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Texto de Flávia Brito
Edição de Débora Dias e Tiago Sigorelho
Ilustrações de Pri Ballarin
Produção de Sara Fortes da Cunha
Comunicação de Carolina Esteves e Margarida Marques
Digital de Inês Roque
Captação de vídeo de Pedro Oliveira e Raquel Montez
Edição de vídeo de Marcelo de Souza Campos
O alargamento do conceito de sem-abrigo é uma das principais novidades da nova ENIPSSA, aprovada em março, numa das últimas decisões tomadas pelo Governo socialista cessante. A designação oficial passará a incluir, não só as pessoas sem-teto (que vivam na rua ou em abrigos de emergência) e sem-casa (quem se encontre em alojamento temporário ou pensões), mas também as que se encontrem “em risco de vivenciar” uma dessas situações.
Em 2022, mais de 10 700 pessoas estavam na condição de sem-abrigo em todo o país. Nesse ano, 5975 dessas pessoas estavam sem-teto, a dormir nas ruas. As restantes 4798 estavam abrigadas em centros de acolhimento, quartos ou pensões, ainda assim sem uma resposta habitacional digna.
Ainda não são conhecidos os números de 2023, mas várias associações têm apontado a permanência de um maior número de jovens e de imigrantes nas ruas, mas também mais famílias a pedir ajuda para pôr comida na mesa.
No documento, publicado em abril em Diário da República, fica determinado que se deve “garantir uma intervenção especializada junto de públicos especialmente vulneráveis como população idosa, em situação de dependência, com deficiência, pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental, pessoas com consumos e dependência do álcool ou substâncias ilícitas, pessoas LGBTI+, população cigana, população migrante, entre outros”. Ou seja, pessoas que se encontrem em risco de perder a casa deverão contar com o apoio dos meios que venham a ser disponibilizados no âmbito da estratégia. A ideia é impedir que o risco se concretize, travando a perda de teto de quem passe por uma situação que possa levar a esse desfecho.
A investigadora independente Isabel Baptista, que integra o Observatório Europeu das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, elogia o facto de a prevenção surgir de forma explícita como uma prioridade estratégica. “Se só nos focarmos nas situações que já estão consolidadas e se não atuarmos na prevenção, digamos que andamos sempre a correr atrás do prejuízo, e tendemos a não estancar estas novas situações que poderiam ser evitadas”, explica a pesquisadora, que faz parte também da Rede Europeia para a Proteção Social e a rede WHEN Women’s Homelessness in Europe Network. Trabalhar as situações num momento precoce implicaria um custo inferior não só do ponto de vista humano, defende, como também ao nível “dos recursos que é necessário ativar, quando estas situações já estão consolidadas e, eventualmente, já se prolongam há muito tempo”.
Para Isabel Baptista, mais do que intenções no papel, a estratégia tem de ser concretizada e, para isso, é preciso operacionalizar mecanismos “que façam com que se identifiquem pessoas que estão em situação de risco, e que se consiga apoiar e reverter essa situação”. Até porque, como explica, prevenir estas situações “convoca muitas áreas e um trabalho muito articulado, muito consertado”, para além de recursos financeiros e humanos.
Para além de uma proposta em consulta pública, entre os meses de janeiro e fevereiro, a nova ENIPSSA teve em conta a auscultação de 700 pessoas sem-teto e sem-casa, que apontaram a necessidade de medidas “atempadas e oportunas” nas áreas da habitação, do acesso ao trabalho e aos serviços de saúde, bem como ao nível do suporte comunitário e familiar.
Isabel Baptista reconhece que várias áreas e entidades nem estarão habituadas a trabalhar neste domínio de prevenir a situação de sem-abrigo. As situações a identificar podem ser várias, desde uma situação de despejo, a situações de violência doméstica ou vulnerabilidade económica devido à perda de emprego. É preciso identificar as pessoas, perceber essas situações, mas também haver mecanismos que evitem que determinados eventos e cenários conduzam a uma condição de sem-abrigo. “Isto não pode ficar à responsabilidade dos NPISA”, sublinha, referindo-se aos Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA), até aqui criados “sempre que a dimensão do fenómeno das pessoas em situação de sem-abrigo o justifique, no âmbito dos Conselhos Locais de Ação Social ou plataformas supraconcelhias”.
Américo Nave, diretor-executivo da associação Crescer, considera que, até aqui, tem faltado articulação estratégica e dá o exemplo da situação dos migrantes: “Por um lado, temos muitas empresas que têm falta de mão de obra e que, muitas vezes, até já contactam organizações como a nossa, porque estão desesperadas à procura de mão de obra. Por outro lado, encontramos pessoas que chegam ao país à procura de trabalho para melhorar a sua condição de vida. E, muitas vezes, não há ninguém que ajude e que facilite este match entre a procura de mão de obra e as pessoas que chegam ao país a procurar trabalho.”
