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Quando, em 1977, o jornal O Século teve a sua última edição, havia a esperança de que o fecho não fosse definitivo. Manuel Alegre, na altura, secretário de Estado da Comunicação Social, tinha anunciado uma suspensão de três meses para estruturar o funcionamento do histórico diário, que nasceu em finais de 1880 como defensor da causa republicana.
Após décadas de dificuldades económicas, O Século tinha sido nacionalizado no período pós-revolucionário. As consequências incluíram “a perda da independência do periódico, as lutas internas político-partidárias, a situação de agravamento económico da empresa, com um acentuado decréscimo de vendas do jornal e restantes publicações, um aumento indireto das dívidas ao Estado”, segundo descrito na DigitArq, plataforma online do Arquivo Nacional/Torre do Tombo.
Apesar do que havia sido inicialmente estipulado, a empresa pública que detinha o título foi extinta em 1979, sob forte contestação dos trabalhadores. Mesmo assim, alimentava-se a narrativa de que a reabertura seria possível, mas apenas nas mãos de privados, conforme noticiado pela RTP. Tal nunca chegou a acontecer.
O mesmo decreto, que oficializou a extinção da empresa pública, também obrigava a preservar o património arquivístico do jornal até que o seu destino fosse definitivamente decidido. Apesar disso, a questão foi-se arrastando e o arquivo ficou “depauperado”, conforme explica ao Gerador João Palmeiro, presidente da Assembleia Geral da Associação Portuguesa de Imprensa (API), que acompanhou a situação.
O edifício de O Século terá sido utilizado pelo Governo para acomodar um ministério. O andar onde estavam os arquivos do jornal ficou “ao Deus dará” durante um longo período, segundo conta o responsável. “As pessoas iam lá ver o que lá estava [e diziam] “olha que engraçado, uma chapa fotográfica de uma coisa que é da minha terra”, “olha aqui uma notícia sobre não sei o quê”, e as pessoas levavam, pura e simplesmente”, diz João Palmeiro.
“Isto era do conhecimento de todos nós”, refere, chamando à atenção para a instabilidade vivida após a Revolução de Abril, que trazia outras preocupações. “Houve muita coisa e, todos os dias, as pessoas tinham outras coisas que tratar que não tinham nada que ver com os arquivos. Durante muitos anos, quando eu falava nestes temas, diziam: “Lá vens tu com isso. O que é que isso interessa? Isso não interessa nada.” Porque havia, de facto, outras prioridades”, explica o dirigente.
Com o arrastar do impasse, só, em 1981, uma resolução do Conselho de Ministros veio decidir a “reserva pelo Estado da titularidade de alguns bens – entre os quais os arquivos documental, fotográfico e a biblioteca [de O Século] – com a respetiva compensação dos seus créditos”, lê-se na página da Torre do Tombo.
Assim, a documentação “esteve instalada em condições precárias no edifício onde funcionava a Sociedade Nacional de Fotografia” até que, em 1986, de forma a acelerar a liquidação da empresa “e, simultaneamente, promover a redução do crédito do Estado, [uma nova resolução] autorizou a transmissão de alguns bens para outras entidades estatais, nomeadamente para: a Direção Geral do Património, herdeira do imóvel, sede da empresa; a Direção Geral da Comunicação Social, a quem foi entregue o arquivo fotográfico; e o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, adquirente do restante património arquivístico e biblioteca”. A documentação estava em “situação caótica”, segundo a mesma fonte.
Com a extinção da Direção Geral da Comunicação Social em 1992, as mudanças administrativas adjacentes acabaram por culminar na transferência de todo o património fotográfico para os Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, em 1999. Nesse local, está hoje o fundo documental que é “constituído fundamentalmente pelos arquivos administrativo e da redação, integrando ainda a Biblioteca [do jornal] e a Hemeroteca” que guarda as edições publicadas”. O levantamento e avaliação do espólio ainda estão em curso.
Este caso é um exemplo paradigmático das consequências da inexistência de protocolos ou procedimentos que protejam os acervos históricos dos órgãos de comunicação social, quando estes se extinguem ou são vendidos. O espólio de O Século esteve largos anos encaixotado e sem procedimentos adequados de arquivamento, o que levou à perda de alguns materiais. Está longe de ser caso único. A lei de depósito legal apenas protege as edições publicadas, não abrangendo fotografias, livros ou documentação interna, cujo destino é decidido pelas empresas que os detêm.
