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REPORTAGEM
 CAUSAS SOCIAIS 

A LUTA CONTRA O ASSÉDIO:

MOVIMENTOS ESTUDANTIS FAZEM FRENTE À “INÉRCIA” DAS INSTITUIÇÕES

 

Texto de Débora Cruz e Sofia Matos Silva
Edição de Débora Dias e Tiago Sigorelho
Ilustrações de Frederico Pompeu
Produção de Sara Fortes da Cunha
Comunicação de Carolina Esteves e Margarida Marques
Digital de Inês Roque

17.06.2024

Os núcleos, coletivos e movimentos estudantis têm vindo a ganhar maior expressão à medida que casos de assédio em instituições de ensino superior alcançam visibilidade mediática. Um ano depois dos casos do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra virem a público, cada vez mais estudantes recorrem a grupos académicos para apresentarem as suas denúncias: a informalidade, a transparência, a proximidade com a comunidade e a falta de atuação das universidades são apontadas como as principais causas. Universitárias entrevistadas pelo Gerador frisam que a adoção de medidas preventivas e o combate ao assédio não têm sido uma prioridade para as instituições, embora entre a própria comunidade estudantil também exista alguma desvalorização, o que dificulta a mobilização e a satisfação de reivindicações. Acresce que a maioria das queixas recebidas pelos coletivos é referente a casos ocorridos entre estudantes, nas quais as relações de poder em função da “senioridade” são apontadas como preponderantes.

Esta reportagem é a quarta da investigação Abuso de Poder no Ensino Superior, publicada no Gerador ao longo dos próximos meses.

Em novembro, divulgámos um formulário para obter relatos de pessoas que tivessem conhecimento, testemunhado ou sofrido algum tipo de comportamento abusivo em contexto académico. Em três meses, recebemos 83 respostas referentes a 22 instituições portuguesas, incluindo universidades, institutos politécnicos e escolas superiores não integradas. O Gerador entrou em contacto com 75 associações de estudantes de universidades e politécnicos portugueses com o objetivo de divulgar o questionário junto dos respetivos estudantes. Apenas duas responderam.

formulário ainda se encontra disponível online e pode ser preenchido de forma anónima.

“O assédio no meio académico dura há demasiado tempo e com a complacência da comunidade académica. Juntamo-nos para dizer basta. O assédio não tem lugar nas nossas universidades. Todes sabemos o que se passa nas nossas faculdades. Todes sabemos porque o assédio está institucionalizado; está sistematizado. E as nossas instituições calam – por todo o país. Nos últimos dois anos, têm-se sabido inúmeros casos de assédio moral e sexual de norte a sul do país. No entanto, o corpo estudantil sabe que os casos que saem e são divulgados pelas fontes mediáticas são residuais. Infelizmente, estes são apenas uma parte do problema.”

Estas palavras abrem o manifesto Academia Não Assedia, que, divulgado em outubro de 2023, marcou o lançamento público do Movimento Nacional Contra o Assédio na Academia. Nos parágrafos seguintes, são enumerados vários casos recentes de denúncias de situações de assédio que, apesar de mediáticos, não tiveram resposta que considerem satisfatória até ao momento. Depois da apresentação de várias propostas, com destaque para a criação de um gabinete independente, composto por membros externos às instituições, que preste apoio psicológico e jurídico às vítimas, os estudantes terminam com uma promessa: “Unimo-nos contra todas as formas de assédio nas instituições de ensino em Portugal. Que todas as instituições académicas saibam que não nos vamos calar e não nos podem parar. Não passarão.”

As denúncias feitas em relação ao Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, no início do ano passado, estão entre as causas que desencadearam a emergência deste movimento. Os casos conhecidos instigaram uma onda de solidariedade entre membros da academia a nível internacional, com o manifesto solidário Todas Sabemos a receber mais de 800 assinaturas em poucos dias. Porém, o caso do CES não provocou só a mobilização de investigadores e docentes: o combate ao assédio começou a ganhar novas formas entre os estudantes.

A UNIÃO CONTRA A “INÉRCIA POR PARTE DAS UNIVERSIDADES”

 

Raquel Oliveira, Sara Ferreira e Beatriz Coelho são três das estudantes a trabalhar nos bastidores do movimento Academia Não Assedia. Em entrevista por videochamada ao Gerador, explicam como nasceu o movimento. “Tudo surgiu com as queixas de Coimbra, e tudo surgiu no sentido de nos juntarmos todas”, conta Raquel Oliveira, acrescentando que a atenção dos media e as ações estudantis contra o assédio se têm concentrado demasiado em Lisboa. Com as novas denúncias a aparecer no CES, depois de anos de casos a surgir não só na capital, mas também no Minho, no Porto, em Aveiro e noutras universidades do país, sentiram a necessidade “de juntar vários coletivos, núcleos e associações que lutam por esta causa, e de criar um movimento, porque tinha muito mais impacto uma manifestação a nível nacional do que apenas local”.

“Neste momento, temos Braga, Porto, Coimbra e Lisboa. Pretendemos alargar mais – ainda estamos a ver logísticas e afins, mas é alargar a quanto mais pessoas conseguirmos”, avança Beatriz Coelho, enfatizando a importância de incluir as instituições do Interior do país. Em Lisboa, as entidades que já fazem parte do movimento são a HeForShe, o Movimento Contra o Assédio da Universidade de Lisboa, a Associação de Estudantes do ISPA (Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida), a União Feminista da ESELx (Escola Superior de Educação de Lisboa) e o Núcleo Feminista da FDUL (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa).

Em Coimbra, juntou-se a delegação da HeForShe, e no Minho o CEFUM (Coletivo Estudantil Feminista da Universidade do Minho), a HeForShe do Minho e o Núcleo Contra o Assédio da UMinho (Universidade do Minho). Já no Porto aderem a HeForShe do Porto e o Núcleo Contra o Assédio da ESE (Escola Superior de Educação do Porto), e a nível nacional a Rede 8 de Março. Destas, Raquel Oliveira é presidente do Núcleo Feminista da FDUL, Sara Ferreira é coordenadora da HeForShe do Minho e Beatriz Coelho pertence ao CEFUM.

No dia 7 de novembro, apenas com um mês de existência pública, saíram à rua numa manifestação nacional contra o assédio que conseguiu juntar estudantes em Lisboa, Coimbra e Braga (estando planeada também para o Porto, embora não tenha sido possível ser organizada a tempo). O trabalho ao nível de cada entidade e o esforço de aumentar a adesão ao movimento a nível nacional têm impedido a organização de uma ação conjunta num futuro próximo. Ainda assim, Raquel Oliveira aponta que considera importante criarem como complemento ao manifesto, “não necessariamente um caderno reivindicativo, mas uma espécie de documento com propostas para serem enviadas às várias reitorias” – apesar de as medidas já serem “reivindicadas pelos núcleos todos os dias, a essência destes coletivos e núcleos já pressupõe essa luta”.

EXCERTO DO MANIFESTO ACADEMIA NÃO ASSEDIA

“O assédio na academia é generalizado e prejudica todes es alunes. O assédio está presente nas salas de aula, em conferências, em reuniões, em festas, e em todos os espaços ligados ao espaço académico. É neste sentido que o movimento Academia Não Assedia exige uma academia segura e inclusiva, onde não exista espaço para o assédio sexual ou moral. Exigimos uma academia livre de todas as formas de intimidação e humilhação, na qual o foco seja a aprendizagem baseada em oportunidades equitativas. Exigimos o respeito de todes es membros da comunidade académica. Exigimos soluções eficazes, e chega de gabinetes a fingir!

