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REPORTAGEM
 CAUSAS SOCIAIS 

EXTRATIVISMO INTELECTUAL:

O SISTEMA CIENTÍFICO CRIA CONDIÇÕES PARA A APROPRIAÇÃO

 

Texto de Débora Cruz e Sofia Matos Silva
Edição de Débora Dias e Tiago Sigorelho
Ilustrações de Frederico Pompeu
Produção de Sara Fortes da Cunha
Comunicação de Carolina Esteves e Margarida Marques
Digital de Inês Roque

01.07.2024

Académicos e sindicalistas concordam que o problema vai além do indivíduo e que o próprio sistema favorece a reprodução destas condutas. As métricas quantitativas de avaliação do desempenho de docentes e investigadores, o processo de captação de financiamento e a centralidade dos índices de produtividade científica são apontados como alguns dos fatores que alimentam as práticas extrativistas no ensino superior. Ainda assim, os entrevistados destacam nuances que permitem atestar a complexidade do problema e apontam diferentes graus de responsabilização para estas condutas antiéticas.

Esta reportagem é a quinta da investigação Abuso de Poder no Ensino Superior, publicada no Gerador ao longo dos próximos meses.

Em novembro, divulgámos um formulário para obter relatos de pessoas que tivessem conhecimento, testemunhado ou sofrido algum tipo de comportamento abusivo em contexto académico. Em três meses, recebemos 83 respostas referentes a 22 instituições portuguesas, incluindo universidades, institutos politécnicos e escolas superiores não integradas. O Gerador entrou em contacto com 75 associações de estudantes de universidades e politécnicos portugueses com o objetivo de divulgar o questionário junto dos respetivos estudantes. Apenas duas responderam.

Daniel [nome fictício a pedido do entrevistado] já tem alguma dificuldade a lembrar-se da ordem cronológica de alguns dos acontecimentos. Mas sabe que foi no segundo ano de licenciatura que foi convidado a integrar o laboratório de instrumentação da sua faculdade como voluntário. Durante cerca de três horas por dia, auxiliava colegas e superiores, trabalhava em projetos e escrevia relatórios.

Um dos docentes chegou a propor-lhe que trabalhasse num dos seus projetos, e Daniel aceitou. “Pediu-me para escrever um código para um programa informático. Estive a trabalhar naquilo durante meses e quando o protótipo estava quase pronto afastaram-me do projeto.” Até hoje, o ex-estudante não sabe qual foi o desfecho do trabalho que desenvolveu.

Ainda assim, Daniel conta que a apropriação do trabalho intelectual de estudantes voluntários e de bolseiros era comum. O ex-estudante recorda-se de um projeto, proposto e financiado por uma empresa, que envolvia a criação de um produto tecnológico. Um dos estudantes ficou responsável por desenvolver o trabalho, mas, quando o concluiu, a sua autoria não foi reconhecida. “No laboratório, pegaram nesse projeto, desenvolveram uma aplicação comercial, apresentaram à empresa e o aluno só teve a nota.”

“Posso dar mais exemplos”, garante Daniel, em entrevista ao Gerador. Para além das empresas, a própria instituição requisitava alguns serviços do laboratório. Numa dessas ocasiões, a equipa que o ex-estudante integrava foi abordada por um dos gabinetes da universidade. “Pediram-nos que comentássemos as funcionalidades de um portal de empregabilidade”, começa por contar, “quando um colega disse que aquele portal era o projeto de um estudante que tinha uma cadeira de Informática com ele”.

Assim que a equipa falou com o verdadeiro autor do projeto, cujos créditos não eram reconhecidos pelo gabinete, Daniel confessa que o estudante ficou “obviamente incomodado com a situação”. Ainda assim, diz que “o que está em jogo são as avaliações” e que “nunca ninguém se quer chatear”.