Outra questão é a dotação financeira. “A estratégia [atual], e até as anteriores nunca tiveram, na minha opinião, a dotação financeira e os recursos financeiros que deveriam ter tido para conseguir concretizar toda a ambição e todos os objetivos que tinham”, afirma Isabel Baptista. “Criou-se mais um conjunto de estruturas, ao nível local, de figuras, como o gestor de caso, mas que exige, obviamente, o investimento por parte de quem está no local, em termos de ter aquelas pessoas devidamente formadas, devidamente qualificadas, de ter as pessoas com tempo suficiente para se dedicarem a este tipo de trabalho.”
Na opinião da especialista, que, ao longo de duas décadas, fez parte da equipa de investigação do CESIS – Centro de Estudos para a Intervenção Social, há neste momento um peso muito grande sobre os NPISA, “para que, de repente, assumam toda esta área da prevenção, que é importantíssima, e, claro, que vão ter um papel importante, mas têm de ser apoiados por outras [entidades]…”, que trabalhem em conjunto desde as questões do emprego e da habitação às questões da educação, justiça ou mesmo da proteção da infância. “Temos jovens que estão nos centros de acolhimento. Quantos há nos centros de acolhimento? [Quando saem] como é que é?”, questiona.
São várias as situações em que as pessoas não têm os recursos suficientes para se autonomizar. A violência doméstica é outra área evidente. “As mulheres vão para uma casa de abrigo, OK, e depois quando saem? Sabemos que há problemas a este nível, das pessoas depois terem a capacidade [financeira], sozinhas, depois deste processo de recuperação, digamos assim, em termos emocionais e tudo isso… Muitas vezes, não têm os recursos suficientes para se conseguir autonomizar.”
Na sua opinião, a estratégia tem ainda de “resolver melhor” a maneira como se interliga, por exemplo, com a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza. “Uma coisa tem de contribuir para a outra”, diz.
O Gerador tentou uma entrevista junto do atual coordenador da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, Henrique Joaquim, mas sem sucesso. Desde fevereiro, aguardamos a indicação da disponibilidade do coordenador da ENIPSSA.
Num comunicado, divulgado a 23 de fevereiro, a Câmara Municipal do Porto esclareceu por que razão se pronunciou contra o alargamento do conceito de pessoa em situação de sem-abrigo na consulta pública da estratégia nacional até 2030. No documento, o município apontou “erros de base, desresponsabilização e uma falta de compromisso para com o funcionamento” do NPISA na proposta entretanto aprovada. “A responsabilidade primeira de prevenir e pôr termo às situações suscetíveis de criar situação de forte vulnerabilidade deverá ser enquadrada no âmbito das políticas sociais e de emergência, presentes na Estratégia Nacional de Combate à Pobreza e nos Planos de Desenvolvimento Social, sendo que, naturalmente, a ENIPSSA também deverá contribuir”, lê-se no texto assinado pelo vereador com o pelouro da coesão social, Fernando Paulo.
O município defendeu ainda que, tendo em conta o número de pessoas a viver nesta situação, a intervenção deveria ser reforçada e que, para isso, seria preciso apostar na “profissionalização” dos técnicos gestores de caso. Mas, ainda que essa situação esteja prevista na estratégia nacional, o vereador diz não estarem reunidas condições para que isso realmente aconteça. “Não se percebe como se poderá concretizar, nomeadamente ao nível dos meios, do financiamento e da forma.”
Os NPISA “não têm recursos nem meios próprios para assegurar que ninguém é desinstitucionalizado nas condições referidas [quando toda a rede falhou e a pessoa está a viver na rua], nem competência tutelar, hierárquica, sobre as entidades nem sobre respostas sociais ou outras”, é referido naquela pronúncia que aponta ainda a ausência de uma equipa técnica mínima, “à semelhança das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens”, de forma a evitar que sejam os NPISA a “assumir omissões de outras entidades com responsabilidade na área social”.
Apostando no reforço das respostas de proximidade, com um gestor de caso para cada situação que esteja a ser tratada, a ENIPSSA 2025–2030 continua a defender como objetivo “que ninguém tenha de permanecer na rua por mais de 24 horas”, o que não foi conseguido até agora.
Das mais de 10 700 pessoas que estavam na condição de sem-abrigo em todo o país, de acordo com os últimos dados oficiais, de 2022, 2296 não eram acompanhadas por um gestor de caso, tendo por isso mais dificuldade em aceder a respostas sociais. Destas, 1912 viviam na rua.
O aumento das soluções de Housing First e apartamentos partilhados, de forma a garantir uma habitação condigna a esta população, é outra das medidas que figura na nova estratégia ENPISSA e que é considerada pelos especialistas como uma das mais eficazes.