A Academia Não Assedia propõe para todo o contexto académico:

1. Criação de um gabinete independente de apoio psicológico e jurídico à vítima para todas as universidades e composta por membros externos às faculdades que sejam formados nesta área, com instalações físicas;

2. Realização de um questionário institucional anónimo e dirigido a todes es estudantes e funcionários – docentes e não docentes – de recolha de testemunhos de assédio, com o objetivo de obter dados quantitativos, qualitativos e atualizados sobre os casos de assédio e\ou discriminatórios na academia;

3. Distribuição de informação sobre assédio e mecanismos de apoio a todo o corpo académico (docentes, discentes e não docentes), através de meios institucionais;

4. Criação de Códigos de Conduta e revisão dos já existentes no sentido de garantir uma efetiva resposta a casos de assédio em contexto institucional ou relacionado, e reformulação dos mesmos sempre que tal não se verifique;

5. Promoção de medidas sancionatórias eficientes para os agressores como a instauração de processos disciplinares e a suspensão ou expulsão dos mesmos da Universidade;

6. Garantir que as vítimas não são avaliadas por Professoras/es contra quem fizeram queixa;

7. Assegurar um real serviço psicológico a custo zero;

8. Ao Ministério do Ensino Superior, cabe assegurar ações de formação obrigatória a todo o corpo docente sobre pedagogia e assédio sexual e moral, bem como racismo, xenofobia ou orientação sexual (o que é, consequências e penalizações), incluindo uma formação sobre assédio em contexto laboral.”

“O nosso objetivo é mostrar que continuamos presentes, porque, mesmo depois das manifestações e concentrações, quase nada é mudado, e há vários fatores que contribuem para isso”, diz Beatriz Coelho, denunciando que as instituições recorrem a todo o tipo de desculpas, como a queda do governo de António Costa, para adiar dar resposta aos problemas. “Ninguém aqui diz que os projetos que algumas universidades estão a tentar criar não são complexos, só que também existe muita inércia, muita falta de vontade, e muitos papéis parados em secretárias durante meses e meses”, acusa, desenvolvendo que “o objetivo é, cada vez mais, obrigar as universidades a dar uma resposta, a ter os códigos de conduta, a que os projetos contra o assédio saiam do papel – porque a maior parte deles servem apenas para dizer que existem, mas que a concretização é muito longa. Sabemos que são coisas delicadas, mas não demoram assim tanto tempo. Existe é inércia por parte das universidades”.

Sara Ferreira acrescenta que “o que se pretende com o movimento é que isto não seja só uma moda, que realmente se passe para ações concretas”. “Em 2021, houve muita cobertura sobre isto tudo, houve uma manifestação enorme, mas depois o assunto foi morrendo, e é mesmo importante trazermos à baila de novo, para que seja sempre um assunto mencionado, que seja sempre uma constante”, defende. A colega da UMinho reforça que é preciso relembrar “o próprio facto das universidades – temos os exemplos de Coimbra, do Minho, do Porto e de Lisboa – terem casos que foram noticiados, e os ditos agressores não foram despedidos, não foram demitidos, nada, foram apenas recolocados, e continuam a estar em contacto com estudantes”. Beatriz Coelho insiste que estas situações são “graves” e revelam a inação das instituições e dirigentes. “No fundo, foi só para tapar o sol com a peneira, deu para perceber isso perfeitamente. Foi só para poderem dizer que fizeram algo. Não, não fizeram”, remata a estudante.

Tanto Sara como Beatriz aludem a vários problemas relatados pelos estudantes da Universidade do Minho, em particular relativos à falta de segurança que sentem em certos espaços do campus, com falta de iluminação e de câmaras. Para Beatriz, “é impossível a universidade não saber em dez, quinze anos os problemas que existem”. “Fora os casos que estão escondidos”, acrescenta a estudante, referindo relatos que lhes chegam um pouco de todo o país. “Sabemos perfeitamente que é complicado esses casos virem a público, são casos delicados, nunca ninguém nega isso, mas existe essa falta de vontade por parte das universidades também. Enquanto der para esconder tudo debaixo do tapete, para eles está perfeito.”

Raquel Oliveira expõe que, “infelizmente, a situação é semelhante em todos os pontos do país”, apontando para “o facto de existir uma inércia gigante” por parte das instituições. Focando-se na situação da Universidade de Lisboa em geral, conta que a reitoria remete sempre os estudantes para as próprias escolas, usando a existência de “um regime de grande autonomia” para justificar os reencaminhamentos. No entanto, “a realidade é que, de todas as escolas, quase nenhuma efetivamente tem um mecanismo de denúncias, e as que têm, isso nunca foi divulgado aos estudantes, logo, os estudantes não fazem a menor ideia de que aquilo existe”. Para além disso, por vezes, “as denúncias vão ter ao e-mail do diretor da faculdade”, acrescenta Raquel, o que compromete a independência dos canais.

A CULPA NÃO ESTÁ NA VÍTIMA

Beatriz Coelho (Academia Não Assedia): “Enquanto a própria sociedade tiver esta mentalidade de que a culpa está mais na vítima do que no agressor, as coisas não vão mudar, em ponto nenhum. Se sempre que existe uma denúncia, seja de assédio, seja de qualquer outro crime relacionado com a integridade física, a nível sexual e tudo mais, continuarem a perguntar à vítima o que é que fez de errado… A vítima não fez nada, porque nada vai justificar um comportamento desse género. Enquanto não começarem a fazer perguntas imparciais e não acusatórias, nada vai mudar.”

O movimento Academia Não Assedia também reivindica e luta pela prevenção. “Nem é só ter mecanismos já quando há queixa, mas também fazer uma ação preventiva. Onde é que estão as formações pedagógicas? Onde é que estão os códigos de conduta? Muitas vezes não existem, e quando existem, são mal feitos”, questiona a estudante da FDUL. Os próprios inquéritos pedagógicos, diz, não incluem nenhuma caixa de resposta aberta, nem os seus resultados são comunicados aos alunos. “Andamos todos sempre aqui num impasse: estamos a fazer isto, mas será que vai ter algum tipo de resultado? Porque a realidade é que os professores que sabemos que assediam continuam lá. Portanto, até que ponto é que também as faculdades trabalham numa ação preventiva?”

Uma estratégia de divulgação e sensibilização faz parte desta ação preventiva, algo que as instituições, segundo as integrantes do movimento, não estão a ter em conta. É preciso fazer “com que esta informação toda realmente chegue aos estudantes”, acredita Sara Ferreira. “Se há mecanismos, os estudantes têm de ter noção disso”, e, na Universidade do Minho, isso não acontece, diz.

Raquel Oliveira admite que apenas ao reunir com a reitoria da Universidade de Lisboa ficou a saber da existência de um canal de denúncias. “Se existe um canal de denúncias, porque é que os estudantes não sabem?”, continua. “Porque é que enviam e-mails sempre que há algum evento ou quando alguma coisa importante acontece, mas não são capazes de enviar um e-mail a avisar de que existe este canal? E a resposta que nos deram foi que para isso contam connosco, o que é ridículo. É obrigatório que todas as universidades tenham este canal de denúncias através de uma diretiva da União Europeia, e a UL decidiu acrescentar lá a parte relativa ao assédio. Ou seja, no caso de existir algum caso grave, podem dizer que existia um canal.” O mesmo se aplica, aponta Beatriz Coelho, aos gabinetes de apoio psicológico, os quais “a maior parte das pessoas não sabe da existência”.