Numa instituição diferente, Joana [nome fictício a pedido da entrevistada] relata experiências da mesma natureza. Quando escolheu a sua orientadora, julgou que seria uma pessoa de “confiança” e “interessante” para acompanhar a investigação da sua tese de mestrado. Rapidamente se apercebeu de que não seria o caso. A docente não respondia aos seus e-mails, nem a auxiliava nas tarefas. “Deu parte do seu trabalho a doutorandos para que me apoiassem. Aquelas pessoas estavam a fazer isso, obviamente, fora do seu horário de trabalho”, denuncia.

Ainda assim, a investigação correu melhor do que esperava e os resultados começaram a aparecer. Mas, após a entrega e defesa do trabalho, a colaboração com a orientadora piorou. “Não consigo [publicar os resultados], porque ela deixou de me responder. Eu entreguei a tese e, ao fim de um mês, nunca mais soube nada dela, não me respondeu nunca mais às mensagens.”

O silêncio da orientadora não a impediu, no entanto, de utilizar os resultados da pesquisa de Joana nas suas próprias publicações sem lhe dar os devidos créditos. “A partir do momento em que desenvolves um produto, a faculdade acaba por ficar com a propriedade intelectual da tua investigação. E, obviamente, os professores têm sempre muito mais contactos do que alunos recém-formados. Portanto, acabam por utilizar as coisas que os estudantes desenvolvem para progredirem na carreira.”

Para a ex-estudante, o sistema científico faz com que docentes e investigadores se tornem, em simultâneo, vítimas e agressoras. “O sistema está corrompido e só consegues subir se corromperes os outros.” Joana defende que a centralidade dos índices de produtividade são uma motivação para os orientadores se aproveitarem do trabalho intelectual dos seus estudantes.

“Os estudantes, seja de licenciatura, mestrandos ou doutorandos, mesmo que estejam a desenvolver investigação, são vistos apenas como pseudoinvestigadores. Normalmente, quem fica com os resultados [dos trabalhos] são os professores, precisamente para poderem subir na carreira. Mas não foram nem investigadores, nem orientadores, são só facilitadores de uma oportunidade ou de um financiamento”, sustenta.

O QUE É O EXTRATIVISMO INTELECTUAL?

A expressão “extrativismo intelectual” é utilizada para descrever práticas que consistem na apropriação de trabalho intelectual de estudantes, assistentes, docentes e investigadores. O trabalho que desenvolvem não é reconhecido: quando são feitas publicações que usam os seus contributos, estas pessoas não são nomeadas como autoras ou coautoras. Por outro lado, o extrativismo intelectual é também referente a situações em que pessoas exigem surgir como coautoras ou autoras principais de publicações para as quais não contribuíram.

A expressão é usada pelas investigadoras Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom no artigo The walls spoke when no one else would, publicado no livro Sexual Misconduct in Academia: Informing an Ethics of Care in the University (2023), cuja circulação foi suspensa e que, até à data de publicação desta reportagem, continua indisponível. Foi este o texto que desencadeou a investigação dos casos de abuso de poder e de assédio ocorridos no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. A expressão tem origem na crítica moderna ao colonialismo e ao uso que os impérios coloniais fizeram dos recursos naturais dos territórios colonizados.

Segundo as investigadoras, Boaventura Sousa Santos, antigo diretor emérito do CES, poderia ser visto como um “especialista” em extrativismo intelectual. “As histórias de assistentes de pesquisa cujo trabalho e conhecimento foram usados nos seus livros e que eram [em simultâneo] mal remuneradas são inúmeras”, escrevem as académicas. No artigo, descrevem um padrão de conduta: o trabalho de assistentes e jovens investigadores era usado nas suas publicações sem que obtivessem quaisquer direitos autorais, sendo a menção dos seus nomes relegada para os agradecimentos ou para as notas de rodapé.

“Esta má conduta explica como este tipo de Professores-Estrela poderiam escrever dezenas de artigos de autoria única e múltiplos capítulos de livros por ano enquanto davam conferências e masterclasses por todo o mundo. Nenhum destes jovens académicos ousa denunciar publicamente esta má conduta e abuso de poder […]”, escrevem ainda.

