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Reportagem e texto de Inês Loureiro Pinto
Reportagem de imagem de Vítor Martinho
Edição de Tiago Sigorelho
Design de Frederico Pompeu
Fotografia de abertura cedida por Luís Pinto
17.11.2025
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O poema está assinado com as iniciais “M.A.C.C.L.”. Luís Alves não se recorda de quem o escreveu. Foi impresso na margem esquerda do postal, acompanhado, à direita, de uma ilustração de um guarda-rios, a pequena ave que se encontra amiúde nas linha de água da Europa e norte de África, do seu nome científico e do apelo: “Guarda Rios reivindicam: a não extinção da carreira, meios que lhes permitam melhor fiscalização”. Foi enviado pela Federação Nacional dos Sindicatos da Função Pública ao presidente da República, então Mário Soares, explica o antigo guarda-rios durante o nosso encontro, na terra devidamente apelidada de Rossio ao Sul do Tejo.

Luís Alves foi eleito pelos colegas para pertencer ao grupo de trabalho da Federação que, com o Governo, através das secretarias de Estado do Ambiente, do Orçamento, da Administração Pública e da Modernização Administrativa, negociou em 1995 o projeto de diploma unificador das carreiras de guarda e vigilante da natureza, bem como a estrutura da nova carreira. Tem agora 79 anos, tinha perto de cinquenta quando a sua profissão deixou de existir. Reformou-se pouco depois do virar do século, já como vigilante da natureza. Mas os abrantinos mais antigos ainda o reconhecem como o “Senhor Guarda-Rios”.
Acompanhado das três cópias sobrantes do postal, bem conservadas entre documentos amarelados pelo tempo, está o seu longo currículo, com descrições detalhadas das funções que desempenhou em mais de duas décadas como guarda-rios. Há ainda espaço para uma apreciação da carreira, escrita pelo próprio. “Sentir que com o desempenho das nossas funções estamos a contribuir, ainda que modestamente, para melhorar a situação e defender os elementos vitais para a nossa sobrevivência e à sobrevivência de outras espécies (o ar, a água, o solo, a fauna e a flora) traz-nos uma satisfação e realização pessoal que dificilmente encontraríamos no desempenho de função diferente ou noutra instituição”.
A carreira de guarda-rios surge com um decreto real de D. Carlos I, que, a 19 de dezembro de 1892, aprova o Regulamento para os Serviços Hidráulicos, entidade inserida no Ministério das Obras Públicas. Entre outras disposições, o regulamento define a orgânica dos Serviços, composta por engenheiros, condutores e desenhadores (semelhantes aos profissionais das obras públicas e das minas), e outros novos, como os mestres de valas e os guarda-rios. Estes últimos eram contratados através de procedimento concursal com uma mão cheia de requisitos: ter entre 21 e 40 anos de idade, saber ler e escrever, não ter registo criminal nem “padecer enfermidade que o impossibilite de trabalhar diária e assiduamente”, ter trabalhado previamente em obras de serviços agrícolas ou hidráulicos e não ter um estabelecimento de venda no lanço a que pertencer o cantão que lhe for confiado. Dava-se preferência a quem tivesse tido carreira militar. Como agentes fiscalizadores, os mestres e guardas prestavam juramento perante um juiz.

Atendendo às condições do território, os superiores decidiam se os guardas fariam o seu trabalho a pé ou a cavalo. No segundo caso, diz o regulamento, o guarda receberia mais 200 réis por dia para “sustento do cavalo” – sem equacionar a inflação, o valor corresponderia hoje a um décimo de cêntimo. Tipicamente, um cantão era definido pela soma das distâncias que um guarda conseguia percorrer a pé a montante e a jusante do seu ponto de partida num só dia. As suas funções eram diversas e foram evoluindo consoante as progressivas atividades humanas dependentes das linhas de água, como o aproveitamento de água para moinhos, a extração de areias, a construção de açudes ou as captações de água por furo.
A Classificação Nacional das Profissões de 1994 descreve a extensa lista de responsabilidades destes profissionais, entre as quais a fiscalização do cumprimento das leis e regulamentos do serviço hidráulico, a vigilância de obras no leito e ao longo das margens das correntes de água públicas e também na orla marítima, e a aplicação de multas e autos de transgressão. Os guarda-rios colaboravam ainda na elaboração de cadastros, orientavam serviços de conservação e preenchiam mapas periódicos. Adicionalmente, podiam ser chamados a fazer o policiamento de matas e a avaliar madeiras e terrenos, além de auxiliar em assuntos de segurança pública e no trabalho de colegas – por exemplo, servindo de testemunha numa autuação.

