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REPORTAGEM
 DEMOCRACIA 

A SITUAÇÃO
É DE “EMERGÊNCIA”,
ALERTAM ASSOCIAÇÕES
QUE APOIAM A
POPULAÇÃO SEM-ABRIGO

Texto de Flávia Brito
Edição de Débora Dias e Tiago Sigorelho
Ilustrações de Pri Ballarin
Produção de Sara Fortes da Cunha
Captação vídeo de Pedro Oliveira e Raquel Montez
Edição vídeo de Marcelo de Souza Campos
Comunicação de Carolina Esteves e Margarida Marques
Digital de Inês Roque

08.04.2024

O aumento do número de pessoas em situação de sem-abrigo é percebido em várias cidades do país. Mas, dentro deste termo, cabem muitos casos de carência habitacional escondidos do olhar público. Segundo as associações que trabalham no terreno, a inflação e os preços da habitação têm contribuído para agravar este cenário, empurrado mais famílias para situações de vulnerabilidade e deixando também as instituições com dificuldades financeiras.

Esta reportagem é a segunda parte da investigação Pobreza em Portugal: entre números crescentes e realidades encobertas, um trabalho jornalístico de longos meses que podes descobrir em baixo.

“Deixei de suportar o aumento do [preço do] quarto e vim para aqui”, conta Júlio, de 52 anos. Morava a menos de 500 metros da zona da Igreja dos Anjos, na Almirante Reis, em Lisboa, local onde há cerca de nove meses dorme numa tenda. “A Santa Casa [da Misericórdia] não teve hipóteses de me ajudar mais.” Relata também que, quando ali chegou, já lá estava uma pessoa. Hoje são perto de dezassete. “Fomos chegando uns atrás dos outros.” Apesar de haver sempre umas desavenças, a convivência “é um espetáculo”, garante. “É uma família, como nós dizemos.”

Os 230 euros que recebe do Rendimento Social de Inserção não lhe permitem pagar um quarto sozinho. Júlio conta como chegou até ali. “A minha vida sempre foi trabalhar em peixe, mas, nos últimos anos, devido a problemas de saúde, fui para a hotelaria.” O esforço e o frio durante a noite obrigaram-no a sair da empresa pesqueira, onde tinha trabalhado toda a vida. Explorava o café de uma associação de apoio a idosos sem fins lucrativos, quando ficou sem emprego, em outubro de 2021. Desde então, não conseguiu regressar ao mercado de trabalho.

Os últimos dados oficiais, divulgados em dezembro do ano passado, indicam a existência de 10 773 pessoas a viver em situação de sem-abrigo em Portugal, entre as 5975 que estão sem teto (isto é, a dormir na rua) e as 4798 que estão sem casa (ou seja, acolhidas em centros, quartos ou pensões).

Os números referentes a 2022 – e resultantes de um levantamento, realizado pela primeira vez, em todos os municípios do território continental – são da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA) e revelavam um aumento da população sem uma resposta habitacional digna, face ao ano de 2021. Nos dias de hoje, depreendem várias associações, há mais pessoas em vulnerabilidade habitacional extrema e mais estão em risco de ficar nessa situação.

“O que temos verificado na intervenção de rua, através das equipas voluntárias, [é que] estamos a ir ao encontro de mais pessoas, ou seja, estamos com um aumento na ordem dos 25 %”, refere Renata Alves, diretora da Comunidade Vida e Paz, que, por dia, distribui mais de 580 refeições em vários pontos da cidade de Lisboa.

De acordo com os últimos dados da instituição, só na capital, há mais de 530 pessoas a viver na rua. “Com certeza que há muitas mais que estão nessa situação, e há outras que estão na iminência”, diz a dirigente. “Há mais famílias em situação de vulnerabilidade, que não estando ainda numa situação de sem-abrigo, não têm recursos para fazer face às suas despesas mensais”, e por isso, se dirigem às carrinhas desta entidade, procurando algum apoio ao nível da alimentação.

CRISES SUCESSIVAS E PROBLEMAS ANTIGOS

As crises que impactaram o país nos últimos anos, associadas aos elevados preços dos imóveis, são apontadas como os principais fatores que justificam o aumento dos pedidos de ajuda. Primeiro, a pandemia que paralisou o mundo, atirando várias pessoas para o desemprego e instabilidade económica. Depois, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, que fez disparar os preços, em particular do cabaz alimentar.