Para além desta falta de informação – ou talvez precisamente por esta falta de informação –, “ainda existe um clima de medo”. “Acho que isso é indiscutível”, argumenta Raquel Oliveira, “porque os estudantes continuam com medo de fazer queixas”. Enquanto não existirem mecanismos externos às instituições, verdadeiramente independentes, este medo vai continuar a existir, alerta a estudante da FDUL. “Não nos podemos esquecer, atenção, de que existe assédio entre discentes, especialmente em ambientes de festas académicas, ambientes que são mais propícios a que os estudantes, infelizmente, assediem os próprios colegas. No entanto, também não nos podemos esquecer de que existe uma relação de poder que está na base deste assédio de docentes para discentes.”

Esta relação de poder cria as condições ideais tanto para que o assédio exista como para o abafar. No momento da queixa, os estudantes têm receio de represálias, tanto ainda em contexto universitário, como, posteriormente, em contexto profissional; a reduzida dimensão de certas áreas faz com que o eventual confronto entre agressores e denunciantes aconteça “mais tarde ou mais cedo”. Também existe preocupação a nível económico, alerta Raquel: não há “igualdade de armas”, dado que, em muitos casos, os estudantes não têm fundos para suportar “queixas para o Ministério Público e para ação judicial”. “Há logo aqui a parte económica, que é um elemento muito importante e que às vezes inibe os estudantes de fazer queixa”, acrescenta. Beatriz Coelho destaca ainda a importância dos outros docentes: “A maior parte dos professores universitários encobre-se e protege-se uns aos outros. Os catedráticos, nomeadamente, têm uma imunidade à volta deles de tal maneira que não são punidos por nada. Muitos sabem, durante carradas de anos, que existem casos e casos e casos, e mesmo na hora em que é feita uma queixa, não tentam intervir em benefício do discente. Calam-se e ficam afastados.”

“Também há aquela frase típica: ‘Não vou fazer queixa porque isto não vai dar em nada.’ Portanto, até existirem garantias de imparcialidade, de independência, de apoios psicológicos e de apoios jurídicos aos estudantes, acho que este clima não vai ser alterado tão cedo”, conclui Raquel Oliveira.

EM QUE PODEM OS MEDIA MELHORAR?

Beatriz Coelho (Academia Não Assedia): “Muitas vezes, as notícias são só clickbait, a lógica de quanto mais pessoas virem, melhor. Porque no título da notícia está uma coisa e no corpo da notícia está outra. E depois vai-se a ver, e 90% das pessoas só leem o título da notícia. Não abre a notícia, não vai perceber o que é que realmente aconteceu. E é também preciso melhorar um bocado esse aspeto, explicar as coisas, usar os termos corretos, e, essencialmente, não demonizar as vítimas. Independentemente do que uma vítima poderia sequer ter feito, ninguém merece isto. E é preciso os media colaborarem mais; durante duas semanas, aquilo vai ser notícia, mas se as coisas fossem acompanhadas, talvez as pessoas também tivessem uma noção do que é que é feito, o que é que não é feito, e isso também poderia ajudar a mudar um bocado a mentalidade das pessoas, e a mudar a perceção que às vezes têm sobre o assédio.”

GRUPOS FEMINISTAS À FRENTE DA LUTA CONTRA O ASSÉDIO

 

O FEMfdup é o Coletivo Feminista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Fundado em 2018, foi lançada dois anos depois a recolha de testemunhos, através de um formulário, de denúncia anónima de situações de discriminação e assédio. Mediante autorização de cada pessoa, excertos dos testemunhos são depois divulgados periodicamente através da conta de Instagram do Coletivo. Esta partilha pública, para além de ter ajudado a divulgar de uma forma mais ampla o trabalho do grupo, expõe um retrato amargo do meio académico nos dias de hoje.

A nível interno, o FEMfdup possui uma série de departamentos, bem com cargos que dizem existir apenas para fins de representação do coletivo junto a entidades externas, mas as estudantes estão “todas em pé de igualdade”, garante Beatriz Morgado. Dentro desta lógica, a estudante é coordenadora de eventos e membro da direção, sendo que a presidência e a vice-presidência são atualmente assumidas por Leonor Martins e Madalena Almeida, respetivamente. Em entrevista ao Gerador por videochamada, Beatriz Morgado começa por denunciar as incongruências do mundo universitário.

“Todos os estudantes no século XXI (num ambiente semiprogressista) conseguem concordar que o assédio, sexual ou moral, é uma realidade, que afeta o dia a dia dos estudantes na academia, e que é uma atitude reprovável. Agora, existe uma grande nuvem de fumo em torno do assédio sexual no ensino superior. Ou seja, ainda que toda a gente concorde que há um problema, não existe concordância entre esta noção e o número de propostas, ações e protocolos implementados para responder a este flagelo. Todos concordam que existem inúmeras situações de violência sexual, por exemplo, na Queima das Fitas, mas depois as entidades organizadoras, que são compostas por estudantes, não veem isso como um perigo real que necessita de respostas e protocolos especializados”, aponta.

O caso do Ponto Lilás já foi abordado na segunda parte desta série. Um projeto conjunto de três organizações – a UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta), a Associação Plano i e a Associação Kosmicare –, o Ponto Lilás passou a estar na Queima das Fitas do Porto em 2019. Num espaço que procura ser um “porto seguro” em eventos de grande escala, técnicas especializadas estão disponíveis para prestar todo o tipo de apoio no “pré” e no “pós” situações de violência sexual, como esclarece Beatriz Morgado. Atualmente, a Queima das Fitas do Porto tem no seu recinto o apelidado “Abrigo(te)”, o espaço da Comissão de Prevenção de Comportamentos de Risco (PCR). Esta comissão, composta maioritariamente por estudantes voluntários, atua em três áreas: “medidas preventivas e atividades direcionadas a comportamentos de violência de género, violência sexual e discriminação de grupos vulneráveis”; “redução de comportamentos de risco, nomeadamente no consumo de álcool e outras substâncias psicoativas”; “intervenção em crise, nomeadamente na prevenção e mitigação de situações de vulnerabilidade psicológica e/ou emocional”.

Para além do Ponto Lilás ter desaparecido e o seu sucessor não ter técnicas especializadas especificamente em prestar apoio a vítimas de violências sexuais (o que constitui um enorme retrocesso, na opinião do Coletivo), há outra medida que o FEMfdup tem tentado ver concretizada, mas, até ao momento, em vão. Leonor Martins contextualiza que um autocarro da Queima “é completamente uma terra sem lei”, o que as faz lutar por, “pelo menos, um autocarro por noite que faça transporte apenas de mulheres, para garantir que as mulheres que, por exemplo, vão sozinhas, possam sentir-se um pouco mais seguras”. Dado isto, Beatriz aponta o dedo às associações de estudantes e à Federação Académica do Porto, pedindo coerência e que se regresse às ajudas especializadas e às ações concretas.