Calcorrear as margens era um trabalho predominantemente solitário, salvo nas interações com a comunidade, na resolução de conflitos ou na orientação de trabalhos dos mestres de valas e dos cantoneiros. Cumprido o estágio de introdução à profissão, os encontros com os superiores, os engenheiros chefes de lanço que supervisionavam um conjunto de cantões de determinada região, eram pontuais Em 1941, a então Direção Geral dos Serviços Hidráulicos e Elétricos empregava 192 guarda-rios de 1ª classe e 383 de 2ª classe (a fase inicial da carreira), nas quatro direções regionais correspondentes às bacias hidrográficas do Douro, Mondego, Tejo e Guadiana. A vasta maioria ganhava um salário de oito escudos, o que seriam hoje quatro cêntimos. O quadro operacional era composto apenas de homens – os cargos destinados às mulheres nos Serviços Hidráulicos eram administrativos.
De acordo com Francisco da Silva Costa, geógrafo e professor da Universidade do Minho, cuja tese de doutoramento foi dedicada à análise da gestão das águas públicas no século XX, “os guarda-rios assumem, sem dúvida, um papel central na gestão das áreas pertencentes ao Domínio Público Hídrico”, sublinhada a natureza da sua missão no regulamento de 1892, “essencialmente protectora, cumprindo-lhes empregar todos os meios de vigilância e de advertência para evitar que se pratiquem crimes, delitos ou transgressões, e devem usar da maior prudência e circunspecção no desempenho dos serviços a seu cargo, a fim de evitar conflitos”.


Francisco da Silva Costa centrou a sua investigação na gestão dos recursos hídricos em Portugal no século XX, a partir da publicação da sua tese de doutoramento. Intitulada “A Gestão das Águas Públicas — O caso da Bacia Hidrográfica do Rio Ave no período 1902-1973”, assentou essencialmente na análise do arquivo da Administração da Região Hidrográfica do Norte da Agência Portuguesa do Ambiente, entidade que substituiu os Serviços Hidráulicos. O geógrafo passou cerca de três anos a pentear mais de 30 mil documentos, relativos à bacia hidrográfica do Ave – documentação relacionada com licenciamentos, procedimentos jurídicos ou correspondência -, processo dificultado pelo mau estado de conservação dos documentos.
Fascinado com a dimensão do arquivo, foi Francisco que liderou os esforços para que este fosse transportado do Porto para uma sala na Universidade do Minho, em Braga, com melhores condições de conservação. Há cerca de uma década, no âmbito de um projeto financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, o arquivo encontra-se em Guimarães, ao cuidado da Sociedade Martins Sarmento. Em 2024, a APA anunciou a construção do Museu e Arquivo Histórico dos Recursos Hídricos, em Albergaria-a-Velha, na antiga Fábrica de Papel Valmaior, num investimento que ultrapassa os sete milhões de euros. Para aí irá também o acervo documental das várias regiões hidrográficas do país.


