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Texto de Flávia Brito e Sofia Craveiro
Edição de Débora Dias e Tiago Sigorelho
Ilustrações de Pri Ballarin
Produção de Sara Fortes da Cunha
Comunicação de Carolina Esteves e Margarida Marques
Digital de Eunice Gordon e Inês Roque

08.04.2024

A falta de rendimentos continua a ser o barómetro mais utilizado para medir a pobreza. Mas o problema vai muito além da questão monetária. A incapacidade de realização pessoal ou a sensação de aprisionamento são sentimentos comuns de quem vive também privação material ou social. A montante, o divórcio, o desemprego ou as desigualdades de distribuição de rendimento contribuem para que mais de dois milhões de portugueses se encontrem em risco de pobreza ou exclusão social. Mas, se os números traduzem realidades, para entender o que dizem, é necessário também perceber as suas limitações.

Esta reportagem inicia a investigação Pobreza em Portugal: entre números crescentes e realidades encobertas, que vai ser publicada no Gerador ao longo dos próximos meses.

A falta de emprego atirou Fernando Pereira para a rua há cerca de cinco anos. Cátia Góis perdeu o marido e, com ele, a estabilidade económica de toda a família. Já Hélia Maria Camará sobrevive com a ajuda dos filhos, uma vez que um problema de saúde a impede de continuar a trabalhar. Estas são diferentes faces de uma mesma situação: a pobreza.

Para a definir é necessário ter em linha de conta uma diversidade de fatores. Habitualmente, a pobreza é associada a uma situação de privação ou de carência de bens materiais. Contudo, não há uma definição de pobreza que seja universalmente aceite, pois existem diferentes abordagens e linhas de investigação. É o que sublinha o estudo de Hugo Pinto e José André Guerreiro, Da Revolução de Abril aos tempos da austeridade em Portugal: Um retrato da pobreza, exclusão social e desigualdades, publicado na revista Praxis Sociológica.

O conceito de pobreza foi evoluindo e desdobrou-se em diferentes dimensões, que tentam enquadrar aspetos distintos. A nível teórico, surgiram dicotomias que traduzem uma multiplicidade de significados e cenários, conforme descrito no artigo A pobreza e a exclusão social: teorias conceitos e políticas sociais em Portugal, publicado pela revista Sociologia da Universidade do Porto. Há a pobreza objetiva e a subjetiva, a pobreza tradicional e a nova pobreza, a pobreza rural e a urbana, a pobreza temporária e a duradoura.

“As pessoas encontram-se em situação de pobreza se o seu rendimento e os seus recursos forem tão inadequados que as impedem de ter o padrão de vida considerado aceite na sociedade em que vivem.”

Eurostat

Outra destas dicotomias prende-se com a pobreza absoluta versus pobreza relativa. Enquanto a primeira se baseia na noção de necessidades básicas, estando em causa elementos ligados aos recursos (rendimentos, bens de capital, benefícios em espécie associados ao trabalho, por exemplo), a segunda remete para uma análise da pobreza em relação aos padrões sociais, ou seja, a pessoa necessita de fazer um grande esforço financeiro para conseguir ter uma vida normal e participar nas atividades sociais, económicas e culturais que são habituais no país ou região. A relação entre os dois conceitos é de «complementaridade e não de antagonismo», segundo a mesma fonte.

O enquadramento académico do tema é, como se vê, complexo e abrangente.

 

POBREZA É MAIS DO QUE A FALTA DE RENDIMENTOS

Para as organizações internacionais de referência, o rendimento insuficiente é o critério mais comum, mesmo que mantenham perspetivas díspares.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) liga o fenómeno da pobreza a questões de desigualdade na distribuição de recursos, facto que atribui a fenómenos como a globalização, o avanço tecnológico e mudanças nas políticas de redistribuição. A definição usada é de cariz económico, já que os indicadores considerados são a desigualdade no rendimento anual dos agregados. A taxa de pobreza é medida através do rácio de número de pessoas num determinado grupo etário cujo rendimento fica abaixo do limiar de pobreza, definido como metade do rendimento mediano do agregado familiar da população total.

Já o Eurostat, entidade responsável pelas estatísticas da União Europeia, especifica que «as pessoas encontram-se em situação de pobreza se o seu rendimento e os seus recursos forem tão inadequados que as impedem de ter o padrão de vida considerado aceite na sociedade em que vivem». Por causa da sua situação de pobreza, uma pessoa pode sofrer de múltiplas desvantagens através do desemprego, rendimento baixo, habitação pobre, cuidados de saúde inadequados e barreiras à aprendizagem ao longo da vida, dificuldades de acesso à cultura, desporto e lazer. Essas pessoas são, muitas vezes, excluídas e marginalizadas da participação em atividades (económicas, sociais e culturais) que são a norma para outras pessoas e o seu acesso a direitos fundamentais pode ser limitado.

Apesar de a definição ser abrangente, para efeitos estatísticos é utilizado um conceito que assenta na questão de escassez monetária (ver ponto «Ser pobre na Suécia, não é o mesmo do que ser pobre em Portugal»).

Para as Nações Unidas (ONU), a pobreza não se limita à falta de recursos e de rendimento. Manifesta-se «através da fome e da malnutrição, do acesso limitado à educação e a outros serviços básicos, à discriminação e à exclusão social, bem como à falta de participação na tomada de decisões », é referido.

Apesar disso, os números da ONU associados à pobreza referem-se, sobretudo, a cenários de privação material. Vejamos: segundo a ONU, mais de 780 milhões de pessoas vivem abaixo do Limiar Internacional da Pobreza, ou seja, com menos de 1,90 dólares por dia; em 2016, perto de 10 % dos trabalhadores e suas famílias viviam com menos desse valor.