O Gerador tentou reconstituir o que aconteceu ao espólio de dois outros jornais nacionais, atualmente extintos: O Comércio do Porto e O Primeiro de Janeiro. Ambos os arquivos foram desmembrados e dispersos após fecharem portas, já que as empresas quiseram apenas desfazer-se deles.
O Comércio do Porto, sediado na Cidade Invicta em 1854, foi um título de relevo que veio suprir a necessidade de um periódico “onde se tratem as matérias económicas, históricas e instrutivas”, segundo o primeiro editorial.
Quando encerrou, em 2005, por deixar de ser economicamente viável, o jornal era propriedade do grupo espanhol Prensa Ibérica. O jornalista Rogério Gomes foi o último diretor deste jornal com mais de 150 anos de história. O Gerador tentou contactá-lo, mas não obteve qualquer resposta.
Apesar disso, o antigo diretor deu uma entrevista a Mónica Delicato, disponível nos anexos da tese de doutoramento Revoluções no fotojornalismo: O caso do jornal O Comércio do Porto (Universidade Fernando Pessoa), na qual afirma que o arquivo fotográfico do jornal estava em condições precárias após o seu fecho. “Mesmo as fotografias mais antigas, praticamente desapareceram todas, e coisas importantes desapareceram por completo, porque, na conclusão do fecho do jornal, os proprietários, que também são proprietários do título, não souberam preservar isso e abandonaram todo o arquivo que esteve durante dois anos num armazém”, conta. Segundo Rogério Gomes, parte do arquivo fotográfico foi “para Vigo e outra parte foi desviada, desaparecendo aos poucos”.
João Palmeiro diz que foi feita uma hasta pública na qual grande parte do espólio foi vendida. “O que foi posto em hasta pública era, antes de mais nada, informação organizada, estruturada, preparada para ser editada, mas que, na maior parte dos casos, nunca tinha sido editada”, explica.
O grupo Prensa Ibérica acabaria, mais tarde, por negociar com a Câmara de Vila Nova de Gaia – por meio do então vereador da Cultura Mário Dorminsky, ex-jornalista que também trabalhou n’O Comércio do Porto –, a concessão do arquivo dos exemplares publicados do jornal. A iniciativa terá sido impulsionada pelo jornalista Rogério Gomes.
Ao Gerador, Mário Dorminsky explicou, por escrito, que, na altura, “foi contactado por um advogado da empresa espanhola” que propôs a integração do espólio no Arquivo Municipal de Gaia. “Tentei saber se haveria espaço ali para este arquivo ser digitalizado e guardado.” A resposta da diretora do arquivo e da presidência do executivo camarário foi positiva. “A entrada do arquivo rapidamente se deu e, após ser digitalizado, foi disponibilizado ao público”, diz o ex-vereador.
O contrato formulado em 2008 definia que o acervo de publicações impressas ficava à guarda do Arquivo Municipal de Gaia durante 10 anos, mas esse período alargou-se até hoje. No site, estão disponíveis versões digitalizadas de livre acesso, mas nada referente ao arquivo não publicado, que, tanto quanto foi possível saber, estará disperso.
Mais de uma década depois do nascimento de O Comércio do Porto e apenas quatro anos passados desde a génese do Diário de Notícias (DN), surgia O Primeiro de Janeiro, em 1868. Assumidamente progressista, foi criado pelas mãos de “intelectuais empenhados na luta cívica e política”, conforme descrito pelo jornalista Luís Miguel Queirós, num artigo do jornal Público.
Em 1870, o jornal vendia cerca de três mil exemplares diários. No final da década, já depois de mudar de instalações por diversas vezes, atingiu os 15 mil.
Após a morte do primeiro proprietário em 1899, António Augusto Leal, o título foi herdado pelo filho homónimo. Acabaria depois por ser vendido e passar várias vezes de mãos até que, a 15 de setembro de 1936, Manuel Pinto de Azevedo Júnior, filho de um dos proprietários, toma as rédeas. Seria o início de 40 anos na direção do jornal que se tornaria o “mais lido pelas classes média e alta do Porto e de todo o norte do país”, segundo a mesma fonte.
Em 1976, a maioria das ações da empresa são vendidas a personalidades do partido CDS, entre elas, Freitas do Amaral. No início dos anos 80, com a sua imagem de independência a deteriorar-se, o jornal começou a entrar em decadência.