Luís Pinto nasceu no dia de Natal de 1934. No próximo faz 91 (dado difícil de assimilar, a julgar pela sua jovialidade física e mental). No quintal da casa, numa rua sossegada do Torrão, vila do concelho de Alcácer do Sal, faz uma viagem minuciosa à carreira por entre objetos da antiga rotina, cuidadosamente recuperados do arquivo pessoal. O boné de cotim cinzento com o distintivo dos Serviços Hidráulicos e o escudo nacional, peça essencial do uniforme de guarda-rios, permanece intacto, como se tivesse sido confecionado neste século. Já com as marcas naturais da idade está a caixa verde de lata que levava a tiracolo com os formulários e correspondência necessária, além do regulamento e do diploma de nomeação, documentos que os guarda-rios eram obrigados a ter sempre consigo. Tornou-se guarda-rios aos 27, tendo antes dominado o ofício da sapataria passado pelo pai. Ainda hoje mantém as máquinas oleadas na garagem para fazer pequenos trabalhos para a vizinhança. Também na garagem, encontrámos as botas de cabedal com que percorreu quilómetros em serviço no Torrão. Ainda lhe servem.
Recorda que eram 102 os candidatos daquele concurso e, com orgulho no rosto, que ficou nos primeiros doze colocados do exame de admissão. Foi para Meimoa, município de Penamacor, e depois transferido para a povoação da Vermelha, no Cadaval. “Mas como era longe e os ordenados eram poucos”, explana, aproveitou uma baixa no cantão da terra natal para regressar ao seu Xarrama, que encontra, mais à frente, o Sado. Mais de seis décadas depois (duas desde a reforma), em maio deste ano, ostentando o boné impecável, Luís Pinto liderou uma caminhada pelo rio Xarrama no âmbito da iniciativa internacional Walking Rivers, dinamizada pelo recém-criado Movimento Xarrama Vivo, cujo objetivo é ativar a comunidade local em torno da regeneração daquela linha de água.
No final de setembro, foi o protagonista da exposição “O Rio Xarrama e o Último Guarda-Rios”, no Museu Etnográfico do Torrão, organizado pela Câmara Municipal de Alcácer do Sal. Os seus documentos, acompanhados de imagens do arquivo pessoal do irmão Joaquim, ajudam a contar a história da vila, que é uma história em torno do rio, aponta Maria João Santos, arqueóloga da autarquia que idealizou a exposição. Interessou-lhe recuperar a história do centro nevrálgico da vila, que em memória não é assim tão distante dos nossos dias, apesar de longa. “Desde a pré-história que os rios são vias essenciais, não só de transporte, como de vivência. A água é vida e o Xarrama e suas ribeiras não são exceção”, nota a arqueóloga. “E apenas há 50 anos, as pessoas de cá acompanhavam as mães à ribeira, para levar a roupa, e os pais pescavam e os moços aprendiam a nadar nos pegos do rio. Então a exposição junta duas vertentes importantes, que é a recuperação dessa conexão com o rio e também a importância da sua preservação atual”. Maria João admite que “hoje não nadaria no rio”. “Mas quero que, um dia, os meus filhos lá possam aprender a nadar”.

O Xarrama destaca-se na paisagem alentejana como azul sobre ouro. Sob a liderança do antigo guarda-rios, percorremos alguns dos caminhos da rotina, embora a vista para o rio seja desafiada por silvados, canaviais e jacintos-de-água. E portões trancados. Num ponto de acesso à margem do rio, contígua a uma herdade, a passagem é impossibilitada por um grande portão de ferro fechado a cadeado. “Se houvesse guarda-rios hoje, já teriam dificuldade em fiscalizar”, lamenta Luís Pinto. “Eu seguia o rio por todo o lado. É um caminho público, é para estar aberto”. Em 1864, um decreto de D. Luís I torna públicos os rios navegáveis e flutuáveis e suas margens, bem como as águas do mar, seus leitos e margens, portos de mar, praias, canais e valas, portos artificiais e docas existentes ou futuras. Segundo a lei em vigor que estabelece a titularidade dos recursos hídricos, “todas as parcelas privadas de leitos e margens de águas públicas estão sujeitas às servidões estabelecidas por lei e, nomeadamente, a uma servidão de uso público, no interesse geral de acesso às águas e de passagem ao longo das águas, da pesca, da navegação e da flutuação, quando se trate de águas navegáveis ou flutuáveis, e da fiscalização e policiamento das águas pelas entidades competentes”. Em águas navegáveis ou flutuáveis, a servidão é de 30 metros. Em águas não navegáveis ou flutuáveis, como em ribeiras e riachos, é de dez metros a partir do talude do rio.
Maria João Santos atesta esta dificuldade, recordando-se de um trilho demarcado que não pôde completar porque estava vedado junto ao rio. Conta que, na caminhada comunitária de maio deste ano, foi necessário pedir à junta de freguesia de antemão que notificasse os proprietários dos terrenos contíguos ao rio para desimpedir a passagem pela servidão. O Gerador constatou que esta é uma realidade que se verifica noutros pontos do país.