O Gerador entrou em contacto com a Federação Académica do Porto no dia 2 de maio, solicitando uma entrevista. Até à data de fecho desta reportagem, não obtivemos qualquer resposta, mas os canais de comunicação mantêm-se abertos.

 

As alunas da FDUP insistem neste ponto porque as suas reivindicações prioritárias relacionam-se com o assédio – principalmente o sexual – entre estudantes. “Este abuso de poder não ocorre só entre docente e discente, como muitas vezes vemos. Ocorre também de colega para colega. Isto é uma realidade muito presente”, diz Beatriz. Lembra os casos de assédio na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e o debate que geraram no mundo estudantil de Direito, e compara-os com a situação da FDUP, onde “não existe um problema dessa proporção com docentes”. “Não é a nossa maior preocupação. No nosso meio, o assédio ocorre mais de estudante para estudante, em ambientes de academismo, Queima das Fitas, festas, organizações de estudantes, grupos, espaços onde há um ambiente muito fértil para esse tipo de situações surgirem entre colegas, o que é muito perigoso, além de que as consequências são basicamente nulas.”

Leonor Martins acrescenta que estas situações têm acontecido “mesmo em ambientes que nós poderíamos considerar ligeiramente mais seguros”, como festas mais pequenas de amigos. Outra coisa que têm “notado cada vez mais, infelizmente, mas como seria de esperar, é a violência com base em imagens e vídeos, que tem sido cada vez mais preponderante”, a par das “situações já mais comuns de comentários de teor sexual e machista (isso, infelizmente, é números e números de queixas repetidas)”.

Apesar de não conseguir partilhar números exatos, Beatriz aponta para uma estimativa de 80% das denúncias que recebem através dos Testemunhos serem relativas a situações entre estudantes (em oposição a situações que envolvam docentes). “São a maioria, mas uma maioria pesada. É bastante grave quando temos essas dinâmicas de poder a serem tão preponderantes entre colegas que supostamente estariam num nível de igualdade. Mesmo entre colegas que supostamente são de níveis hierárquicos exatamente iguais, existe muito este tipo de dinâmica: ‘eu sou mais velho, portanto, tu fazes o que eu digo’. Ou seja, este tipo de ambiente em que um estudante, por razões de senioridade, faz o que quiser e diz o que quiser e pode, apenas porque nasceu um ano ou dois mais cedo, é um ambiente muito fértil para acontecer outro tipo de abusos, já que, se nós permitimos abuso entre colegas que supostamente são iguais, se calhar permitimos coisas mais graves, e há um ambiente realmente muito propício a assédio entre colegas”, reflete.

OS TESTEMUNHOS ANÓNIMOS DO FEMFDUP

Leonor Martins: “Nós conseguimos ter uma noção mais perto da verdade porque temos uma espécie de protocolo, que são os Testemunhos Anónimos, em que qualquer pessoa pode descrever situações de assédio, violência, discriminação de género, que se passem dentro da academia. Então, isto tem-nos permitido ter uma noção da diversidade de queixas que têm existido entre os estudantes.”

Madalena Almeida: “Sempre tivemos testemunhos variados. Inclusive, temos testemunhos que não estão diretamente relacionados com a faculdade [situações fora do espaço da FDUP, mas que envolvem alunos da faculdade]. Os testemunhos servem, acima de tudo, para os estudantes sentirem que têm um espaço para desabafar. Se quiserem dizer nomes, podem dizer nomes. Se não quiserem dizer nomes, não têm de dizer nomes. Se quiserem mandar uma mensagem privada a dizer, ‘quero ajuda, falem comigo’, podem fazê-lo. Portanto, mais do que qualquer outra coisa, a ideia dos testemunhos é ser um espaço de sororidade, tal como o Coletivo em si. Nos últimos tempos, o que tem acontecido é que as estudantes têm vindo a aperceber-se de que determinados docentes atribuíam uma conotação negativa aos testemunhos, nomeadamente porque houve testemunhos feitos relativos a docentes. As situações não têm parado de acontecer, ou porque as vemos a acontecer ou porque as sabemos por outros métodos, mas eu acho que os docentes da faculdade têm dado medo às alunas de continuar a enviar testemunhos. Nós continuamos a recebê-los, mas, sem dúvida, não com tanta frequência como antigamente. Gostava que isso fosse porque têm reduzido, mas acho que é por medo. Porque nós costumamos publicar os testemunhos, no formulário temos uma pergunta, ‘permites que isto seja publicado anonimamente?’. E acho que algumas pessoas, ou por um certo pormenor, ou porque já ouviram um burburinho sobre aquela situação, conseguem deduzir sobre quem é que as questões são. E aí se vê a revitimização da vítima, ou o quão desprotegida ela está.”

Leonor Martins: “Os testemunhos são uma das coisas que mais caracterizam o FEM, e há muitas piadas, não necessariamente negativas, só do género, ‘os testemunhos do FEM devem estar quase a sair, vai haver muita gente que está com medo de aparecer’. Coisas assim. São conhecidos no seio da faculdade, e obviamente que, se são conhecidos entre os alunos, chegam ao conhecimento dos docentes. Já não é a primeira vez que em contexto de sala de aula esta questão surge.”

Beatriz Morgado: “Já ouvi mais do que uma vez, é algo recorrente, estudantes referirem-se aos testemunhos do FEM – e ao FEM em geral – como uma caça às bruxas. Isto não é brincar. Estamos em 2024, e há ainda colegas homens (porque são maioritariamente homens que têm este tipo de opinião, apesar de muitas mulheres também não verem o FEM com bons olhos) que acham que nós andamos a inventar coisas sobre as pessoas, que somos nós que escrevemos os testemunhos, dizem: ‘Não posso fazer isto senão o FEM ainda vem atrás de mim e ainda apareço nos testemunhos.’ Isto é uma piadinha que as pessoas tendem a fazer, e que em certos contextos até pode ser a brincar, mas isto revela um sentimento geral que existe. Nós sabemos que o FEM nem sempre é bem visto, porque nós agimos na comunidade. Nós não somos um grupo académico só para fazermos as nossas palestras e os nossos eventos, nós não estamos lá só numa perspetiva pedagógica e para ser muito bonito, mas estamos lá para agir. E, a título complementar, fazemos tudo o resto, porque também é importante aproximar as pessoas do feminismo e dessas temáticas. Mas nós estamos na faculdade para agir. E nós agimos. E nós estamos com as mulheres, nós estamos com as estudantes. E recebemos as suas queixas. E não invalidamos nenhuma vítima. E damos-lhes sempre a voz e a plataforma que precisam, se a quiserem.”

Apesar de tudo, as estudantes sentem que não têm sido prejudicadas academicamente por pertencerem ao coletivo, embora admitam que tal possa ter acontecido às jovens que vieram antes, que apelidam de ‘revolucionárias’. “Acho que mais rapidamente ficamos manchadas por sermos parte do FEM por outros colegas do que pelos docentes”, expõe Madalena Almeida, com a exceção de “docentes já envolvidos em polêmicas FEM que, obviamente, têm o FEM manchado”.