Em 1991, o encerramento já parecia irreversível, mas, “um grupo de investidores liderado por Eduardo Costa, proprietário de vários jornais regionais, pegou no título”, diz o mesmo artigo. O investidor começa, no mesmo ano, a ser investigado pelo Ministério Público, sendo depois acusado de fraude por inflacionar as tiragens do jornal Recorte da Província, obtendo subvenções que não lhe pertenciam. Foi condenado.
Este responsável fechou o jornal em julho de 2008, “despedindo ilegalmente mais de 30 jornalistas, impedindo-os de entrar nas instalações da empresa”, segundo descrito na página oficial do Sindicato de Jornalistas. No mês seguinte, o jornal reabria pelas mãos dos jornalistas do Norte Desportivo, sob a direção de Rui Alas Pereira. Os problemas financeiros não desapareceram.
Em 2010, o Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia anunciou a venda do arquivo histórico e alguns bens do jornal centenário, com o valor base total de 223,010 euros. O arquivo, “constituído por um conjunto considerável de envelopes numerados, contendo inúmeras fotografias, desenhos e gravuras e, no verso anotações do evento e/ou das personagens nelas registadas” estava avaliado em 55 mil euros. Também os exemplares publicados desde a sua fundação até 2003, que estavam encadernados em livros em pele, além dos restantes avulso, figuravam na venda e estavam avaliados em 160 mil euros. A par disso, havia material de escritório e equipamentos eletrónicos.
Questionado pelo Gerador, o antigo jornalista Rui Alas Pereira informou desconhecer o paradeiro do arquivo ou quem o comprou na hasta pública. Eduardo Costa também foi contactado, mas até a publicação desta reportagem, não respondeu às solicitações.
Sabe-se, no entanto, que o arquivo municipal de Ponte de Lima detém alguns conteúdos, oriundos de arquivos privados. Também o arquivo municipal de Sintra tem alguns recortes, pertencentes a um arquivo privado.
Não obstante os obituários divulgados pela imprensa, existe ainda um site noticioso em funcionamento denominado O Primeiro de Janeiro. Apesar do nome idêntico, o projeto editorial não parece seguir a mesma linha. O diretor atual é, segundo o site, Eduardo Costa.
Pedro Marques Gomes não tem dúvidas sobre a importância da preservação dos arquivos não publicados dos jornais. O docente da Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa e da Universidade Lusófona explica que “se nós quisermos fazer a história de um órgão de comunicação social, não podemos fazê-lo só através das suas edições”, sendo necessário recorrer a materiais internos.
Também investigador da Fundação Mário Soares, o professor diz confrontar-se “muitas vezes” com o problema de falta de documentação, que não foi salvaguardada por não ter sido considerada a possibilidade de estudar estes temas no futuro. “Imagine que nós queremos estudar a evolução dos vencimentos dos jornalistas, dos diretores dos jornais ao longo do tempo. Isso é fundamental. Se os jornais não preservam essa documentação, é difícil fazer isso”, defende o académico.
“Devíamos pensar sempre sobre estes dois pontos de vista, porque são os dois importantes: a edição do jornal é importante, não só para a história do jornal, mas também para a história do país, do mundo, das sociedades, mas arquivos dos jornais permitem-nos fazer a história da imprensa, dos media”, destaca Pedro Marques Gomes.
O académico acredita que existem muitas lacunas na história da imprensa nacional que poderiam ser colmatadas se os arquivos tivessem sido preservados. “Acho, por exemplo, que ainda falta uma grande história do DN, ou de O Século. Nós não temos. Temos histórias parcelares”, explica.
Para os investigadores citados nesta reportagem, o problema é a desconsideração da importância da prática arquivística, o que resulta na falta de profissionais especializados e de recursos para manter os arquivos, vistos como muito dispendiosos pelas empresas privadas.
Rita Almeida de Carvalho, historiadora e investigadora do Centro de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, reforça que os arquivos das publicações periódicas são importantes “não só para a história dos media”, mas para todo o país, o que justifica sua preservação. “As empresas vocacionadas para os media têm uma importância enorme na história dos países porque a sua capacidade de produzir conteúdos, melhores ou piores, determina muito também daquilo que as sociedades são hoje. Isso é da maior importância para a nossa história”, refere a autora do livro Arquive-se. Uma viagem pelos arquivos nacionais, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (2019).
Para Silvestre Lacerda, esta questão é complexa, pois implica “lidar com processos de propriedade privada”. “O Estado não se pode imiscuir de uma maneira [qualquer] sem razão ou sem uma avaliação, de acordo com a Lei de Bases do Património Cultural”, diz o responsável máximo da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).