José Francisco da Cruz traça, com o dedo, as linhas azuis da carta militar da terra natal, Ourique – a escassos quilómetros da nascente do rio Sado. “Antes corria cada linha de água de baixo a cima, a pé. Era diferente de andar no jipe, em cima do alcatrão. Conhecia as pessoas”. Chamavam-lhe o Mestre Zé Guarda-Rios. A intimidade era tal com a comunidade que, na ausência de um escritório oficial para o atendimento ao público, a porta de casa estava sempre aberta. “Era frequente cidadãos baterem à nossa porta para tratar de assuntos relacionados com a sua atividade profissional, interrompendo as minhas maratonas de desenhos animados ao sábado de manhã, ou o momento em que estávamos todos sentados à espera do ‘Roque Santeiro’”, relata Nuno Guilherme Cruz, filho de José Francisco. “Sempre o vi como um facilitador, constantemente disponível para atender qualquer pessoa a qualquer hora, muitas vezes interrompendo momentos familiares”.
Depois do Ultramar e de uma temporada laboral na Alemanha, José Francisco Cruz tornou-se guarda-rios em 1976. Daquele tempo conserva as cartas militares e o distintivo que usava na braçadeira. Nunca chegou a ter uniforme, apesar de um decreto-lei de 1969 consagrar esse direito aos guarda-rios – bem como um apoio do Estado a metade do custo do fardamento. Recorda que lhe pediram as medidas por duas vezes, mas a farda nunca chegou. Isso não o chateou; “preferia andar à civil”. Tudo o que usava para trabalhar, das cartas militares à máquina de escrever, era pago do próprio bolso. “A dedicação pessoal compensava muitas das limitações institucionais porque a profissão se fundia com a sua identidade”, medita Nuno Guilherme Cruz.
“Era o parente pobre do Estado”, atira Mestre Zé, comparando a profissão à dos cantoneiros, os profissionais encarregues de limpar as estradas que ocasionalmente assistiam os guarda-rios em trabalhos operacionais. As casas onde eram colocados, junto aos caminhos, ainda fazem parte do horizonte das estradas nacionais. “O que a gente tinha de bom era ser livre”, reflete José Francisco, na sala de estar que era também receção. Os guarda-rios geriam o seu horário e percurso conforme as obrigações e a meteorologia. Quando ainda era guarda-rios de segunda classe, nos anos 30, Luís Pinto ganhava 729 escudos por mês. Completa que foi sendo aumentado para um “ordenado digno”. No final da carreira, quando já substituía a caminhada ou a bicicleta pelo automóvel pessoal, passou a receber um subsídio para a gasolina.
“Fazer aquilo de que gostava era metade do ordenado”, nota Luís Alves. Garante que foi o dele o primeiro computador dos funcionários dos Serviços Hidráulicos, um Philips, onde apontava os procedimentos e os cadastros de propriedade. Começou a carreira de guarda-rios já nos anos 80, depois de ter regressado da Suíça. Não se recorda de haver muitos mais concursos a seguir ao seu. “No final, havia cinco guarda-rios para doze concelhos a norte do Tejo”.