A Cáritas Portuguesa tem, por isso, trabalhado “quase sempre em emergência”, explica Rita Valadas, presidente da instituição. “São crises sucessivas, com desafios sucessivos. As pessoas não conseguem sair do problema anterior quando se sobrepõe outra crise”, menciona. “As famílias que apoiámos por causa da situação pandémica – e da questão de emprego e de diminuição de rendimento que isso trouxe – apanharam a situação da guerra ainda sem o seu problema resolvido.”

O número de pessoas a pernoitar e a dormir nas ruas é oscilante e, por isso, difícil de precisar em cada momento. “A pobreza em Portugal tem muitos números e muitas estatísticas. Confesso que valorizo cada vez menos, especialmente porque, quando nos vêm apresentar dados macroeconómicos, parece que vivemos no oásis, numa situação fantástica, somos os melhores do mundo, diminuímos a dívida, temos dados de pleno emprego, enfim, temos uma data de dados que, para mim, não correspondem à realidade da situação que vemos no terreno”, afirma a dirigente. E conclui: “Os números, não sendo absolutos – e acho que estão longe da realidade – dizem-nos que a situação é cada vez mais complexa. Cada vez temos mais famílias que se aproximam e que nunca, na vida delas, tinham pensado que alguma vez iam precisar vir à Cáritas.”

No ano passado, no concelho de Vila Nova de Gaia, cerca de mil e quatrocentas pessoas pediram apoio ao Centro Porta Amiga daquela região, segundo a diretora-geral Susana Reis. Dessas, 294 recorriam àquele serviço da AMI – Assistência Médica Internacional pela primeira vez, e 197 estavam em situação de sem-abrigo. “O nível de frequência aumentou ligeiramente, isto é, começaram a ressurgir situações que já estariam mais estabilizadas. Mas, em termos de novos casos, mantemos sensivelmente os mesmos números”, explica a responsável. “Estas situações que recorrem, que já não vinham [à instituição] há algum tempo, são essencialmente por [motivos de] dificuldades habitacionais. Porque [eram pessoas que], de alguma forma, estavam estabilizadas em quartos arrendados, ou partilhavam algum tipo de habitação, e com esta subida de preços, no contexto atual, acabaram por ver a sua situação regredir.”

Segundo diz, algumas pessoas, não a maioria entre as que dormem na rua, têm algum tipo de atividade laboral, mesmo que seja precária, mas isso está longe de ser o suficiente para conseguirem pagar uma habitação condigna. “[Mesmo] com algum tipo de apoio social, com o Rendimento Social de Inserção – estamos a falar [de um valor] na ordem dos 200 euros, perto disso –, é insuficiente para pagar qualquer tipo de quarto.”

As dependências de álcool e substâncias psicoativas, os problemas de saúde mental, ou a desestruturação familiar continuam também a marcar o percurso de parte significativa das pessoas em condição de sem-abrigo, tornando-se muitas vezes uma barreira à reintegração. A estes fatores somam-se rendimentos “muito insuficientes”, acrescenta Susana Reis. “Há aqui uma insuficiência de rendimentos que também não permite que as pessoas consigam sair destes ciclos. É muito complicado”, diz. “O básico é realmente conseguirmos um lar para as pessoas se sentirem, de alguma forma, protegidas e estruturadas, para conseguirem também dar outro espaço nas suas vidas.”

 

MAIS IMIGRANTES NA RUA

 

 

Apesar de os números oficiais evidenciarem a presença do fenómeno um pouco por todo o território continental, é nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto que mais se verifica população em vulnerabilidade habitacional extrema. As duas regiões concentram mais de metade das pessoas em situação de sem-abrigo no país. Só na Grande Lisboa, estão 43 % das pessoas contabilizadas a nível nacional. Dessas, cerca de 30 % encontram-se sem teto.