Após a publicação do artigo, Boaventura Sousa Santos negou todas as acusações. “Revoltam-me particularmente dois aspetos deste texto indigno. O primeiro é o indigno envolvimento dos meus assistentes de investigação que, segundo a autora principal, eu teria explorado ou aproveitado indevidamente. Obviamente que me apoiaram na investigação porque foi para isso que foram contratados. Mas os meus livros fui [eu] quem os escreveu. Faculto ao CES o nome de todos os meus assistentes, portugueses, norte-americanos, brasileiros, moçambicanos, angolanos, colombianos que ao longo de cinquenta anos trabalharam comigo, se alguém entender interpelá-los. Tenho um grande orgulho em ter trabalhado com todos eles e todas elas. Escrevi muitos livros porque trabalho incessantemente e nunca tive férias, porque amo o meu trabalho e porque tenho uma secretária e uma assistente de revisão de texto, duas pessoas maravilhosas e excelentes profissionais que há várias décadas me acompanham”, escreveu num comunicado, divulgado em abril do ano passado.

O Gerador contactou as autoras do artigo solicitando-lhes uma entrevista. Por motivos pessoais, Miye Nadya Tom e Catarina Laranjeiro não estavam disponíveis aquando da solicitação. Lieselotte Viaene não respondeu ao pedido.

Foi em 2018 que, aliciado pela possibilidade de fortalecer o seu currículo, Daniel aceitou o convite de um docente para integrar a equipa laboratorial. “Como é uma área com muita competição e na qual os certificados e o currículo importam muito, os professores fazem sempre esse género de convites”, declara.

Apesar de ter trabalhado no laboratório durante os anos seguintes, Daniel reconhece que os alunos na sua condição acabavam por se afastar após cerca de seis meses. “Era um ritmo [de trabalho] um bocado exigente, porque é um ambiente já mais profissional. Então, para alunos que nunca tinham tido contacto com a área, acabava por ser um grande choque.”

Enquanto membro da equipa laboratorial, foi-se apercebendo progressivamente de um padrão. Algumas das pessoas que trabalhavam no laboratório deixavam de aparecer sem razão aparente ou começavam a mostrar-se relutantes a fazer os trabalhos e a avançar nos projetos. “Quando as pessoas cooperavam menos ou tinham certos comportamentos que eu não entendia, elas estavam, na realidade, a ser afastadas do laboratório”, revela.

O ex-estudante acredita que os líderes da equipa procuravam integrar pessoas que fossem “bastante afáveis” e “fáceis de lidar”, porque quando os colaboradores começavam a questionar certas práticas e a ser menos complacentes, eram prejudicados de alguma forma.

Foi o que acabou por acontecer consigo, através de um processo gradual de perda de responsabilidades, projetos e regalias, sem que nunca tivesse tido um confronto direto com nenhum dos seus superiores. Os casos de apropriação e algumas situações de abuso de poder, bem como de manipulação de financiamento, que diz ter testemunhado, fizeram com que se mostrasse cada vez mais indisponível para desempenhar determinadas tarefas.

“Começaram a entregar os projetos a outras pessoas, era muito menos chamado ao laboratório e, no fim, fui retirado dos grupos em que comunicávamos, como o WhatsApp e o Teams. Havia muitos sistemas informáticos, que tinha sido eu a montar, e pediram-me as chaves de administração desses sistemas, ou seja, as chaves que se usariam para fazer a manutenção. Quando me fizeram esse pedido foi quando eu percebi, com certeza, de que estava a ser afastado.”

 

EXTRATIVISMO INTELECTUAL NO FORMULÁRIO DO GERADOR

Daniel e Joana são duas das pessoas que escolheram partilhar as suas experiências de abuso de poder com o Gerador. Ambos preencheram o formulário divulgado em novembro de forma a obter relatos de quem, em contexto académico, tivesse conhecimento, testemunhado ou sofrido assédio moral e/ou sexual, bem como situações de extrativismo intelectual.

Em três meses, recebemos 83 respostas, 70 das quais de pessoas que se identificam como mulheres. Um total de 89,2 % dos participantes diz ter sofrido pessoalmente algum tipo de abuso, 41 % recorreram a apoio psicológico e 60,2 % admitiram não sentir, ou ter sentido, conforto e segurança no seu estabelecimento de ensino. Ainda assim, 62,7 % não denunciaram os casos.