No último quarto do século XX, os profissionais dos Serviços Hidráulicos começavam a reformar-se e não eram substituídos, ficando os seus cantões para os colegas das áreas contíguas. A atuação de proximidade, a mais valia do guarda-rios, esvanecia-se.
Voz mediadora em conflitos entre proprietários e conselheira na prevenção de transgressões, a última palavra era sua. Por vezes, era necessário fazer frente a ameaças verbais e físicas por parte de quem era importunado pela fiscalização. “Eu julgo que consegui ser uma ferramenta para as pessoas com quem trabalhei”, pondera Luís Alves. Fala na importância de os conflitos serem resolvidos in loco e com a participação direta das pessoas visadas. “Eu conhecia [o território], mas eu só passava lá. As pessoas foram lá criadas, sabiam como o rio se comportava. Podiam não ser pessoas de conhecimentos, com cursos, mas eram pessoas de saberes”.
Durante o nosso encontro no Rossio ao Sul do Tejo, com o grande rio que nasce em Espanha em pano de fundo, o ex-guarda-rios repete uma analogia aquática. Considera-se um peixe que nada contra a corrente, atitude que talvez tenha influenciado a sua veia sindicalista e, mais tarde, a investida na política autárquica – foi presidente da União de Freguesias de São Miguel do Rio Torto e Rossio ao Sul do Tejo, no concelho de Abrantes, até 2021 -, mas também a decisão de se reformar dos Serviços Hidráulicos mais cedo do que previa.
“A filosofia antigamente era a de que um bom guarda-rios era aquele que não levantava autos de notícia, porque vigiava a sua área e não permitia que acontecessem infrações. A partir de um certo momento, começou a haver a filosofia de que isto tinha de gerar dinheiro”, explica Luís Alves. Insurgia-se contra os superiores por não concordar com as coimas praticadas. “Por exemplo, a um indivíduo da aldeia que ganhava 200 escudos por mês (pouco menos de um euro) aplicavam multas de 20 contos (quase cem euros) por uma infração”, enquanto faziam “vista grossa” a infratores com influência. O que cunha como uma “falta de profissionalismo e equilíbrio” incentivou o descontentamento com o trabalho e a reforma precoce de Luís Alves. Mas não saiu sem antes encabeçar a representação dos colegas nas negociações da carreira com o Governo. A Confraria Ibérica do Tejo prepara-se para lançar um livro sobre a sua história.
“E quem era o grande infrator? O próprio Estado. Isto é, o presidente da câmara local pedia para se construir uma escola na proximidade da linha de água. Era um benefício público. Depois, vieram as Estações de Tratamento de Águas Residuais. Quais são as ETAR que não funcionam? Grande parte do Estado. Mas o Estado vai multar o próprio Estado? Há aqui um conflito institucional”, diz Pedro Teiga, filho de guarda-rios, doutorado em engenharia do ambiente e especialista em reabilitação fluvial.
Outros fatores contribuíram para a debilidade da manutenção das linhas de água, segundo Francisco da Silva Costa: “a legislação portuguesa, muito escassa sobre o controlo de poluição das águas, baseou-se fundamentalmente no princípio geral de que é proibido poluir. Este princípio simplista revelou-se inoperante, remetendo os órgãos responsáveis pela sua aplicação para uma aceitação irremediável de situações de difícil solução. As entidades com responsabilidade na gestão da água foram confrontadas com situações consumadas de poluição, não dispondo de meios de intervenção adequados, quer à recuperação da qualidade dos meios hídricos degradados, quer à dissuasão dos focos poluidores”.