Num tom mais positivo, já que “nem tudo é mau”, Beatriz Morgado conta que há “situações em que pessoas vêm de propósito ter com alguém no FEMfdup (ou contactam as nossas redes ou vêm mesmo falar connosco) porque sabem quem nós somos e acham que nós as podemos ajudar de alguma forma”. “Isto não só em questões de violência sexual ou de assédio ou de importunação”, acrescenta, “mas mesmo outros problemas da vida das mulheres, como questões de maternidade jovem ou aconselhamento de outra espécie. É mesmo bom sentir que as estudantes confiam em nós, que vêm ter connosco quando precisam de alguma coisa, e que sentem que o FEMfdup é esse lugar seguro”, confidencia.

A maior atenção dada a casos de assédio nos últimos anos tem contribuído para melhorar a vida dos estudantes? A quantidade e diversidade de testemunhos que o FEMfdup vai recebendo contrasta com a posição oficial de muitas universidades, que caraterizam os casos de assédio sexual e de assédio moral como residuais. O facto de não estarem “ligadas a nenhum órgão da faculdade nem à associação de estudantes”, lembra Madalena, estará, sem dúvida, relacionado com a maior abertura a prestar testemunho por parte das estudantes. Por outro lado, “isto prova que o silêncio não deve ser valorado de uma forma necessariamente boa”, salienta Beatriz.

Inclusive, há quem atualmente defenda que “o feminismo já não é necessário, que já não acontece nada de mal às mulheres no dia a dia”, aponta Madalena Almeida. “Gostaríamos muito de poder concordar que as coisas estão melhores, que as vítimas de assédio e de violência de outros tipos na academia podem contar com serem ouvidas e podem contar com serem tomadas as diligências necessárias para que, efetivamente, os culpados sejam responsabilizados. E gostaríamos muito de dizer que, garantidamente, as vítimas podem contar com apoio psicológico gratuito. Mas não é bem assim, porque a realidade é que as vítimas de assédio e de outros abusos no ensino superior sofrem de uma grande vitimização secundária por diversos fatores”, contrapõe.

Um dos maiores fatores, na opinião da estudante, é “o facto de os protocolos não estarem preparados para lidar com as especificidades deste tipo de crimes”. “Estes casos ferem o íntimo de uma vítima, há uma muito maior exposição da vítima quando presta o seu testemunho, e, para além disso, a vítima ainda tem de suportar um processo que é prolongado, com falhas e que exige mais e mais da vítima, e tem de lidar com o facto de não haver consequências efetivas e severas para quem assedia dentro da academia.” A estudante diz que o que têm visto nos últimos anos é que, quando são aplicadas sanções a um agressor, estas são apenas temporárias ou relativas apenas a uma instituição, “nunca sendo efetivamente restringido, e nunca permitindo dar uma sensação de segurança real às vítimas (às que já o são e às que ainda poderão vir a ser)”.

Madalena Almeida concede que a opinião pública tem mudado ligeiramente, que têm sido anunciadas algumas medidas, e que há mais preocupação; porém, “convém termos noção de que, ainda assim, estas medidas não são suficientes, e muitas vezes são mal executadas e não apresentam verdadeiras situações de segurança para as eventuais vítimas”. A confusão em torno da Queima das Fitas é referida uma vez mais pelas estudantes, embora lembrem que não é algo exclusivo ao evento do Porto, mas sim algo que se repete por festas académicas por todo o país. Beatriz Morgado diz que a Federação Académica “não adora a ideia de as mulheres não adorarem os nomes degradantes que existem nas barracas”, bem como “as práticas absolutamente nojentas que são perpetuadas nas barracas”, acrescentando ainda as ocorrências do crime de contaminação intencional de bebidas e a presença de uma carrinha móvel de testes a infeções sexualmente transmissíveis que, acredita, põe a maioria das mulheres instintivamente em “estado de alerta” por as associarem a relações sexuais não consentidas.

Em 2019, vídeos destas práticas foram espalhados pelas redes sociais de tal forma que chegaram à comunicação social e deram aso a polémica. Como refere Beatriz, as próprias barracas de bebidas presentes neste tipo de eventos, criadas e geridas por estudantes das mais diversas áreas e instituições, têm muitas vezes nomes alusivos a atos sexuais e que, em certos casos, podem promover o abuso de corpos femininos, bem como a decoração escolhida para os espaços. Já as práticas consistem maioritariamente em propostas de ‘desafios’ de cariz sexual em troca de bebidas grátis. Com a pressão da opinião pública, a FAP encerrou barracas a meio da Semana Académica desse ano e obrigou os responsáveis por cada um dos estabelecimentos a apagar os vídeos das redes sociais. Já as instituições universitárias preferem manter-se à parte, referindo que não estão envolvidas na organização dos eventos e que as situações se passam fora dos campus.

“É da publicidade negativa que eles tentam fugir a sete pés. É a mesma razão pela qual se recusam a dar-nos pelo menos a minivitória dos autocarros, porque isso seria admitir que a Queima das Fitas é literalmente o ambiente perfeito para a propagação de todo o tipo de violência contra as mulheres”, incide Leonor Martins sobre a FAP. “A verdade é que, num meio como o academismo, em que se pode propiciar uma espécie de irmandade que se une pelo excesso e pelo desrespeito pelas mulheres e o seu consentimento, estas situações tendem a acontecer cada vez mais, e não há propriamente uma resposta institucional direta para ajudar estas vítimas.”

A estudante reflete sobre a ironia de até no processo penal ser possível uma vítima nunca dar a cara publicamente, mas “num meio tão pequeno como uma faculdade isto não ser possível”. Neste sentido, Madalena Almeida acredita que “é absolutamente essencial todas as faculdades terem este tipo de caixa de denúncias, um porto seguro em que um estudante possa dizer: ‘hoje aconteceu-me isto’”. Acrescenta ainda que é preciso conseguir assegurar “a confiança nos processos”. Tanto a nível de processos disciplinares como de processos penais, “é essencial que, caso haja um caso de violência, ou um caso de qualquer outra coisa que deixe uma rapariga ou um rapaz desconfortável, garantir-se um processo coeso, de proteção da vítima, e que não seja abusivo”. Isto pode ser assegurado com protocolos entre as universidades e a Ordem dos Advogados ou sociedades de advogados, propõe Beatriz Morgado, tal como foi feito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

“Não deveria ser só quando rebenta a bolha [que se pensa em soluções]. Todas as vítimas, em qualquer tipo de instituição, deveriam ter direito a estes protocolos assinados com a faculdade. É uma faculdade que tem a seriedade institucional para fazer coisas dessas; nós tentamos o nosso melhor, mas se as pessoas que realmente mandam nisto, digamos assim, não colaboram, é completamente impossível isso ser criado. E precisa de ser criado o mais rápido possível, e tudo gratuito, obviamente, pro bono”, conclui. Leonor Martins deixa só um aparte, ironizando que, “se são medidas que deveriam ser tomadas nas faculdades, isto levar-nos-ia a pensar que quem deveria tomar as medidas são as faculdades”.

Na instituição homónima em Lisboa, o Núcleo Feminista nasceu em 2021. Apenas uns meses depois de terem iniciado trabalhos, as estudantes já estavam a enviar propostas de medidas ao conselho pedagógico e à direção da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, propostas essas que têm sido atualizadas e reenviadas todos os anos. Em novembro de 2022, altura de grande atenção mediática em torno da FDUL e das práticas de assédio que alegadamente seriam recorrentes na instituição, o grupo desenvolveu um caderno de medidas de combate e prevenção ao assédio bastante completo.