À pergunta “Já sentiste que algum docente/investigador se estava a aproveitar ou a explorar o teu trabalho?”, 30 dos 83 inquiridos responderam que sim. Alguns dos participantes descrevem as situações que viveram. “Utilizaram o levantamento que fiz para o mestrado como fonte de uma conclusão de projeto sem citar meu nome”, descreve um destes. “[Testemunhei] apropriação por parte de investigador/docente. [Apropriou] ideias, propostas, projetos e trabalhos de estudantes sem identificar o autor das mesmas”, relata outro.

“O abuso de poder era norma. Trabalho árduo, voluntário, não reconhecido nas contribuições de autores das publicações geradas, horas de trabalho infindáveis sem qualquer tipo de remuneração ou reciprocidade, bolsas de investigação atribuídas à pessoa foram retiradas e utilizadas em material e na investigação, alunos trabalharem em conferências e os prémios de produtividade monetários dessas conferências serem transferidos para o professor em vez de para o trabalhador”, partilha também uma das participantes.

DESEQUILÍBRIOS DE PODER E PRECARIEDADE PROPICIAM A APROPRIAÇÃO INTELECTUAL

Não possui números que permitam quantificar o problema, mas o presidente da ANICT (Associação Nacional de Investigadores em Ciência e Tecnologia), Bruno Pereira, admite que os casos de extrativismo intelectual são “relativamente frequentes” entre investigadores.

Em entrevista ao Gerador, o investigador associado no Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto revela ainda que os reprodutores deste tipo de práticas tendem a ser os profissionais que se encontram em posições mais elevadas na hierarquia académica. “Por um lado, [são as posições onde existe] maior estabilidade laboral, mas também, como é um sistema hierárquico, [são as posições] onde acabam por ser tomadas as decisões finais.”

Por sua vez, os casos de apropriação intelectual revelam-se particularmente preponderantes nas publicações de artigos científicos. Bruno Pereira dá conta de que é frequente líderes de grupos de investigação surgirem como autores principais de projetos sem terem estado diretamente envolvidos no trabalho levado a cabo pela restante equipa. “Simplesmente porque são os responsáveis por um determinado departamento ou grupo, pode haver essa conduta de serem sempre o último autor num determinado trabalho científico. E há instituições em que isso acaba por ser uma normalidade.”

 

Miguel Viegas, dirigente sindical do Departamento de Ensino Superior e Investigação da FENPROF (Federação Nacional dos Professores), também alerta para a preponderância do problema. “Isto é uma situação de tal ordem atual que hoje muitas revistas exigem saber, por escrito, qual foi o contributo de cada autor na publicação. É uma questão apenas formal que se contorna facilmente, mas que sinaliza que o problema está identificado”, argumenta o docente da Universidade de Aveiro, em entrevista ao Gerador.

Este tipo de casos não constituem uma idiossincrasia portuguesa, garante Bruno Pereira. “Diria que é uma situação mais típica do sistema académico do que propriamente de um país isolado”, reitera. O dirigente da ANICT relembra ainda que tendem a estar associadas à precariedade vivida pelos trabalhadores científicos e ao subfinanciamento do sistema. “Quando os recursos são mais reduzidos, estes casos tendem sempre a acentuar-se.”

Numa posição vulnerável para a ocorrência de apropriação intelectual encontram-se também os bolseiros de investigação. Em entrevista ao Gerador, Sofia Lisboa, vice-presidente da ABIC (Associação dos Bolseiros de Investigação Científica), descreve exemplos “clássicos” ocorridos com estudantes de doutoramento. “Não sei se é a norma, mas acontece muito. Há aquele caso clássico que é: a pessoa desenvolve investigação para um orientador, ou para um investigador principal de um projeto, e depois não vê reconhecido esse trabalho.”