Em Lisboa, a associação Crescer tem há dez anos o programa É Uma Casa, baseado neste modelo, que dá uma casa a pessoas em situação de sem-abrigo, com o objetivo de promover a sua inclusão na comunidade. Há dois princípios fundamentais: as casas serem individuais e serem dispersas pela cidade. Outro é a procura de soluções nas respostas da comunidade, que são dirigidas a qualquer cidadão, explica Américo Nave.
As pessoas são identificadas pelas equipas de rua e é dada prioridade às que estão há mais anos sem-teto. Os resultados são visíveis: 90 % das pessoas não voltam à situação sem-abrigo. “Nunca encontramos uma pessoa que não quisesse sair da situação sem-abrigo”, diz o dirigente associativo. “São números que demonstram que o investimento em projetos como é o Housing First, que é um dos projetos mais investigados em todo o mundo, é possível, viver em cidades onde não estejam pessoas em situação sem-abrigo em situação crónica.”
Para Isabel Baptista, há um problema estrutural, “que não se resolve de um dia para o outro, e não se resolve numa década”: o acesso à habitação acessível. “Não é possível fazer-se todo um trabalho com as pessoas e depois não haver respostas ao nível de haver um suporte habitacional digno, estável e que garanta as condições mínimas de privacidade, de intimidade, a que todos nós temos direito, independentemente da nossa situação.”
Para além de não garantirem estabilidade ao nível de intimidade, privacidade e, muitas vezes, até de segurança, os centros de alojamento temporário, como o próprio nome indica, não se devem tornar numa solução permanente. Mas, em muitos casos, é a única que há. Há pessoas que vivem durante anos nestes locais, sem que possam ter acesso ou suportar financeiramente outra alternativa habitacional.
“Temos uma habitação pública absolutamente diminuta, que não responde às necessidades nem destas pessoas, nem de muitas pessoas, de muitas famílias, e isto é algo que tem de ser levado a sério”, defende a investigadora. “Sabemos que, noutros países, só conseguiram, de facto, fazer avançar e fazer um mainstream, digamos assim, destes programas da Housing First, porque, ao mesmo tempo, criaram respostas de habitação acessível, mecanismos diversificados de acesso à habitação, para que as pessoas pudessem ter também esta componente.”
Para Américo Nave, este tem sido um erro dos últimos 40 anos. “Tem-se apostado imenso nas respostas partilhadas e, hoje, está provado, até pelos números, que as respostas partilhadas não têm dado resposta a esta situação e, portanto, é importante que nós encontremos outras metodologias.”
A Bolsa Nacional de Alojamento Urgente e Temporário tem previsto um investimento, via Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), de 138,1 milhões de euros, para a criação de dois mil alojamentos de emergência e de acolhimento ou transição até ao segundo trimestre de 2026.
Com este investimento, é dito na página do Portal da Habitação, “pretende-se criar uma resposta estruturada e transversal para as pessoas que carecem de soluções de alojamento de emergência (devido a acontecimentos excecionais ou imprevisíveis ou a situações de risco iminente) ou de transição (situações que, pela sua natureza, necessitam de respostas de alojamento de acompanhamento antes de poderem ser encaminhadas para uma solução habitacional definitiva).”
Para Isabel Baptista, esta resposta é necessária, mas “não é para se perpetuar”. Construir mais centros de alojamento temporário não é a solução, garante. Segundo a investigadora, outros países europeus, como a Finlândia, optaram exatamente pelo contrário, por transformar alojamentos temporários em habitação permanente, centrando-se em garantir esse direito e em fazer crescer a oferta habitacional a custo acessível. “E depois trabalhar, ao mesmo tempo, as questões da prevenção. E tornar o que é temporário e o que é urgente apenas naquilo que é preciso”, diz. “Assusta-me muito quando começo a ver, às vezes, em concelhos [portugueses] que têm um número até reduzido de pessoas em situações sem teto… de repente toda a gente quer abrir centros de alojamento temporário.” É fundamental, diz, “garantir soluções habitacionais de caráter permanente.”
A atual ENIPSSA, cuja vigência deveria ter terminado no final de 2023, foi prorrogada até ao final deste ano, para que o país não fique, temporariamente, sem respostas nesta matéria.
Apesar das críticas, a investigadora sublinha que tem sido feito um caminho “bastante importante” em termos de intervenção nesta área, pelo menos, na última década. A capacidade de trabalho conjunto e de articulado, ao nível do território, “melhorou significativamente”, entende. “Tínhamos organizações a trabalhar cada uma para o seu lado e, neste momento, temos esta capacidade de trabalhar nesta área de uma forma concertada, identificar os problemas, fazer um diagnóstico das situações e perceber onde é que se deve atuar.” Criaram-se respostas que não existiam, como os projetos de Housing First.