Natalino Ribeiro tem 22 anos. Chegou a Portugal há um. Veio de Timor-Leste à procura de trabalho. Mas até agora não conseguiu nada. Antes dormia na Praça da Figueira, agora encontramo-lo junto à Igreja dos Anjos, em Lisboa. É ali que vive, numa tenda, na companhia de outros conterrâneos timorenses. Esforçando-se no português, diz que espera conseguir trabalho na construção civil ou na restauração.

Nuno Jardim, diretor-geral da CASA – Centro de Apoio ao Sem-Abrigo, verifica, nos últimos anos, “uma nova tipologia de pessoas na rua”, nomeadamente, estrangeiros que, devido a situações de conflitos ou fragilidade socioeconómica dos países de origem, procuram uma vida melhor em Portugal. Vêm sobretudo de África, do Médio Oriente e do Indostão.

“Vêm para procurar emprego, para procurar trabalho, para ganhar dinheiro. A questão habitacional, para eles, é importante, mas, se calhar, não é tão importante como para nós. Facilmente habitam num sítio com imensas pessoas, porque o objetivo principal é trazer dinheiro para enviar para as famílias”, explica o responsável.

A barreira linguística ou as questões culturais e religiosas são fatores a que as associações tiveram de se adaptar.Isso tem gerado alguma “pressão”, mas também obrigado a CASA a procurar novas formas de atuar.

Muitos destes migrantes são pessoas em situação de sem-abrigo com teto, menciona Nuno Jardim. “Dormem numa pensão qualquer, num alojamento qualquer, mas vêm à rua muitas vezes procurar apoio”, explica. “Durante o dia, ou estão a trabalhar, ou estão na rua. Não são apenas pessoas que ficam a dormir na rua e fazem a sua vida na rua, apesar de isso continuar a existir, infelizmente, e a subir.”

Para Rita Castro, técnica social no CLAIM – Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes da Mouraria, a língua é uma barreira à integração dos estrangeiros quando chegam ao país. “As pessoas que eu atendo, 90 e tal por cento, falam inglês, mas nos serviços públicos não.”

Na sua opinião, é necessário um maior “entendimento das culturas”, que permita à população portuguesa perceber “porque é que determinados comportamentos ou determinados hábitos existem”, sem que a estranheza e diferença se tornem princípios de exclusão do outro.

FENÓMENO CRESCENTE NO INTERIOR

De acordo com o “Inquérito de Caracterização das Pessoas em Situação de Sem Abrigo para o ano de 2022”, do ENIPSSA – a que responderam 278 concelhos do continente, através dos seus Conselhos Locais de Ação Social (CLAS) ou Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem Abrigo (NPISA) –, no sul do país, o número de pessoas neste contexto mais do que duplicou.

O Alentejo está entre as regiões com maior proporção de pessoas numa situação habitacional de extrema precariedade, com 2,13 indivíduos em condição de sem-abrigo por 1000 residentes. Nesta geografia, 55% das pessoas que estão sem teto são estrangeiras.

É na Praça da República, onde se situa o Centro de Emprego de Beja, que encontramos Suress, de nacionalidade nepalesa. Está em Portugal há três anos. Já viveu em Lisboa, no Porto e em Faro, onde trabalhou na agricultura, mais concretamente, na apanha da pera, da oliveira e da azeitona. Há um ano e meio naquele concelho, diz que agora não há trabalho, algo que o próprio não consegue entender.

Ao lado, tem o amigo Silva, de 35 anos. Deixou Lisboa, em 2018, para ir trabalhar para a construção civil. Ao fim de quatro anos, ficou desempregado, situação que ainda não conseguiu reverter. Sem condições de pagar uma habitação, está a morar numa casa cedida por uma amiga, sem luz, nem água, porque sem trabalho, não tem como pagar as contas. As refeições são feitas na cantina social da Cáritas local. “[Os] apoios [são] zero, a ajuda é quase nenhuma agora”, diz.

É na Praça da República, onde se situa o Centro de Emprego de Beja, que encontramos Suress, de nacionalidade nepalesa. Está em Portugal há três anos. Já viveu em Lisboa, no Porto e em Faro, onde trabalhou na agricultura, mais concretamente, na apanha da pera, da oliveira e da azeitona. Há um ano e meio naquele concelho, diz que agora não há trabalho, algo que o próprio não consegue entender.