Apesar da complexidade do fenómeno, é notório que a utilização de indicadores económicos para avaliar se há ou não uma situação de pobreza é a prática comum. Os especialistas explicam que este é o aspeto mais facilmente mensurável e que permite comparar cenários, daí que se tenha generalizado.

É o que explica José António Vieira da Silva, ex-ministro socialista do Trabalho e Segurança Social, em entrevista ao Gerador: «O debate sobre a pobreza é muito marcado pela tentativa que temos já há muitos anos, mais de um século pelo menos, de construir indicadores que permitam avaliar duas coisas: comparar a situação dos países ou das regiões e comparar a evolução no tempo.»

Apesar de tudo, a pobreza não se cinge a uma situação de carência material, mas vai além disso, conforme explica Joaquina Madeira, vice-presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza (EAPN) Portugal. A responsável analisa que, apesar de a pobreza ter como fundamento a falta de bens materiais, nomeadamente de rendimento suficiente para satisfazer as necessidades e aceder a serviços, também tem que ver com incapacidade de realização pessoal. «Esta limitação, esta incapacidade das pessoas se realizarem é uma prisão para o desenvolvimento e é uma injustiça social.»

O que está em causa, conforme explica, é a incapacidade de a pessoa se libertar da situação de privação e do impacto individual que isso vai ter. «A pessoa fica manietada. Não vê saída, [o que] pode ser um problema. É morrer aos bocadinhos. O stress quotidiano da sobrevivência retira possibilidades e capacidades às pessoas. Porque é um stress de subsistência.»

 

“O stress quotidiano da sobrevivência retira possibilidades e capacidades às pessoas. Porque é um stress de subsistência.”

Joaquina Madeira,
vice-presidente da EAPN Portugal

 

A CULPABILIZAÇÃO AINDA IMPEDE OS PEDIDOS DE AJUDA

Um dos problemas inerentes à situação de pobreza é o estigma que lhe está associado. O contexto de privação material pode ser percecionado como sendo culpa da própria pessoa. Nos testemunhos recolhidos pelo Gerador, é comum o relato de relutância em pedir ajuda, com receio de «ser olhado de lado». Quem precisa de apoio, recusa pedi-lo a familiares, para que estes não tenham conhecimento das dificuldades. «Os pobres não são responsáveis pela pobreza», refere Joaquina Madeira, vice-presidente da EAPN Portugal. «Há um contexto sociopolítico e económico que favorece a emergência de pessoas em situação pobreza.»

“Não podemos responsabilizar as pessoas porque são pobres, porque nasceram em contextos pobres, porque não tiveram acessos oportunos àquilo que podia transformar a sua vida, porque são doentes…enfim.”

Joaquina Madeira,
vice-presidente da EAPN Portugal

«Não podemos responsabilizar as pessoas porque são pobres, porque nasceram em contextos pobres, porque não tiveram acessos oportunos àquilo que podia transformar a sua vida, porque são doentes… enfim», acrescenta a responsável.

Apesar disso, a autorrecriminação pode ser um obstáculo que, em última instância, impede os pedidos de apoio social. No livro A Pobreza em Portugal – Trajetos e Quotidianos, coordenado por Fernando Diogo e editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos em 2021, lê-se que o acesso aos direitos sociais «pode também, nalguns casos, ser condicionado pela condição social, na qual emerge o estigma do assistido». A vergonha sentida pelos
indivíduos condiciona a sua ação, «sobretudo quando confundem a justa reivindicação de direitos com o favor prestado por uma qualquer forma de assistencialismo».

O Rendimento Social de Inserção, atribuído a pessoas em situação de pobreza extrema sob apertadas condicionantes ao nível dos rendimentos, é o exemplo paradigmático desta questão.

Quando era beneficiária, Cidália Barriga diz ter valorizado a ajuda, mas sentia-se demasiado constrangida pelas restrições que esta impunha. «Eu sentia-me muito castrada com o RSI [Rendimento Social de Inserção], com as regras do RSI», diz, em entrevista ao Gerador. «Imagine: eu recebia 370 euros de RSI e, se eu conseguia ir passar a ferro, ou conseguia ir fazer umas limpezas, ou meu marido conseguia arranjar uma coisa qualquer e fazíamos algum valor que complementasse aquele, para conseguirmos suprir as despesas, nós tínhamos de informar a técnica [da Segurança Social] do valor que conseguimos fazer. E esse valor era-nos retirado no mês seguinte.»

Cidália diz ter-se sentido «presa» pelas condições que o apoio impunha, como, por exemplo, a frequência de formações que nem sempre tinham utilidade. «Algumas até são práticas e são coisas válidas, outras nem por isso, mas que nos deixam irritados, em constante modo de frustração. Porque nós queremos sair dali. Precisamos daquilo, mas, ao mesmo tempo, sentimo-nos castrados», explica.

«Há aquela ideia de que, se estás na pobreza ou estás a precisar disto, é porque não tiveste estabilidade para fazer melhor. [É como se dissessem:] “a partir de agora tu não mandas na tua vida. Tu não sabes nada da tua vida, quem manda somos nós, e nós é que sabemos decidir o que é melhor para ti e para a tua vida.” É impensável que isso possa dar bons resultados.»

Neste sentido, Cidália Barriga – que conseguiu sair da situação de pobreza e é hoje voluntária na EAPN – afirma não perceber por que motivo muitas pessoas são acusadas de oportunismo e de «viver à conta dos subsídios». «Tudo o que eu pensávamos na altura, eu e o meu marido, era libertarmo-nos do RSI, fosse de que maneira fosse, para podermos tomar novamente as rédeas da nossa vida.»

“Há aquela ideia de que, se estás na pobreza ou estás a precisar disto, é porque não tiveste estabilidade para fazer melhor.”