É comum, diz a dirigente associativa, os bolseiros fazerem o “trabalho de sapa” dos projetos desenvolvidos por docentes e investigadores. “Recolher dados, ir aos arquivos, ‘tirar o pó às coisas’”, exemplifica. A doutoranda em História Contemporânea realça que nos casos de apropriação ocorridos entre orientandos e orientadores, a complexidade pode ser acrescida, não só devido às dinâmicas desiguais de poder, mas também porque é necessário o parecer do próprio orientador para que o doutorando deixe de ser orientado por essa pessoa.

A ABIC já teve conhecimento de um caso em que vários orientandos decidiram pedir a substituição do orientador, mas este exigiu que as publicações que fizessem durante um determinado período incluíssem a sua coautoria, ainda que não tivesse contribuído para os trabalhos. O tratamento destes casos, diz a dirigente, vai “depender muito” de quem é a pessoa que está a apropriar-se do trabalho intelectual dos estudantes: qual o seu poder dentro da instituição, que relações tem com os colegas e que tipo de influência possui.

Clica no play para ouvir Sofia Lisboa, vice-presidente da ABIC

A vice-presidente da ABIC salienta também que existem diferenças entre áreas científicas no desenvolvimento destes problemas. “Em áreas das ciências duras, há sítios em que, por defeito — há um acordo qualquer não escrito —, tudo o que aquele investigador produz [e publica], que é seu, tem de ter coautoria do orientador, mesmo que [o trabalho] nada tenha que ver com aquela pessoa. Portanto, através da forma como somos avaliados neste sistema, [o orientador] vai ganhar ali uns pontinhos.”

A dirigente associativa refere-se aos índices de produtividade científica, medidos sobretudo através do número de publicações de livros ou artigos científicos (e o seu respetivo impacto) e do financiamento captado ao longo da carreira. Estes índices assumem uma importância significativa na avaliação de desempenho de docentes e investigadores no ensino superior.

Neste sentido, os casos de extrativismo intelectual ganham uma importância redobrada: ao reivindicar a autoria de trabalhos, os académicos estão a aumentar os seus índices de produtividade e, consequentemente, a melhorar os seus níveis de desempenho. Ao mesmo tempo, quando se apropriam de ideias ou impedem que colegas e estudantes sejam os principais autores de estudos, podem estar a impedir que estes incrementem os seus próprios índices. Quando os níveis de desempenho são (mais) baixos, as candidaturas a projetos, a captação de bolsas e de financiamento e a subida na hierarquia académica são prejudicadas.

Por outro lado, quando existe um desequilíbrio de poder significativo entre as partes envolvidas a gravidade dos casos acentua-se. “O orientador vai desenvolver a sua investigação e concluir o seu projeto, que vai ficar em seu nome, e vai acumular os tais pontinhos. Isto, obviamente, vai contar para o capital que aquela pessoa está a construir já numa fase de estabilidade da sua carreira. Isso é uma grande injustiça face àquele que, por uma série de condições, está noutro lugar [mais precário]”, explica Sofia Lisboa.

O CES E OS CASOS DE EXTRATIVISMO INTELECTUAL

Na sexta carta do coletivo de vítimas do Centro de Estudos Sociais, as autoras descrevem os casos de extrativismo intelectual que alegam ter vivido ou testemunhado.

Os testemunhos referem-se a situações como:

●    “Pedidos de textos ou comentários a assistentes de investigação, estudantes de doutoramento ou investigadores dependentes, que serviam de inspiração e/ou seriam incorporados em artigos e livros publicados, sem o devido crédito de autoria (agradecer no prefácio não é conhecer a autoria dos intervenientes);”

●    “Extrativismo de ideias partilhadas em contextos de brainstorming, frequentemente realizados em ambiente profundamente violento, e posteriormente incorporadas em publicações sem o devido crédito;”

●    “Coescrita de publicações sem partilha de autoria;”

●    “Publicação de manuscrito de livro integralmente atualizado por estudante de doutoramento e publicado exclusivamente em nome próprio pelo orientador.”