Ao lado, tem o amigo Silva, de 35 anos. Deixou Lisboa, em 2018, para ir trabalhar para a construção civil. Ao fim de quatro anos, ficou desempregado, situação que ainda não conseguiu reverter. Sem condições de pagar uma habitação, está a morar numa casa cedida por uma amiga, sem luz, nem água, porque sem trabalho, não tem como pagar as contas. As refeições são feitas na cantina social da Cáritas local. “[Os] apoios [são] zero, a ajuda é quase nenhuma agora”, diz.

A seguir a Lisboa, Beja é o segundo concelho com maior concentração de pessoas a viver em situação de sem-abrigo. São 663. No último mês de dezembro, a Santa Casa da Misericórdia de Beja (SCMBEJA) fez uma ação que deixou claro este cenário preocupante no concelho. “Não foi muito a pensar nos sem-abrigo, mas acabou nos sem-abrigo”, conta Francisca Guerreiro, responsável pelo gabinete social, sobre a iniciativa de recolha e distribuição de bens e alimentos, realizada no âmbito de um programa de apoio às famílias, mas aberta a todos. “Estava muito direcionado para aquilo que está a acontecer no país”, explica a profissional. “Não estaria lá ninguém. A pessoa podia entrar para deixar, ou poderia entrar para levar, fosse que a pessoa fosse. Para não haver julgamentos e para a pessoa se sentir à vontade.”

Ao longo de um mês, o espaço era abastecido diariamente. “Foi um bocado chocante, porque não havia a ideia de que em Beja havia fome”, diz dirigente social, segundo quem a população em situação de sem-abrigo levava também tudo o que eram roupas quentes e mantas. “Quando abríamos a porta às 10 da manhã, diariamente, eles estavam à espera da porta ser aberta, e aquilo era… assustador. Era pesado, porque quando temos prateleiras com sumos e bolachas, e depois temos outras com pão, e as pessoas vão diretas ao pão e deixam os sumos para o segundo plano, há fome.”

ASSOCIAÇÕES TAMBÉM EM DIFICULDADES

 

Enquanto tentam dar resposta ao aumento dos pedidos de ajuda, também as associações que apoiam os mais carenciados enfrentam dificuldades. “As próprias instituições, como é o caso da Comunidade Vida e Paz, está a atravessar também um momento muito difícil, porque obviamente, com a inflação, os custos aumentaram e os donativos diminuíram”, conta Renata Alves. “Em alguns momentos, chegamos a repensar a nossa intervenção em alguns locais, face a não termos recursos suficientes para garantir essa intervenção.”

Se está mais difícil gerir uma casa, também está mais difícil gerir uma instituição não governamental, com despesas de habitação, água, luz, combustível ou alimentação, garante Rita Valadas. “Há pessoas no país inteiro que são cuidadas em casa e há pessoas que vivem residencialmente em instituições”, lembra a responsável. “É muito difícil com o mesmo orçamento, porque os aumentos da contratualização destas respostas sociais [com o Estado] não estão a ser equivalentes aos custos.”

A necessidade de ajuda é cada vez maior, mas é preciso também financiar as respostas. “[Uma instituição] É uma família que tem um rendimento fixo a que se vem a somar despesas novas, permanentemente.” Muitas instituições, como a Cáritas, funcionam com voluntários e doadores, mas isso “não é uma realidade em que se possa confiar a tempo inteiro. É pontual”, reforça a presidente.

Por falta de capacidade financeira e sustentabilidade, é impossível dar resposta a todos os pedidos. “Não conseguimos chegar a todos”, deixa claro Nuno Jardim. “Temos de fazer uma seleção das pessoas que estão em pior situação”, diz. “Felizmente há outras instituições, mas acho que nem assim todos juntos… Infelizmente, não está a ser muito muito positivo na questão de conseguir retirar pessoas de facto da rua.”

 

 

Esta reportagem é a segunda parte da investigação Pobreza em Portugal: entre números crescentes e realidades encobertas, um trabalho jornalístico de longos meses em que tentamos compreender as várias faces da Pobreza em Portugal. Nas partes que se seguem, abordaremos a invisibilidade das mulheres em condição sem-abrigo e o que tem falhado nos esforços para evitar que mais pessoas acabem sem casa ou sem teto em Portugal.
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