Cidália Barriga

Joaquina Madeira acredita que «a sociedade em geral não se mobiliza pelo fenómeno da pobreza», normalizando a sua existência estrutural. Este facto tem, para a responsável da EAPN, uma explicação que se prende com a cultura assistencialista, ligada à tradição judaico-cristã. «Também tem que ver com a religião católica, porque a caridade também nos salva a alma.» Quer isto dizer que, ao invés de a sociedade trabalhar para mitigar a pobreza de uma forma estrutural, promove atos de caridade isolados que não resolvem o problema, mas confortam os egos de quem dá alguma coisa. «Portanto, não é só uma questão de posicionamento pessoal, tem aqui por trás uma ideologia, tem por trás uma religião.» Apoiamos o «próximo», a pessoa que se apresenta como mais fragilizada, mas «somos incapazes de conceber a pobreza como o fenómeno que está por trás daquela pessoa pobre», explica a vice-presidente da EAPN Portugal.

 

Os olhos de Paula brilham ao afirmar que os seus filhos são «muito especiais». Ficam contentes com um pequeno mimo, uma guloseima e não fazem exigências de nada que esteja fora das possibilidades. «Se eu disser que não dá, não dá», diz a jovem de 27 anos.

Paula vive sozinha com os quatro filhos, um deles asmático. Deixou de conseguir trabalhar por se ver obrigada a faltar consecutivamente, para apoiar a criança. «É assim… eu não posso dizer que ele é doente [no sentido de ter uma doença incapacitante], mas ele tem asma. E, nesta altura, ele sofre muito. Eu passo mais tempo com ele em casa do que a fazer qualquer trabalho. Então, nunca consigo aguentar muito tempo num trabalho, porque chega o inverno e o miúdo passa a vida no hospital», lamenta a jovem mãe que se orgulha de ter conquistado a sua independência financeira desde cedo, tendo trabalhado desde os 16 anos como cozinheira.

Paula tem conseguido subsistir com o apoio do Rendimento Social de Inserção, que é complementado com abonos que recebe por cada um dos quatro filhos, que sustenta sozinha. Já o pai, «quando pode ajuda, quando não pode… também não lhe cobro. Tem família…» Mensalmente diz receber 100 € por criança, o que permite pagar a renda, a água e a luz. «Depois sobra um bocadinho para o comer.»

Na ida ao supermercado, tenta escolher o que fica mais em conta. «Carnes e peixes… eu sou sincera, não consigo mesmo. Não consigo. Tenho a base de ovo, a lata de salsicha, a lata de atum… frango, ainda consigo trazer, mas depois, se for comprar carnes vermelhas, não dá. Não dá mesmo, está complicado. Mas ninguém está a passar fome. Não estou com cara de passar fome, pois não?», ironiza entre risos.

Comprar outros bens fica um pouco mais difícil: detergentes, produtos de higiene e material escolar estão entre as coisas que Paula consegue obter com a ajuda da Associação de Solidariedade Social do Alto da Cova da Moura (ASSACM).

Neste momento, Paula frequenta uma formação do Instituto do Emprego e Formação Profissional
(IEFP) para ser ama. A perspetiva é poder aliar uma atividade profissional às condicionantes pessoais. Desta forma, poderia tomar conta de crianças em casa e ganhar dinheiro, ao mesmo tempo que está disponível para o filho. Para poder concretizar este objetivo, vê-se, no entanto, obrigada a abdicar do próprio quarto. «Vou ter de arranjar um divã para todos os dias me poder deitar.» Após o espaço ser analisado, estas condições foram aprovadas, segundo Paula.

«Estando a trabalhar, eu sei que as coisas acontecem. Porque a pessoa, a partir do momento, em que recebe o dinheiro, sabe que aquele dinheiro vem, que não tem de estar a contar com o [apoio]», que muitas vezes atrasa ou falha. Daí que afirme que é muito difícil viver apenas a contar com a ajuda da Segurança Social. «As pessoas acham que a gente gosta de estar nessa situação, mas não. Eu duvido que haja alguém que goste de viver assim. Eu digo, eu não consigo.»

 

SER POBRE NA SUÉCIA, NÃO É O MESMO DO QUE SER POBRE EM PORTUGAL

Apesar de ser ainda relevante no mundo, no caso português, «não faz muito sentido falar» em pobreza absoluta, ou seja, em pessoas que não têm rendimentos suficientes para conseguirem satisfazer as necessidades básicas, refere Fernando Diogo, professor da Universidade dos Açores e investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais. No país existe, sobretudo, a chamada pobreza relativa.

Uma pergunta se impõe: quem são, e quantas são as pessoas em situação de pobreza? A criação de indicadores e a obtenção de dados estatísticos são determinantes para suportar objetivamente a definição de políticas públicas de combate a este problema. Mais do que números, as estatísticas são um exercício de interpretação. É por isso necessário perceber como são calculadas e com base em que pressupostos, para que possamos efetivamente entender o que nos dizem sobre a realidade no país.

Em Portugal, é usada a matriz europeia. Do ponto de vista estatístico, há dois indicadores que nos permitem ter uma primeira noção sobre a dimensão e as caraterísticas da pobreza em território nacional: a taxa de risco de pobreza, que atualmente abrange 17 % da população, e a proporção de população em risco de pobreza e exclusão social, que inclui mais de 2 milhões de portugueses, de acordo com o último Inquérito às Condições de Vida e Rendimentos do Instituto Nacional de Estatística (INE), publicado no ano passado.

Entendamos os pressupostos estatísticos. A taxa de risco de pobreza estabelece a proporção da população cujo rendimento equivalente se encontra abaixo da linha de pobreza, definida, pelo Eurostat, como 60 % do rendimento mediano por adulto equivalente de cada país.

