, tendem a associar-se a estereótipos e sentimentos negativos.”

Em 1954, o psicólogo Gordon Allport, publicou uma teoria onde mostra como o preconceito pode escalar para atitudes violentas contra um grupo ou comunidade. No livro The Nature of Prejudice, que se tornaria uma referência na área, o autor descreve como o discurso de ódio pode ser o primeiro estágio de um processo que, em última instância, conduz ao extermínio, conforme esquematizado na tabela seguinte:

 

No princípio era o verbo

 

 

“Em 2019, o discurso contra a comunidade cigana já era muito mau. Hoje, o discurso cada vez mais se aproxima dessa narrativa anti-imigração e guerra cultural”, diz a investigadora Ana Rita Guerra, do CIS-Iscte (Centro de Investigação e Intervenção Social do Instituto Universitário de Lisboa). A especialista acredita que esse fator contribui diretamente para o aumento do discurso de ódio online e offline. Atualmente, a especialista coordena o projeto kNOwHATE – Knowing Online Hate Speech Project, que investiga o discurso de ódio online e desenvolveu o protótipo de uma ferramenta para o detectar.

No âmbito do projeto foram elaboradas definições concretas para distinguir o discurso de ódio direto do indireto: enquanto no primeiro caso o orador difunde, incita, promove ou justifica claramente o ódio, a exclusão e a violência contra um determinado grupo de pessoas, devido a características identitárias ou percepcionadas, no segundo caso esse objetivo é inferido. Ao contrário do discurso de ódio direto, o indireto não inclui termos depreciativos ou insultuosos e pode estar formulado como humor, ironia, retórica, metáfora, eufemismo, entre outros.

Em entrevista ao Gerador, a investigadora afirma que não existe uma única explicação para o preconceito que motiva o ódio, mas este vem de “múltiplos fatores”, que vão “desde questões de nível intra-individual, até questões intergrupais ou mais societais”.

 

Um dos fatores subjacentes a este fenómeno é o crescimento da direita populista e extrema-direita no contexto europeu e americano. “Não há uma relação de causa efeito, nós não conseguimos testar se uma coisa causa outra mas, claramente, há uma co-ocorrência dos dois fenómenos”, diz a investigadora.

“A partir do momento em que houve esta viragem à direita, esta maior adesão ao que se chama a direita populista no contexto europeu e também nos Estados Unidos [da América], vemos uma maior prevalência do discurso de ódio. Esses dados são reais e existem”, frisa.

Ana Rita Guerra diz ainda que, nos partidos de extrema-direita, são os próprios líderes políticos que veiculam o discurso de ódio, o que contribuiu para a normalização do mesmo. “Ele começa a ser legitimado do ponto de vista da esfera pública”.

É esta legitimação que, “de certa forma, autoriza pessoas comuns a cometerem discurso de ódio e também xenofobia e racismo”, diz, por sua vez, Ana Paula Costa, vice-presidente da Casa do Brasil de Lisboa, associação parceira do kNOwHATE.

“As pessoas muitas vezes se sentiam envergonhadas ou desautorizadas para poder demonstrar de forma tão aberta o preconceito que têm e fazer o discurso de ódio, a xenofobia e o racismo”, porém, quando “na esfera pública, na esfera política, há uma maior aderência desse discurso e se torna frequente, as pessoas comuns se sentem autorizadas”, sublinha a dirigente. “Não há nenhuma coincidência com o crescimento do Chega e com o crescimento desse discurso de ódio na esfera pública”.

O segundo elemento que potencia este fenómeno de normalização é, na opinião de Ana Paula Costa, a proliferação e penetração de movimentos extremistas que se “organizam” para disseminar discurso de ódio, nomeadamente no seio dos partidos. “Há muito esse recorte de tentar fazer uma guerra cultural, entre “nós” e “eles”, os que são mais próximos da nossa cultura, mais parecidos conosco, e “eles” que não têm a mesma religião, que não professam da mesma cultura…enfim. E o Chega foi fazendo isso, cada vez mais”, frisa.

O problema do discurso de ódio online foi reconhecido pela Agência para os Direitos Fundamentais (FRA, na sigla em inglês) da União Europeia, num relatório divulgado em novembro de 2023. Com base em conteúdos publicados nas redes sociais, entre janeiro e junho de 2022, esta entidade concluiu que é fundamental melhorar a moderação de publicações para fazer face ao problema.

“De 1.500 publicações avaliadas inicialmente por ferramentas de moderação, mais de metade (53%) foram consideradas ‘de ódio’ por programadores humanos”, alertou a agência, destacando a pouca eficácia das ferramentas automáticas.

“O grande volume de ódio que identificámos nas redes sociais mostra claramente que a União Europeia (UE), os seus Estados-membros, e as plataformas ‘online‘ têm de intensificar os seus esforços para criar um ambiente mais seguro no espaço ‘online‘, quer no que diz respeito aos direitos humanos, quer para a liberdade de expressão”, afirmou o diretor da FRA, Michael O’Flaherty, citado do documento.

Para isso, é preciso “mais transparência e orientação”, defendeu a agência europeia no relatório intitulado “Moderação de conteúdo ‘online’ e ódio ‘online’“, acrescentando que “a maior parte do ódio ‘online‘ tem como alvo as mulheres, mas também as pessoas de ascendência africana, ciganos e judeus”.

Entre as publicações e comentários analisados, a FRA concluiu que há vários tipos de discursos a combater. A misoginia é um dos principais problemas, sendo 47% das publicações analisadas de assédio direto às mulheres. A par disso, a agência da UE destacou a existência de estereótipos negativos, sobretudo em relação a pessoas de ascendência africana, ciganos e judeus.

O relatório reúne as conclusões da análise a quatro plataformas e redes sociais: Reddit, Telegram, X e YouTube, nos territórios da Alemanha, Itália, Bulgária e Suécia. A agência não conseguiu aceder aos dados do Facebook e do Instagram.

Para esta pesquisa foram analisadas quase 350 mil publicações e comentários com base em palavras-chave específicas. Codificadores humanos avaliaram cerca de 400 mensagens aleatórias de cada país para determinar se estas podiam ser classificadas como discurso de ódio.

No livro O Fim da Vergonha, o cientista político Vicente Valentim defende que “é improvável que seja possível reverter o processo de normalização” da expressão de ideias intolerantes e radicais. “Para que tal acontecesse, tanto o eleitorado como a classe política teriam de voltar à situação em que subestimavam a quantidade de pessoas que, em privado, tinham uma ideologia próxima da direita radical. Como consequência do processo de normalização, esta informação passou a estar mais visível, pelo que me parece impossível que a sociedade volte, no curto prazo, a um estado semelhante ao da fase de latência”.

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