Numa carta aberta, sem se referirem especificamente aos casos de extrativismo intelectual, a direção e a presidência do Conselho Científico do CES disseram estar comprometidos em resolver os problemas assinalados no relatório da Comissão Independente. “Estamos decididos a tomar todas as iniciativas para que haja consequências destas denúncias e para que as más práticas que foram identificadas não se voltem a repetir no CES. O Relatório da Comissão indica recomendações claras sobre as quais iremos refletir coletivamente, de forma amplamente participada, procurando implementar todas aquelas que considerarmos necessárias e adequadas.”

QUANDO O SISTEMA ALIMENTA A APROPRIAÇÃO: UM CÍRCULO VICIOSO

“O extrativismo intelectual é uma prática que sempre aconteceu na academia, estamos falando de dinâmicas aprofundadas. Existem casos muito graves de roubo, até de estruturas de outros povos: se olharmos para a história da ciência moderna, isso está na história”, argumenta Taísa Oliveira, aluna de doutoramento na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP).

A investigadora, que liderou o estudo Navigating an Academic Career in Marketized Universities: Mapping the International Literature(2024), um trabalho de análise de 54 artigos publicados sobre a precariedade na academia, argumenta que o sistema científico alimenta e impulsiona as práticas extrativistas.

Sem descurar a responsabilização dos académicos que reproduzem este tipo de práticas, a estudante brasileira aponta para a precariedade, a competitividade e as métricas quantitativas de avaliação de desempenho como condições que abrem o caminho para a proliferação do extrativismo intelectual. Para sobreviver na carreira académica, explica, é necessário conseguir financiamento, recursos e publicar em determinadas revistas: mesmo os trabalhadores que se encontram em posições mais estáveis não conseguem escapar a estas dinâmicas.

Estes fatores, sustenta Taísa Oliveira, em entrevista ao Gerador, levam à reprodução de más condutas éticas, como pôr o nome de um investigador num artigo para o qual este não contribuiu. “A publicação de artigos é um dos pontos mais centrais para você ter a possibilidade de sobreviver precariamente na academia. Nessa lógica, qualquer migalha que eu receber para estar nesse jogo académico é potencialmente uma forma de sobreviver.”

O presidente do SNESUP (Sindicato Nacional do Ensino Superior), José Moreira, acredita que ter em conta estes fatores é crucial para analisar casos de extrativismo: apesar de a ética individual ser “muito importante”, o “problema vai além do indivíduo”, diz. “As análises feitas de casos de extrativismo intelectual são corretas e concordo perfeitamente com elas. Mas creio que, por vezes, somos injustos com os coordenadores e com os chefes de laboratório, porque o próprio sistema propicia que [os casos] aconteçam.”

Para conseguir financiamento para um laboratório, é necessário que o responsável pela equipa tenha o máximo de indicadores de produtividade possíveis, explica o dirigente sindicalista. Se no currículo não constar uma parte significativa dos artigos que são publicados pelo laboratório, a possibilidade de obter financiamento é menor, o que prejudica toda a equipa, que pode ficar sem fundos para sustentar os seus projetos, acrescenta também.

“Todos conhecemos, e estão reportados, casos de evidentes faltas de ética e de extrativismo por parte de orientadores ou de chefes de linhas de investigação, mas há muitos casos que estão na fronteira e há muitos outros em que isto acontece porque é a única maneira de conseguir que haja financiamento competitivo para os grupos e para os laboratórios de investigação”, argumenta ainda o docente da Universidade do Algarve, em entrevista ao Gerador.

Por outro lado, Miguel Viegas salienta que, nos casos em que são utilizadas “versões cegas” de artigos (single-blind e double-blind review, em inglês), estes argumentos não podem ser utilizados. No site da Charlesworth Group, uma empresa de serviços editoriais especializada nos setores académico e profissional, lê-se que: “Os defensores da revisão double-blind argumentam que esta vai mais longe no sentido de reduzir a possibilidade de parcialidade no processo de revisão por pares [peer review, em inglês).” Neste tipo de revisão de artigos, a identidade dos revisores e dos autores do texto não são reveladas, fazendo com que o uso do nome dos coordenadores de laboratórios e de investigadores principais, em virtude dos seus índices de produtividade, seja considerada irrelevante.