Portanto, são considerados pobres todos os membros dos agregados familiares nos quais o tal rendimento disponível equivalente seja inferior a esta medida – e que, em 2022, segundo INE, englobava os habitantes com rendimentos monetários líquidos inferiores a 7095 euros anuais, ou seja, cerca de 591 euros por mês.

Este limiar da pobreza, como é normalmente referido, é um valor convencionado pela Comissão Europeia – para Vieira da Silva, estruturado em torno do «conceito de desigualdade» – e que se restringe a uma dimensão monetária. Como explica o ex-ministro, «define-se uma linha no próprio país, uma linha de rendimentos, e quem está, no caso do Eurostat, abaixo dessa linha, em termos de rendimentos, está na pobreza monetária.»

Mas, no fundo, que realidade permite traduzir este cálculo? Segundo Fernando Diogo, esta é uma «primeira ideia de que a pobreza são aquelas pessoas que não têm o rendimento suficiente para ter um estilo de vida digno na sua sociedade, um estilo de vida que os aproxime daquilo que são os mínimos de consumo.»

Fonte: Eurostat (2023). Dados relativos a 2022.
*O Eurostat utiliza o ano de recolha (neste caso, 2022) como referência temporal dos dados que publica, ao contrário do INE, que considera o ano de referência dos rendimentos. Por este motivo, os dados mais recentes do INE referem uma taxa de pobreza em Portugal de 17 % e um limiar de pobreza de 591 euros mensais.

Fonte: Eurostat (2023). Dados relativos a 2022.
*O Eurostat utiliza o ano de recolha (neste caso, 2022) como referência temporal dos dados que publica, ao contrário do INE, que considera o ano de referência dos rendimentos. Por este motivo, os dados mais recentes do INE referem uma taxa de pobreza em Portugal de 17 % e um limiar de pobreza de 591 euros mensais.

Estes 60 % do rendimento mediano significam, em primeiro lugar, que «o que está por baixo da taxa de pobreza é o rendimento nacional, portanto, [o limiar da pobreza] varia de um país para o outro», explica o investigador. Por outras palavras, com os mesmos rendimentos, uma pessoa pode, ou não, ser considerada pobre em diferentes países que usam a mesma referência para medir este fenómeno. «Portugal tem uma taxa de pobreza relativamente semelhante à da Suécia, mas uma pessoa é pobre na Suécia com rendimentos que, em Portugal, a tirariam da pobreza», exemplifica, Fernando Diogo, para quem a relatividade dos 60 % em relação ao rendimento nacional, «é um valor um pouco arbitrário» e até «contestável».

Para a aplicação deste indicador, o Eurostat e, consequentemente, Portugal e os restantes Estados-Membros da UE, utilizam a escala modificada da OCDE (ver gráfico anterior), «que atribui no seio do agregado familiar um peso a cada uma das pessoas», diz o especialista em sociologia do desenvolvimento.

A utilização desta escala pretende ter em conta as diferenças na dimensão e composição dos agregados. «Uma família que são dois adultos e dois menores de 14 anos, isto vale qualquer coisa como 2,1 adultos equivalentes (1 do primeiro adulto + 0,5 do segundo adulto + 0,3 por cada criança). Depois é dividido o rendimento da família por essas “pessoas” e vê-se se [o valor] está, ou não, abaixo daqueles 60 % da mediana», sintetiza Fernando Diogo, que considera, no entanto, que esta medida é também «contestável», por ter na base «a ideia de que a distribuição do rendimento da família se faz de forma mais ou menos equilibrada, o que não é verdade». O critério, esclarece, tende a subestimar a pobreza das mulheres e das crianças. «Normalmente, a distribuição do rendimento no seio da família tende a beneficiar sobretudo os adultos e, dentro dos adultos, os homens.»

Estatisticamente, todas as pessoas de um mesmo agregado familiar são, ou não, consideradas pobres. «Podemos discutir do ponto de vista teórico se isto faz sentido ou não», comenta a economista Susana Peralta, uma vez que pode haver situações de privação dentro do próprio agregado, como em casos de violência doméstica, mas não só. «Se houver um desequilíbrio de poder entre os dois membros adultos do agregado e o outro, ou entre os membros adultos do agregado e, por exemplo, os menores dependentes, podemos imaginar situações de privação assimétricas», argumenta a economista. «O problema é que não temos dados [que clarifiquem estas situações].»

Fernando Diogo ressalva ainda que a taxa de risco de pobreza não incorpora determinados fatores que impactam a realidade monetária das famílias. «Há aqui uma realidade que também é dinâmica. Esta taxa não incorpora questões que tenham que ver, por exemplo, com o que aconteceu na crise de 2008–2014, em que o rendimento nacional desceu e, com ele, o limiar da pobreza, o que significa que pessoas que num ano estavam em situação de pobreza, no ano a seguir já não estavam – porque o rendimento nacional decresceu, não porque o seu rendimento aumentou.» Para controlar esse efeito, o Eurostat, juntamente com o INE, implementou um indicador específico – a taxa de pobreza ancorada. Atualmente, enfrenta-se um outro desafio, a inflação, cujo impacto também não é medido pelos atuais indicadores.

 

TRABALHO E PRIVAÇÃO MATERIAL E SOCIAL TAMBÉM DEFINEM A POBREZA

A taxa de risco de pobreza deixa de fora todo um conjunto de componentes que podem potenciar o risco de exclusão social de uma família, e que não se traduz diretamente em rendimentos. Nesse sentido, o Eurostat tem procurado aperfeiçoar as formas de medir a pobreza.

No âmbito da estratégia económica de crescimento da UE para a próxima década, designada estratégia Europa 2030, a comunidade definiu um novo indicador, nomeadamente, a população em risco de pobreza ou exclusão social. Este dado estatístico conjuga as condições de risco de pobreza, de privação material e social severa e de intensidade laboral per capita muito reduzida.