“PROPOSTA DE MEDIDAS DE COMBATE E PREVENÇÃO AO ASSÉDIO NA UNIVERSIDADE DE LISBOA DO NÚCLEO FEMINISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

1. Criação de uma Comissão contra o assédio centralizada na Universidade de Lisboa. O objetivo da criação desta comissão passará pelo impedimento dos casos de assédio serem reprimidos pelas Faculdades para manterem o bom nome e a honra das mesmas e dos seus professores, e pela existência de uma imparcialidade durante todo o processo.

a) A maioria dos membros da Comissão deverá ser externa à UL para que a mesma seja o mais imparcial possível na averiguação e tratamento do processo.

b) A Comissão também deverá ser composta por técnicas/os de apoio à vítima, Psicólogas/os, Advogadas/os, Professoras/es, Estudantes e de preferência com a/o Provedor/a da/o estudante. É primordial que todas as pessoas envolvidas na Comissão tenham a formação devida para lidar com as vítimas e com as queixas.

c) A/O Professor/a que esteja integrada/o na comissão não deve participar na averiguação da queixa nem no acompanhamento da mesma, caso a vítima seja da sua Faculdade. Esta é uma medida que garante a imparcialidade e a proteção da vítima.

d) É fundamental que exista apenas e somente uma estrutura para combater e receber queixas de assédio, de forma que não exista uma revitimização. Assim, dentro da estrutura, devem estar técnicas/os de apoio à vítima, psicólogas/os, advogadas/os, professoras/es e estudantes. É importante que todas as pessoas envolvidas na comissão tenham algum tipo de formação para lidar com as vítimas de forma a não existir uma revitimização nem a um agravamento do trauma.

e) As/Os psicólogas/os devem ter uma especialização nesta área para avaliar a situação de risco psicológico e fazer o acompanhamento apropriado à vítima.

f) As/Os advogadas/os devem ter experiência nas áreas do Direito Penal e do Direito do Trabalho, pois estes casos ocorrem em contexto laboral. Deve-se, ainda, dar preferência a quem tenha formação académica ou experiência profissional na violência de género, visto que estamos perante um problema que afeta maioritariamente mulheres devido à sociedade patriarcal em que estamos inseridas/os. Será conveniente ter-se alguma sensibilidade e formação para compreender este problema num todo. Inicialmente, o apoio jurídico deve informar a vítima acerca do crime em questão, dos seus direitos e das etapas do processo judicial. Caso a vítima queira prosseguir com a queixa para os meios adequados (Ministério Público e/ou tribunais), esta/e deve auxiliar a vítima ou elaborar os requerimentos e peças processuais necessários.

g) O anonimato da vítima deve ser garantido de forma que esta possa ponderar as diversas opções sobre a tramitação do processo nos termos da lei, evitando a repercussão e retaliações que a mesma pode ter.

h) Esta comissão, devido à Provedora do Estudante, deve emitir uma recomendação às Direções das Faculdades sobre as sanções propostas em relação aos casos averiguados.

i) Esta estrutura deve ter instalações físicas na Universidade de Lisboa, mas nunca em nenhuma das Faculdades, de forma a evitar quaisquer constrangimentos à vítima.

2. Promoção e efetivação de medidas sancionatórias – como instauração de processos disciplinares – para os docentes que assediaram discentes, como a suspensão ou a expulsão dos mesmos da Universidade, nos termos da lei, visto que existe um sentimento de impunidade dentro da instituição em relação a casos de assédio, fazendo com que as vítimas não apresentem queixas.

3. Deve ainda ser realizada, por parte dos docentes que foram alvo de queixa devido a casos de assédio, uma formação sobre assédio moral e sexual em contexto laboral, dada por uma associação/instituição externa à UL.

4. As vítimas não podem, em momento algum, (seja em avaliação contínua, exames e provas orais) ser avaliadas por Professoras/es contra quem fizeram queixa, nem pelas/os suas/seus colegas da disciplina em questão. A avaliação deve ser assegurada por outro docente da Faculdade ou por uma comissão criada para o efeito.

5. Possibilidade da mudança de turma e subturma caso a vítima assim o pretenda, sendo que a avaliação contínua da mesma deve ser assegurada.

6. Incentivar a elaboração de código de boa conduta e um código de boas práticas nas Faculdades, elaborados por associações e instituições como a APAV ou a UMAR, tendo em conta o já existente código da Universidade de Lisboa.

7. Formação sobre as boas práticas pedagógicas e boas condutas para com alunas/os entre docentes e funcionários. Deverão ser abordados temas como o assédio (tanto moral como sexual), a discriminação (racismo, xenofobia, orientação sexual, entre outros), a igualdade de género e a inclusão. Todas as novas contratações devem fazer esta formação.”

Atualmente, o Núcleo Feminista da FDUL tem vários departamentos e algumas dezenas de estudantes. Raquel Oliveira, estudante fundadora do Academia Não Assedia e atual presidente do Núcleo, conta em entrevista ao Gerador por chamada telefónica que o Gabinete de Apoio à Vítima criado em 2022 “está em stand-by, porque os contratos que havia com o psicólogo e com o advogado já não estão em vigor”. Com as mudanças recentes na direção da instituição, as novas linhas estratégicas de ação são três: “A construção de um código de boas práticas e de boas condutas, que já tinha sido prometido pela anterior direção, mas que não tinha sido feito”, “a alteração do atual regulamento de queixas sobre assédio”, e “a reconstrução do GAV e construção de uma comissão que seja independente à faculdade para analisar possíveis casos de assédio”.

Estas três prioridades estão atualmente nas mãos de uma comissão independente, da qual Raquel também faz parte. De momento, “das queixas que até agora foram feitas e que tiveram repercussões, temos um feedback negativo; o caso que quase toda a gente sabe, em que foi um conjunto de alunas que se juntou e fez queixa de assédio sexual, a queixa culminou apenas num pedido de desculpa por parte do professor às alunas”. Tendo isto em mente, bem como os números não muito elevados de queixas (mas quase todas relativas a assédio moral e a situações com docentes), a estudante acredita que a maioria das pessoas “nem sequer chega a fazer queixa porque tem medo, das duas uma, que vá ser indiferente, ou que depois sofra repercussões mais tarde”.

Quando um estudante se dirige ao núcleo, a primeira linha de atuação, conta a estudante, é relembrar a existência de duas entidades essenciais: a APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), que presta aconselhamento jurídico e psicológico, e a polícia. Se a pessoa se sentir confortável, a ideia é que, no futuro, possa recorrer aos serviços do GAV para aconselhamento jurídico e psicológico, e reportar a situação à comissão independente para se avançar para eventuais consequências disciplinares. Tal ainda não é possível, no entanto, dado o GAV não estar a funcionar de forma plena e o único canal de denúncias ir parar à caixa de correio do diretor, como Raquel Oliveira já referiu. “Isto é o que nós efetivamente queremos ver feito, para que os alunos comecem a ter confiança nos mecanismos.”

Recentemente, o núcleo desenvolveu dois inquéritos anónimos sobre assédio e discriminação na FDUL, e os relatórios de ambos podem ser consultados online. “Este inquérito revela-nos uma realidade preocupante onde o assédio na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa ainda está muito enraizado”, escrevem. “40,9% das pessoas inquiridas afirmaram já ter sido vítima de assédio moral” e “10,8% das pessoas inquiridas afirmaram já ter sido vítima de assédio sexual na FDUL”. “Estes dados são alarmantes e demonstram que o ambiente que se vive na FDUL é um ambiente de medo e toxicidade, afetando a prestação académica e a saúde mental das vítimas e de quem testemunha estas ações. O ambiente da FDUL tem de mudar, necessitamos de construir um espaço de aprendizagem, de ética e liberdade, visto que segundo os dados recolhidos 71 das 93 pessoas inquiridas perceciona que a FDUL tem um ambiente propício a criar situações de assédio”, concluem.