“Tento convencer o máximo de gente possível a acabar com este escândalo de pôr o nome da pessoa só porque sim. Se contribuiu, tem lá o nome, é justo. Se não contribuiu, não tem de ter lá o nome. Isto aplica-se também a orientadores: se o orientador não contribui em nada, se apenas se limita a ler [a tese] no fim, não tem de ter lá o nome. Mas a tradição não é essa: a tradição é a de pôr lá o nome automaticamente. Isto é apropriação”, assevera o dirigente sindical.

“Quando nos questionamos sobre as questões da precariedade, do assédio ou das diferentes formas de extrativismo, estamos sempre a bater no mesmo problema, que é: será que é este o modelo [social e científico] que nós queremos?”, questiona Susana Santos, investigadora integrada no CIES-IUL e professora auxiliar convidada no departamento de Sociologia do ISCTE-IUL.

Para a socióloga, o atual modelo social e científico vive necessariamente à custa de apropriações e de exploração. “O modelo atual tem sido desenvolvido à custa destes abusos e da ideia de alta rotatividade, que é fundamental para que o modelo continue a funcionar: é importante deitar fora; é importante que todos não sobrevivam; e esta é a crença sobre este modelo.” O extrativismo intelectual, diz, representa o culminar de uma cadeia de acontecimentos que reproduzem comportamentos e práticas abusivas.

De forma entender a transversalidade do problema, a investigadora defende que é necessário olhar o sistema e a sociedade de forma abrangente. “O extrativismo é uma consequência do modelo social em que vivemos. Se vivemos num modelo em que só o investigador principal ou o coordenador é que vivem, a nossa preocupação é ser essa pessoa. Eles têm uma cadeia enorme de pessoas que trabalham para eles, porque é a única maneira em que se consegue trabalhar para sobreviver neste modelo.”

Para José Moreira, a reflexão aprofundada sobre estes problemas é uma necessidade. “O que nós precisamos, enquanto comunidade, é de refletir sobre estas realidades. [Temos] de arranjar sucesso alternativo, outras métricas e outros modos de avaliação de currículos e de contribuições para acabarmos com este tipo de práticas”, reivindica.

OS PROBLEMAS DE INDEFINIÇÃO: O QUE É UM AUTOR?

“Em qualquer atividade que envolva um mínimo de criatividade, regra geral, as ideias não são muito originais: nós trabalhamos sobre o que nós recebemos e estamos sempre a extrair”, argumenta Susana Santos. “Acho que a maioria de nós que faz investigação há algum tempo, provavelmente, já viu reconhecido e plasmado no trabalho e nas publicações de outras pessoas o seu [próprio] trabalho.”

Por estas razões, a socióloga enfatiza que alguns casos de extrativismo intelectual podem ser muito complexos de analisar. Sem descurar as situações em que há apropriações evidentes de trabalho intelectual ou a falta de reconhecimento de contributos, a académica enfatiza a necessidade de questionar o que se entende por “autor”.

Através de um exemplo ilustrativo e “simplista”, Susana Santos discorre sobre as possíveis dificuldades de definição das autorias. “Imagine, eu preciso de inserir dados numa tabela e peço a alguém para o fazer. A tabela passa a ser propriedade dessa pessoa? O que é a propriedade intelectual? É uma discussão muito longa… Quem é que tem direito a essa propriedade intelectual? No fundo, o que é que é um autor?”, questiona.

Para a investigadora, o que se afigura pertinente de entender nestes casos é a forma como são valorizados e reconhecidos os contributos de estudantes e cientistas. “O problema do extrativismo intelectual não é — ou acho que não deve ser — definir a cada momento o que pertence a cada um, como se isto não fosse um património que é comum e que é construído por todos, para todos.” O que é importante, conclui, é o reconhecimento e a justeza do tratamento que é concedido a cada pessoa.

Esta reportagem é a quinta parte da longa investigação Abuso de Poder no Ensino Superior, que iniciámos na  Revista Gerador 43.
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