Fonte: Eurostat (2023). Dados relativos a 2022.

Fonte: Eurostat (2023). Dados relativos a 2022.

 

O QUE DIZEM OS NÚMEROS?

De acordo com o mais recente Inquérito às Condições de Vida e Rendimentos, do INE, divulgado em novembro do ano passado, mais de 1,7 milhões de portugueses viviam com menos de 591 euros mensais, após as transferências sociais. Encontravam-se, em risco de pobreza ou exclusão social, 20,1 % da população.

PRIVAÇÃO MATERIAL E SOCIAL

Fonte: INE: Inquérito às Condições de Vida e Rendimento 2022–2023

 

AS ESTATÍSTICAS TÊM LIMITAÇÕES

Questionado sobre se as estatísticas refletem aquele que é o cenário da pobreza em Portugal, Fernando Diogo esclarece que «todas as estatísticas são construções sociais» e, portanto, os números que apresentam são limitados por esse processo. «É sempre uma relação custo-benefício», considera. Se, por um lado, o Eurostat tem procurado aprimorar as medidas e indicadores da pobreza, por outro, estes têm sempre de ser operacionalizáveis. «Não vale a pena ter definições muito aprofundadas, muito genéricas, teoricamente muito sólidas e que depois não se conseguem aplicar na prática. Isto pode parecer uma questão menor, mas não é. É uma questão central das definições da pobreza.»

Sobre a fiabilidade dos números, Susana Peralta assegura a «qualidade» dos inquéritos do INE, que utiliza «uma amostra representativa da população», além de os processos de recolha terem bastante rigor. «Não quer dizer que não haja coisas que escapam.» Desde logo, a questão dos sem-abrigo. «Essas pessoas não têm residência, escapam à representatividade baseada em censos, que é baseada em alojamentos domésticos privados», diz.

A economista identifica também um outro problema: o facto de o inquérito estar desenhado para ser representativo ao nível da NUTS II (Nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos), que divide o território nacional em sete grandes regiões. «Não conseguimos, por exemplo, caracterizar situações de grande pobreza e fragilidade económica que sabemos que existem em microgeografias, por exemplo, nas áreas metropolitanas», afirma. «O inquérito não é desenhado para isso, não está dimensionado para tal.»

Para Susana Peralta, o importante é que se conheçam as limitações dos dados estatísticos, «para poder perceber o que medem e o que não medem.»

Para além disso, os números têm sempre um atraso, às vezes de vários anos, relativamente à realidade do momento.

 

Fernando Pereira esteve mais de três meses sem falar com os filhos. Após tudo o que possuía lhe ser retirado durante a noite, ficou impossibilitado de o fazer. «Falei com eles até setembro [do ano passado], até me roubarem tudo. Além dos documentos, da roupa, roubaram-me o telemóvel.»

O infortúnio aconteceu no centro de Lisboa, no átrio do prédio onde Fernando tem por hábito pernoitar. «Tem de estar sempre tudo escondido. O meu erro, na altura, foi não ter feito isso. Tinha um trólei à vista e tinha um saco desportivo. Então, houve alguém que passou durante o dia e observou. Enquanto eu procurava trabalho, observou os meus “andamentos” e, durante a noite, aproveitou para me retirar as coisas.»

Há cerca de cinco anos que vive na rua, mas os filhos não fazem ideia. «Não me vejo capaz de dizer que estou nessa situação. Todos eles já são maiores, os seis, mas não me vejo capaz de… não queria que eles vissem que o pai está nesta situação. Não quer dizer que, no futuro, quando eu esteja melhor [sic], não possa contar a minha história, mas só depois de estar minimamente reabilitado, já com trabalho, já com sítio para ficar.»

Apesar de não querer preocupar os seis descendentes, que atualmente vivem em Inglaterra, Fernando não tem qualquer prurido em divulgar a sua identidade. Não se embaraça por ser sem-abrigo, mas admite que nem sempre pensou assim. «Eu, no início, também tinha vergonha, mas não há que ter vergonha. Se estamos na situação em que estamos, temos de pedir ajuda. E eu, no início, passei quase um ano inteiro para pedir ajuda.»

O apoio chegaria na forma de uma refeição ligeira, entregue na ronda da noite pela Comunidade Vida e Paz, a mesma associação que agora está a ajudar Fernando a recuperar os documentos e o contacto com os filhos. «Uma noite, era uma e meia da manhã, [e perguntaram]: “Olhe, você quer comer?” Eu, com a fome que estava, [respondi] “claro que sim”. Ofereceram-me um lanchinho. Eu fiquei assim, surpreso, [sem saber] de onde isto veio, mas pronto, OK. [Pensei] “Depois tenho de fazer uma pergunta, saber como é que isto funciona”.»

Foi após perder o emprego que viu a sua vida complicar-se. O contrato de trabalho temporário para reposição numa grande superfície terminou sem renovação. «Não foi essa a expectativa que a empresa concedeu», lamenta. «Fiquei só a receber o subsídio de desemprego. Eu, como pagava na altura, num quarto, 350 euros, e recebia só 500 euros de subsídio de desemprego, foi-me completamente impossível manter aquela vida. Cheguei a um certo ponto em que comecei a atrasar as rendas. Entretanto, o senhorio pôs-me na rua. Fiquei lá na altura, como sem-abrigo, em Alhandra.»

Acabaria depois por perder o subsídio. «Como estava sem abrigo, as cartas do centro de emprego iam para a minha antiga morada, para convocatórias. Eu nunca as recebi. Portanto, ao fim das duas chamadas que me fizeram, cortaram-me o subsídio de desemprego.» Ficou sem nada, mas afirma que entende o procedimento.