Em 1992, a RTP reporta haver 317 profissionais a nível nacional para mais de 800 cantões, com um salário médio de 80 a 90 mil escudos (em valores ajustados para 2024, seriam à volta de 900 euros). A problemática da falta de profissionais leva a Direção-Geral dos Serviços Hidráulicos a projetar mudanças como a definição do requisito do nono ano de escolaridade, formação profissional e uma redução do quadro nacional para 215 guarda-rios, que atuariam não por cantões mas por brigadas. No mesmo ano, os profissionais reúnem para elaborar uma contraproposta: queriam a revisão dos rendimentos e a valorização da carreira intocada há cem anos.
O processo culmina em 1995, com a unificação das carreiras de guarda-rios e vigilante da natureza – que já existia desde 1975 como corpo especializado na preservação do ambiente e conservação da natureza – e, em 1999, dá-se a unificação das carreiras de vigilante e de guarda da natureza, com as funções de “vigilância, fiscalização e monitorização relativas ao ambiente e recursos naturais, nomeadamente no âmbito do domínio hídrico, do património natural e da conservação da natureza”, segundo o decreto que a define, contando com poder de autuação e porte de arma. Luís Alves e José Francisco Cruz já se reformaram como vigilantes da natureza. Este decreto está em vigor há 26 anos e, atualmente, os profissionais pedem uma revisão urgente da carreira, nomeadamente no reforço de técnicos no terreno.
Luís Pinto mostra-nos uma carta que recebeu em 2002, o ano em que se reformou. Comunicam-lhe que os seus serviços como observador da Estação Hidrométrica já não seriam mais necessários, pois os equipamentos tinham sido digitalizados. Ao contrário da flexibilidade da sua função como guarda-rios, como observador, tinha de cumprir as medições como um relógio suíço. As medições eram semanais, sempre à mesma hora. Nunca falhou um sábado. Na mesma comunicação, assinada pelo diretor regional, o guarda-rios de 90 anos faz questão que leiamos o último parágrafo. “Reconhecendo-se a dedicação sempre demonstrada por V. Ex.ª ao longo do período em que colaborou nesta importante atividade de recolha de informação relativa aos recursos hídricos do nosso País, serve igualmente o presente para lhe testemunhar o devido reconhecimento oficial por esta colaboração”.

O evento representa bem a transição tecnológica que a virada de século trouxe ao mundo e evidencia o tendão de Aquiles dos mais importantes funcionários dos Serviços Hidráulicos: a parca aposta na formação. O seu conhecimento técnico e científico era puramente empírico, ganho pelo suor da exaustão das margens do cantão. Há um fosso de conhecimento entre os engenheiros chefes de lanço, que raramente vão ao terreno, e os guarda-rios, os braços operacionais, muitos que saíram da escola depois da quarta classe.
Luís Pinto recorda com carinho o “engenheiro” seu superior, sublinhando que das grandes alegrias do seu trajeto profissional era poder contactar com “pessoas competentes, com outra cultura, que nos ensinavam muito”. Para Luís Alves, o aparente handicap foi uma oportunidade de colaboração: “o guarda-rios teve sempre um objetivo de juntar-se com pessoas que sabiam mais do que ele. Nós não precisamos ser os melhores; precisamos de estar naquela charneira que faz andar as coisas”.
A profissão vai buscar o nome à ave que se encontra facilmente nas zonas ribeirinhas de Portugal. Habita estuários, pauis, lagoas e rios, alimentando-se de peixes e também de invertebrados e pequenos vertebrados. É por isso muito comum vê-la nas margens empoleirada, à espera de capturar uma presa. Consegue identificar a localização de um peixe a partir do ângulo de refração da água, e, por preferir águas límpidas, é considerada uma espécie bioindicadora – sinal do bom estado ecológico de um curso de água.

Com a ave em mente, Nuno Guilherme Cruz ensaia sobre como as memórias da profissão do pai inspiraram a sua. “As minhas primeiras viagens não foram de avião, comboio ou carro. Foram à volta da mesa da cozinha, guiadas pelas curvas de nível das cartas militares. Navegava entre linhas azuis de ribeiras e nomes de lugares que só existiam no papel. Ali, já treinava o olhar de geógrafo — no papel e, mais tarde, no terreno, muito embora tenha seguido outro(s) caminho(s). Hoje já atravessei mapas de 51 países. Mas nenhuma aventura supera seguir o curso de um rio ou ribeira apenas com uma carta militar e um lápis. Quando for grande, quero ser guarda-rios. Afinal, é uma profissão com nome de pássaro – e isso soa sempre a liberdade”.