OS NOVOS NÚCLEOS CONTRA O ASSÉDIO

 

Tinha o ano de 2022 acabado de começar quando cinco estudantes da Universidade de Lisboa, inspiradas por uma manifestação recentemente organizada na Universidade do Minho contra o assédio sexual, sentiram a necessidade de criar “um projeto focado no combate ao assédio sexual e moral na universidade, que visasse tanto relações de poder (por exemplo, entre professores e alunas), como relações entre pares (entre estudantes, ou entre es própries docentes)”. Nasceu assim o Movimento Contra o Assédio nas Universidades de Lisboa, explica Carolina Fernandes em entrevista por escrito ao Gerador.

“É de conhecimento geral o problema do assédio na universidade, que é abafado e contra o qual não existe um mecanismo coeso e forte liderado por estudantes.” Por isso, numa primeira fase, contactaram pessoas para se juntarem ao projeto; mais tarde, procuraram o apoio de outras organizações e associações de estudantes e jovens para a realização da manifestação contra o assédio, que juntou “cerca de 200 estudantes, maioritariamente mulheres”, junto à reitoria da Universidade de Lisboa a 7 de abril do mesmo ano. Carolina Fernandes acredita que “o caso mediático que saiu para a opinião pública três dias antes desta manifestação – um inquérito interno que revelou denúncias contra 10% do pessoal docente – esteve fortemente ligado à grande adesão des estudantes nesta manifestação”.

Inês Nowak, outra das estudantes do Movimento, comenta que a atenção mediática de 2022 em torno da FDUL levou “os alunos que durante o seu percurso de faculdade foram vítimas de assédio ou discriminação, ou que tinham colegas que sofreram isso” a sentirem “que tinham finalmente um espaço (mais) seguro para reivindicar e reagir contra o assédio”. No entanto, a sensação de que as coisas poderiam finalmente mudar foi “muito provisória” e “o sentimento de impunidade e desvalorização, acrescido da desconfiança nos mecanismos criados para solucionar este problema mantêm-se”. O movimento mantém aberto um formulário de partilha de testemunhos e denúncia de casos de assédio, e também está atualmente a recolher propostas para um caderno reivindicativo que tenciona apresentar às reitorias de Lisboa.

“Desde então, temos continuado a reunir internamente e a procurar interligar o movimento em Lisboa com outros locais do país”, continua Carolina. Assim nasceu o referido movimento nacional Academia Não Assedia, no âmbito do qual se realizaram as manifestações de 7 de novembro. “Devido à ausência de casos mediáticos nesta altura, não obtivemos uma participação tão forte des estudantes como tínhamos tido na manifestação do ano anterior”, lamenta a estudante. O posicionamento das pessoas, aliás, tem demonstrado alguma divergência. Por um lado, há “pessoas bastante ligadas à luta, que ativamente expressam o seu apoio e enfatizam a necessidade de continuar a levar a cabo este tipo de lutas a nível local e nacional”, incluindo “ex-alunes e mães de alunas”, aponta. Ainda assim, por outro lado, há quem afirme “não ser necessário levar a cabo este tipo de iniciativas”, com críticas de “uma juventude demasiado sensível e que não sabe lidar com partes consideradas infelizes, mas normais, na sociedade”.

AS ESTRATÉGIAS PARA PREVENIR O ASSÉDIO QUE TÊM SIDO ANUNCIADAS ESTÃO A SER EFICAZES?

Carolina Fernandes (Movimento Contra o Assédio nas Universidades de Lisboa): “As ações levadas a cabo pelas instituições são como pensos rápidos: servem para atenuar a pressão pública, mas as alterações necessárias nunca chegam a ser postas em prática. Medidas como a criação de departamentos ou gabinetes de apoio que não permitem a anonimização da pessoa que pretende fazer queixa, ou que têm espaço físico na própria instituição onde o assédio tem lugar, não são pontos seguros para es estudantes. O problema está enraizado numa cultura machista, misógina, racista e discriminatória, que procura enfraquecer as vítimas, de modo que a contestação não ganhe força; de modo que não haja uma força coletiva capaz de trazer as mudanças necessárias contra a sistematização e institucionalização do assédio. Aliás, sendo de conhecimento geral que existe assédio sexual e moral nas universidades – que ninguém se engane, as Universidades têm conhecimento disto, mas escolhem ignorar ou descredibilizar –, este tipo de ações de recolha de testemunhos e de reivindicações por parte des estudantes deviam ser levados a cabo pelas próprias instituições. A conversa deve ser feita entre as instituições (ou gabinetes independentes focados em casos de assédio) e o corpo estudantil unificado, com o intuito real de realizar alterações para que as universidades sejam um local seguro para todes es estudantes. As instituições não podem nem devem ter receio de levar a cabo inquéritos e investigações, e de eventualmente despedir professores assediadores. As universidades são para es estudantes; não para fortalecer o ego de pessoas que se acham intocáveis e impunes.”

Uns meses depois do Movimento Contra o Assédio ter sido criado em Lisboa, surgiu o Núcleo Contra o Assédio da Escola Superior de Educação do Porto. Patrícia Agostinho, uma das fundadoras, explica ao Gerador que a ideia surgiu “na sequência da realização de um trabalho de faculdade, em que foi feito um inquérito à comunidade estudantil sobre o assédio sexual no ensino superior, e esse questionário evidenciou que havia muito trabalho a fazer em relação ao tema do assédio”. O grupo de três estudantes sentiu “a necessidade de criar um núcleo que sensibilizasse a comunidade estudantil sobre o assunto, que informasse as pessoas, e que de alguma maneira pudesse ajudar os estudantes”, e assim o fez no início do ano letivo seguinte ao trabalho, em setembro de 2022.

Com a evolução do projeto, as três já não conseguiam “lidar com tudo” sozinhas e a equipa começou a crescer e a diversificar-se, até para incluir a opinião de estudantes “de diferentes cursos e diferentes anos”. Agora, o núcleo tem vários departamentos, e os novos elementos são distribuídos “consoante os gostos das pessoas, como é que se sentem mais confortáveis a trabalhar, se na informação, na pesquisa, na comunicação, para também estarem a fazer uma coisa de que gostem”.

Desde que surgiu o Núcleo Contra o Assédio já foi criado “um canal de denúncias interno que possibilita aos alunos denunciarem qualquer tipo de situação”, quer seja “assédio ou outro tipo de situação”. Até então, “não havia nenhum canal de denúncia, para fazeres uma denúncia tinhas que fazer no Domus [o sistema interno do Politécnico do Porto], e não era anónimo”. “Acho que a opinião pública ajudou nesse sentido, porque divulgou muito o assunto, e quando chega à opinião pública e é divulgado, inevitavelmente o Ministério vai se sentir pressionado a fazer algum tipo de mudança”, conclui Patrícia Agostinho.