Desanimado com a falta de trabalho, decidiu ir com o pouco que tinha para Lisboa. «Na altura, eu ainda arranjei um biscate ali, no Cais das Colunas, no Terreiro do Paço. Ao lado, tem a praiazinha e tem lá construções de areia. Eu fazia a manutenção das construções de areia durante a noite. Estive lá cerca de três meses, sempre como sem-abrigo. Entretanto, a pessoa já não precisou mais de mim e dispensou-me. Ainda recebi um salariozinho, diariozinho para me manter. Ao fim desse tempo, fiquei mesmo sem trabalho.»

A procura de emprego tem sido constante, mas infrutífera. «Quando consegui entrevistas, chegava lá e a resposta era sempre a mesma: “estamos à espera de uma pessoa mais jovem. O senhor já tem 50 anos”. Enquanto tive documentos, fui procurando. Quando perdi os meus documentos, a minha solução… não havia. Sem documentos, eu não posso procurar trabalho.»

Na semana antes do Natal, quando conversou com o Gerador, Fernando Pereira já estava a começar a resolver este problema. Tinha conseguido pedir a renovação do cartão de cidadão, tinha-se voltado a inscrever no Centro de Emprego e feito o pedido para ser beneficiário do RSI. «O meu próximo objetivo é conseguir o meu trabalho», afirmou. «Assim que tentar receber o meu primeiro salário, [quero] conseguir pelo menos um quarto, uma casa. É o meu objetivo, para que quando os meus filhos vierem cá no próximo ano – que eles devem vir
entre julho e agosto -, já tenham um sítio que eu possa dizer: “Olha, este é o meu canto.” E depois poder contar-lhes o que eu passei.»

*Este inquérito não apresenta dados para as regiões autónomas da Madeira e Açores
Fonte: Estratégia Nacional para a integração de Pessoas em situação de sem-abrigo (2017–2023): Inquérito de Caracterização das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo para 2022

 

FATORES DE ORDEM SOCIOECONÓMICA E POLÍTICA SÃO DECISIVOS PARA A POBREZA

Os números da pobreza traduzem-se em dois ou três algarismos e sinais matemáticos, mas a vida desses cidadãos não se pode resumir a isso. O estudo A Pobreza em Portugal: Trajetos e Quotidianos, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, em 2021, e coordenado por Fernando Diogo, procurou perceber quem são e como vivem as pessoas em situação de pobreza.

Segundo o coordenador, é possível classificar os fatores que contribuem para isso em dois grandes tipos: os de ordem individual, que incluem o divórcio, a doença e o desemprego; e os de ordem estrutural ou macro, que integram a qualidade dos empregos nos principais setores de atividade, os apoios do Estado, os ciclos económicos e as desigualdades de na distribuição de rendimentos.

“A pobreza em Portugal é, sobretudo, uma pobreza tradicional, que se vai reproduzindo no tempo, na vida do indivíduo e entre gerações, e que também passa por momentos em que os indivíduos saem da situação de pobreza e voltam a entrar”

Fernando Diogo

De acordo com Fernando Diogo, os fatores macro, ou de ordem socioeconómica e política, são «muito mais importantes» para se perceber o problema. «A pobreza acaba por se fazer carne e osso nas pessoas pobres», comenta. «Tendemos a esquecer os fatores macrossociais, mas eles são mais importantes para perceber a pobreza concreta dos indivíduos do que propriamente qualquer ação que as pessoas façam.»

A propósito do impacto das conjunturas, o professor da Universidade dos Açores deixa ainda o alerta para a ideia de nova pobreza, ou seja, pessoas que nunca foram pobres e passaram a ser. Para ele, o conceito não se adequa à realidade do país. «A pobreza em Portugal é, sobretudo, uma pobreza tradicional, que se vai reproduzindo no tempo, na vida do indivíduo e entre gerações, e que também passa por momentos em que os indivíduos saem da situação de pobreza e voltam a entrar» – seja por motivos de ordem individual, seja estrutural. Nesse sentido, reforça que não há muitas pessoas naquela situação: «Não faz muito sentido falar nisso. Cada vez que há uma crise, fala-se de nova pobreza, mas são os vulneráveis que regressam à situação de pobreza. E são vulneráveis porque estão ali próximos do limiar.»

FATORES DE ORDEM INDIVIDUAL



DE ORDEM ESTRUTURAL OU MACRO




 

Na casa de Cátia Góis, há panos no chão e várias caixas de plástico. A frequência com que a água escorre pelas paredes obrigou-a a arranjar soluções para minimizar os estragos. As infiltrações na sua residência na Azinhaga da Torrinha, no Lumiar, em Lisboa, já causaram prejuízos incalculáveis. A roupa dos filhos que tem a seu cargo fica estragada, os móveis apodrecem e os electrodomésticos não resistem ao ambiente húmido e frio. «A gente faz o jantar e, se estiver a chover muito, chove por cima do fogão», relata.

Por mais queixas que faça, o senhorio recusa-se a fazer os arranjos necessários, e nem sequer dá a cara. Habitualmente é o advogado que a informa que não é possível fazer nada. «A roupa da minha filha estava sempre cheia de caruncho. Por mais que eu lavasse a casa com lixívia… Uma vez ia morrendo aqui dentro [por causa disso]. Até foi o meu marido que me foi buscar dentro da casa de banho», conta.

Quando o marido era vivo, ainda foi possível fazer algumas melhorias. Quando ele faleceu, há cerca de dois anos, Cátia ficou sem qualquer apoio.

Foi após um dia habitual de trabalho na construção civil, que ele chegou a casa a queixar-se de não ter força para levantar sacos de cimento. Foram ao médico e, após diversos exames, foi dada a má notícia: um cancro já em estado avançado, sem possibilidade de tratamento. O mundo de Cátia, assim como o sustento da família, foi abaixo com a doença do marido. Foi a segunda vez que se viu enlutada. A primeira foi quando perdeu duas filhas gémeas.

As lágrimas correm-lhe pelo rosto quando relata que o acordo familiar era que ela tomava conta das crianças, de oito meses e quatro anos, e ele trabalhava. «Como ele deixou de trabalhar, fiquei sem rendimentos nenhuns. O rendimento que eu tinha era o abono dos meus filhos e tinha o Rendimento [Social] de Inserção, que também não era muito. Também pagava muito – agora deixei de pagar porque não consigo – de renda, depois tinha água, luz, alimentação e tinha a medicação dele». Quando chegou a notícia fatídica, viu-se obrigada a deixar de pagar a renda, para conseguir fazer face às despesas com os medicamentos para o marido, que ultrapassavam os 100 euros. Abdicou dos comprimidos que ela própria necessitava para o fazer. «Tentei que não faltasse a eles. Podia faltar para mim.»

Atualmente falta-lhe, acima de tudo, o esposo. Só depois disso refere que falta também uma casa com condições dignas, para dar algum conforto às crianças. «A casa é muito fria. Consegue-se estar melhor na rua do que cá dentro», lamenta.

«Não sou de sonhar muito alto, mas o que eu sonho era a casa para os meus filhos.»

 

PROBLEMA SEM SOLUÇÃO SIMPLES

 

Sendo um problema complexo, a pobreza não tem soluções simples ou imediatas. De acordo com os especialistas, a sua mitigação tem de ser trabalhada a montante, em paralelo com medidas apontadas a aspetos essenciais à vida dos cidadãos, como o acesso à habitação, à educação, à saúde, etc. São estes os fatores que refletem e acentuam as desigualdades sociais e, por isso, são precisas reformas estruturais.

As prestações sociais, por exemplo, não resolvem, por si só as situações de carência, que têm raízes noutras questões mais profundas da sociedade. Esta é a opinião de Joaquina Madeira, que, em entrevista ao Gerador, frisa a importância do Estado social, mas alerta para o facto de ele não ser suficiente.

Partindo do exemplo do RSI, refere que este apoio «diminui a agressividade da pobreza na vida das pessoas, mas não as retira [de lá]». «Se, ao mesmo tempo, não acompanha as medidas de política social com as medidas de progresso de desenvolvimento económico e redistributivo no país, dificilmente se transforma a sociedade.»

A questão, diz a vice-presidente da EAPN Portugal, está, fundamentalmente, no «modelo de desenvolvimento económico », que, segundo diz «não está centrado em algo que cria valor». Se não se cria valor, não se consegue distribuí-lo, logo, perpetuam-se as desigualdades.

Este ponto de vista também foi defendido por Carlos Farinha, professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) e consultor no INE, durante um debate realizado na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e organizado pelo Gerador, em março de 2023. «É verdade que ninguém pode distribuir uma riqueza que não foi produzida. O que é falso é pensar que a produção e distribuição da riqueza são [elementos] separados, ou que há primeiro um processo e depois o outro.»

Para Carlos Farinha, «a forma como a riqueza é produzida condiciona fortemente a distribuição primária» da mesma, aspetos que são determinantes para a manutenção do problema. «Nós temos conseguido obter melhores resultados e moldar mais políticas no combate à pobreza do que no combate às desigualdades», diz o especialista. «[Talvez] aparentemente seja mais fácil, porque é transferir recursos para as famílias mais pobres, enquanto combater as desigualdades implica isso, mas implica, também, mexer nos privilégios dos mais ricos.»

«Isto precisa de ser visto política a política porque não há soluções genéricas», diz, por sua vez, o especialista Fernando Diogo, que defende dois tipos de políticas sociais: «as políticas generalistas, que promovem a igualdade dos cidadãos e, portanto, o acesso dos cidadãos independentemente da sua posição social e do seu rendimento, e depois as políticas que são dirigidas àqueles que são particularmente vulneráveis.»

Isto porque, segundo o investigador, se a atenção estiver centrada apenas nas populações mais carenciadas, podem gerar-se ressentimentos por parte de outros grupos, o que, em última instância, conduz ao apoio eleitoral de políticas de extrema-direita.

 

Foi há 21 anos que Hélia Maria Camará veio para Portugal, com o marido. Ela e os três filhos, chegaram da Guiné e assentaram em Massamá. Só em 2003, após se divorciar, Hélia se mudou para a Cova da Moura, onde permanece. «Eu era casada. Depois que eu me divorciei do meu marido, a minha irmã me trouxe aqui com as filhas. Eu estou aqui. Estava a trabalhar naquela altura. Mas, desde 2013, eu tenho um problema de má circulação, e eu não consigo trabalhar mais.»

Com notória dificuldade na locomoção, Hélia desloca-se com recurso a canadianas, que usa desde que foi operada. Apesar de visivelmente incapacitada para trabalhar, não beneficia de qualquer apoio social. «A minha filha trabalha, estou a viver com a minha filha aqui. É isso que me ajuda. Eu tentei, na Segurança Social [pedir reforma por invalidez]. Como eu trabalhei, já descontei… Por causa do meu problema, eles disseram [para esperar]. Estou à espera até agora», lamenta.

Antes de ser sujeita a intervenção cirúrgica no Hospital Amadora-Sintra, Hélia tentou receber tratamento na Alemanha. «Como eu estava doente, não estava conseguindo nada, fiquei desesperada. O meu primo chamou-me, eu fui para a Alemanha, para ver se eu conseguia tratar-me lá. Eu fiquei lá quatro anos.» Só melhorou temporariamente, pelo que precisou de ficar internada novamente em Portugal.