Inspirados pela atividade dos colegas do Porto, os estudantes da Universidade do Minho criaram a sua própria extensão do Núcleo Contra o Assédio um ano depois, já em setembro de 2023. Numa entrevista realizada de forma coletiva, por escrito, as estudantes explicam ao Gerador que atualmente “o núcleo está estruturado em três departamentos distintos: Comunicação e Imagem, Pesquisa e Informação, e Relações Externas, cada um liderado por uma diretora e composto na totalidade por dez membros”. Estão ainda em negociações para integrarem a Associação Académica da Universidade do Minho como um grupo de trabalho.

OS ESTUDANTES SENTEM-SE MAIS CONFORTÁVEIS A REPORTAR CASOS DE ASSÉDIO JUNTO DE ESTRUTURAS NÃO INTEGRADAS NAS INSTITUIÇÕES?

Núcleo Contra o Assédio da Universidade do Minho: “Talvez por termos um contacto mais próximo e direto com os estudantes, consideramos que existe, de facto, mais facilidade no acesso aos problemas e menos inibição no que toca à procura de informação e relato de acontecimentos. Exatamente por este fator de proximidade e informalidade e, certamente, por saberem que o núcleo é constituído também por estudantes, sentimos um maior à vontade por parte das pessoas que procuram um acesso simples e esclarecido à informação e, sobretudo, compreensão num espaço onde se podem fazer ouvir sem medos de julgamento ou culpabilização.”

Na Universidade do Minho já existe um movimento de denúncia de casos de violência através de uma página de Instagram desde 2021. Há um formulário destinado à partilha de testemunhos de violência de forma anónima, onde se pode ler: “A tua experiência será partilhada juntamente com as das restantes vítimas, de modo a denunciar a inação das entidades competentes. Não nos calarão.”

Para os membros do Núcleo Contra o Assédio, o conteúdo da conta de Instagram “demonstra que ainda vivemos numa realidade de muito assédio e que este é muito encoberto, principalmente aquele que tem a ver com hierarquia”. Relativamente a abusos de poder por parte de pessoal docente ou não docente, denunciam que “o sistema ainda está muito propício a defender quem está numa hierarquia acima, principalmente no ambiente universitário em que somente quando existe um aglomerado de estudantes e várias provas é que parece haver inícios de preocupação”. Ainda assim, tal como apontam estudantes de outros pontos do país, o assédio é recorrente entre estudantes, sendo que, nestes casos, muitos das situações envolvem comportamentos que, apesar de constituírem assédio, “não são levados como tal, e os indivíduos percebem o estarem a divertir-se como uma desculpa”. “Consideramos que existe sempre um sentimento de insegurança, principalmente em momentos de festas”, lamentam.

A resposta dada pela Universidade do Minho ao assédio tem vindo a evoluir nos últimos anos. Ao longo de 2022, foi criado o Grupo de Missão para a Elaboração de Orientações de Prevenção e Combate ao Assédio, foi lançado um e-mail para denúncias anónimas (que são recebidas e analisadas pela Associação de Psicologia em conjunto com a universidade) e foi divulgada a Estratégia para a Prevenção do Assédio na Universidade do Minho. Estas “são medidas importantes e que revelam alguns avanços na atenção dada a estas questões”.

“A preocupação pela segurança da vítima, bem como a priorização do seu psicológico, está bem sublinhada no documento.  A equipa considera que as medidas de prevenção primária precisam ser mais exploradas, e é desta necessidade que nasce o Núcleo enquanto grupo de trabalho que procura sensibilizar e elucidar a comunidade estudantil. No que diz respeito às medidas de prevenção secundária, reconhecemos o esforço da Universidade em implementar instrumentos que facilitem a denúncia. Acreditamos que muito trabalho ainda tem de ser feito para assegurar a segurança dentro do espaço académico, porém este é um problema de nível nacional”, considera o Núcleo Contra o Assédio.

Tal como sublinham as estudantes do movimento Academia Não Assedia, a divulgação e sensibilização são essenciais para uma ação preventiva eficaz – as “medidas de prevenção primária” que referem os estudantes do Minho –, e é precisamente nesse aspeto que a Universidade tem falhado. “Consideramos que, apesar de importantes, estas medidas não têm sido amplamente divulgadas e ainda são desconhecidas por grande parte da comunidade académica. A maximização da sua eficácia deve estar intrinsecamente ligada à proximidade com os estudantes e para isso será preciso uma maior dinamização na divulgação destes meios, por exemplo através das redes sociais, para que a comunidade, para além de informada, se possa sentir confiante e segura com a sua utilização”, apontam.

Os serviços de apoio psicológico constituem outra medida fundamental. “A ajuda psicológica fornecida aos estudantes é essencial no processo de denúncia”, escreve o Núcleo Contra o Assédio da UMinho, “uma vez que o assédio afeta a saúde mental de diferentes formas e pode ser prejudicial no futuro dos alunos. Este apoio psicológico é fornecido de forma gratuita a pessoas que, na comunidade académica, sejam vítimas ou testemunhas de assédio. A equipa crê que a medida está acessível a esse específico grupo de pessoas, apesar de não ser amplamente divulgada”.

APESAR DAS DIFICULDADES, AS ESTUDANTES NÃO DESISTEM

Beatriz Morgado (FEMfdup): “É um trabalho muito ingrato, não vou mentir. Eu adoro o que faço, todas adoramos, mas é algo cansativo, sentir que fazemos tudo isto pelas mulheres, tudo isto pelos estudantes, tudo isto pela academia, e que continuamos com essa reputaçãozinha das mulheres malucas, das bruxas, que parece uma coisa assim muito do século passado, mas não é. De todo. Mas vamos continuar. Vamos sempre continuar. E, muitas vezes, se não somos bem vistas, se calhar é por boas razões, porque realmente tocamos na ferida. Se fossemos muito bem vistas, se calhar estávamos a fazer alguma coisa mal.”

Raquel Oliveira (Academia Não Assedia): “Ainda está tudo muito parado. É uma luta um pouco ingrata, no sentido em que já andamos aqui há anos a tentar lutar por isto e parece que não saímos do sítio. Mas não deixando os núcleos e coletivos morrerem, não deixando este movimento morrer, e relembrando sempre de que estamos aqui e exigimos aquilo que devia ser o correto, é uma forma de causar pressão. Pode demorar os anos que demorar, mas o objetivo é não sair daqui, não arredar o pé. Eu costumo sempre fazer um apelo, que é sempre o mesmo: o apelo de união, especialmente dos estudantes. Não podemos esquecer que muitos dos direitos estudantis que temos agora provieram de movimentos estudantis, e que nós, realmente unidos, conseguimos fazer algo e mudar as coisas.”

Beatriz Coelho (Academia Não Assedia): “É graças a esses movimentos que temos muitos dos nossos direitos assegurados, e que este também pretende ser um movimento que consiga fazer exatamente a mesma coisa, independentemente do tempo que demore. Estamos cá para ficar enquanto as universidades continuarem assim. Acredito que a maior parte das pessoas se toque por situações que passou, ou por pessoas próximas que passaram, ou pelo próprio desconforto de verem outros a sofrer. E muitas pessoas perceberam que existe aqui um movimento que lhes pode dar voz, e em que podem sentir-se acolhidas também.”

Esta reportagem é a quarta parte da longa investigação Abuso de Poder no Ensino Superior, que iniciámos na  Revista Gerador 43.
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