Hélia consegue precisar que o internamento foi no dia 3 de outubro de 2023. Louva o facto de já conseguir andar, ainda que apenas com recurso às canadianas. Lamenta não poder dar continuidade ao trabalho de doméstica, que praticou durante muitos anos, até porque não tem qualquer apoio que lhe permita subsistir. «Não consegui nada. Agora estou atrás deles para ver o que é que podem fazer. Porque nem para comprar o medicamento [tenho dinheiro], a minha filha compra para mim.»

Sem rendimentos, é ajudada pelos filhos e pela ASSACM, que fornece bens alimentares e essenciais, sempre que possível. Durante a entrevista, repete o quão importante seria ter algum tipo de ajuda do Estado, para fazer face a um futuro incerto. «Eles [os filhos] não vão ficar comigo todo o tempo. E quando eles forem embora, [se] eu não trabalho, como é que eu vou viver?»

Apesar de tudo, mantém a esperança de voltar ao ativo. «Eu sou uma mulher batalhadora. Eu trabalho. Eu não gosto de parar. Na altura em que eu estava a trabalhar [perguntavam-me] “vai de baixa?”, e eu disse “não”». Sendo mãe solteira, com quatro filhos, parar não era uma hipótese. As crianças, agora adultas, precisavam de quem as sustentasse. Hélia fêlo. A sua maior ambição é que eles consigam alcançar tudo o que ela não conseguiu, que estejam bem».

«Mas agora não estou a trabalhar. Fica mesmo triste para mim. Eu chorei muito, mas… Deus é
que sabe.»

 

A ESTRATÉGIA NACIONAL E AS METAS TRAÇADAS POR PORTUGAL

A Estratégia Nacional de Combate à Pobreza (ENCP) inclui um conjunto de medidas para mitigar as desigualdades, enquanto outras dizem respeito à pobreza e à redução das suas consequências na vida dos cidadãos. É composta por dois planos de ação, «com dois horizontes temporais diferentes para as concretizar (2022–2025 e 2026–2030)», conforme descrito na página oficial. No primeiro, estão descritas mais de 270 medidas que têm como objetivo «fazer baixar a taxa de risco de pobreza para os 10 % em 2030».

A título de exemplo, figuram no documento medidas como a criação de um novo modelo de atendimento e intervenção social integrada, ao nível local (uma tentativa de centralizar e personalizar a resposta), o lançamento do Programa Nacional de Mercado Social de Emprego e também do programa de Apoio à Contratação e Empregabilidade das Pessoas com Deficiência ou Incapacidade, a criação da rede do Balcão Único do Trabalhador e da Empresa, a criação da Prestação Social Única, o alargamento dos serviços de apoio domiciliário, a criação de uma agenda de investigação sobre o tema, entre outros.

Para a economista Susana Peralta, o maior problema reside na incógnita que paira sobre a análise de eficácia das medidas. «[A ENCP] padece, parece-me, de um problema que é transversal às políticas em Portugal, que é uma certa falta de evidência», diz.

“[O plano] vai buscar medidas que parecem meritórias, mas sem que nós saibamos como é que as vamos testar, como é que vamos [articular] como calendário, como é que vamos corrigir a agulha, se virmos que não estamos a ir no sentido que pretendíamos”

Susana Peralta

«[O plano] vai buscar medidas que parecem meritórias mas sem que nós saibamos como é que as vamos testar, como é vamos [articular] como calendário, como é que vamos corrigir a agulha, se virmos que não estamos a ir no sentido que pretendíamos», critica a docente da Universidade NOVA de Lisboa.

O documento foi apresentado em outubro de 2023, cerca de um ano e meio depois do prazo previsto. Sandra Araújo, coordenadora da ENCP, admitiu – na entrevista concedida ao Gerador, no mês seguinte –, que houve atraso, mas ressalva que isso «não significa que a implementação da estratégia esteja atrasada». É que muitas medidas aqui incluídas já estavam a ser implementadas. São exemplos, a valorização dos salários dos trabalhadores, o reforço da oferta do alojamento estudantil a preços regulados, a comparticipação dos medicamentos no ato da compra na farmácia para os beneficiários de Complemento Solidário para Idosos (CSI); a atualização das pensões e o aumento do CSI, assim como o programa Creche Feliz.

Este último ganhou especial destaque mediático. Apesar de considerado meritório, recebeu críticas pela falta de planeamento, que ficou a nu aquando da sua execução. O número de vagas disponível não permite dar resposta a todas as crianças elegíveis, o que dificulta a eficácia da medida.

Apesar disso, a responsável sublinha que não pode ser por esse motivo que se deve descredibilizar a medida. «Não temos agora condições de garantir a todos, mas, neste momento, são cerca de 85 mil crianças abrangidas já pela gratuitidade das creches, coisa que não tínhamos até agora, e agora temos. Em 2024, pretende-se chegar às 120 mil crianças, e, portanto, isto é um caminho que estamos a trilhar», afirma.

«Nós, possivelmente, nunca vamos conseguir atender a todas as necessidades que temos enquanto país, mas é preciso também realçar o esforço que se está a fazer e as melhorias que estão a acontecer, sob pena de estarmos sempre insatisfeitos e de não conseguirmos fazer nada de concreto», acrescenta Sandra Araújo.

Apesar da mudança de executivo, a coordenadora acredita que o PNCP será implementado, independentemente das forças políticas que estejam no poder. «É evidente que pode haver aqui algum risco de outros entendimentos relativamente àquilo que é o combate à pobreza e quais são as grandes prioridades», diz a coordenadora que, não obstante, defende «que o Governo que irá formar-se tem de assumir este programa como seu, e estar comprometido com todas as atividades e medidas aqui inscritas.»

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