Em junho de 2023, chegou a confirmação de uma notícia já anunciada: o jornal A Bola foi oficialmente vendido ao Ringier Sports Media Group, sediado na Suíça, que é composto por cerca de 140 empresas dispersas por 19 países. O negócio envolveu a aquisição dos títulos detidos até então pela Sociedade Vicra Desportiva, nomeadamente o jornal A Bola (jornal, digital e televisão) e a revista AutoFoco. Não foram revelados quais os valores de venda.
Pouco tempo depois de o negócio ser confirmado, foi comunicado aos trabalhadores um despedimento coletivo no âmbito de uma reestruturação da empresa. Segundo Luís Filipe Simões, presidente do Sindicato de Jornalistas, dois terços dos trabalhadores foram abrangidos, entre rescisões amigáveis e despedimentos, ou seja, 100, num total de 150. No que respeita aos arquivos, todos os funcionários alocados a este departamento foram dispensados, de acordo com o responsável, que também é jornalista d’A Bola. “Havia pelo menos duas pessoas que tratavam do arquivo e da preservação e até da evolução para a digitalização e que de um dia para o outro saíram”, diz.
A desvalorização deste arquivo em concreto é uma preocupação do jornalista, que destaca a importância do jornal durante o período da ditadura, quando era veículo de mensagens encriptadas da resistência. “Era um espaço de antifascistas”, afirma Luís Filipe Simões que acrescenta que, por esse motivo, era muitas vezes visado pela Censura.
“É muito curioso porque A Bola teve um papel fundamental para o fim da ditadura”, explica. “Era o jornal, provavelmente, em Portugal, que mais saía e saía para países onde os portugueses não iam nunca. Como o Benfica ia jogar à República Democrática da Alemanha, e lá ia A Bola, contavam-se histórias sobre a República Democrática da Alemanha. [Se o jogo fosse] na Rússia, lá ia A Bola e contavam-se histórias sobre a Rússia.”
Com o despedimento dos responsáveis pelo arquivo, o presidente do Sindicato de Jornalistas teme não só pelo futuro dos trabalhadores, como pelo do espólio, cuja dimensão não sabe precisar, mas que diz ter documentos históricos importantes. Se antes tudo estava devidamente acomodado e arquivado, o futuro levanta dúvidas, até porque o jornal vai mudar de instalações. “Eu não sei se o edifício novo terá as mesmas condições que este tem para o preservar. E acho que corremos aí um sério risco de ter, não só uma história do desporto, mas de ter esta história até do confronto com o Estado Novo [perdida]”, lamenta o jornalista.
Sobre a criação de um mecanismo legal que acautelasse estas situações e protegesse os arquivos, Luís Filipe Simões é perentório: “Não tenho dúvidas nenhumas que era fundamental que existisse.”
Questionado sobre este assunto, Silvestre Lacerda, da DGLAB, disse estar atento ao desenrolar dos acontecimentos. “Eu não sei exatamente o que é que vai acontecer neste momento ao jornal A Bola, mas, se nós analisarmos e verificarmos que existe risco relativamente à [preservação da] documentação, nós vamos provavelmente contactar com os novos responsáveis pela aquisição do jornal e definir uma intervenção”, disse, em entrevista ao Gerador.
Uma forma de intervir é através da classificação do acervo como património nacional, à semelhança do que aconteceu com o DN, que estava em risco de sair do país.
Em 2020, um grupo de duas dezenas de personalidades assinou um requerimento dirigido à DGALB, no qual era pedida a “classificação urgente” do arquivo do DN como “património arquivístico protegido”. De acordo com o texto – subscrito pelo ex-presidente da República Jorge Sampaio, os historiadores José Pacheco Pereira, Fernando Rosas, Irene Flunser Pimentel, entre outros –, pretendia-se “salvar” o acervo do histórico do diário português fundado em 1864, já que o mesmo se encontrava “arrumado num armazém, inutilizável e em risco de poder vir a desaparecer no contexto da crise que atravessa a empresa proprietária, o grupo Global Media”, conforme descrito. O receio era que a empresa fosse vendida e, com ela, o seu arquivo que podia assim ser levado do país. A administração do grupo Global Media, que detém o DN, garantiu que isso não iria acontecer, mas os signatários pediam uma proteção oficial.
No requerimento era referido que o arquivo, composto por 55 mil edições diárias, só estava microfilmado a partir de 1970. O espólio incluía um milhão de fotografias, 3,5 milhões de negativos fotográficos, 50 mil chapas de vidro, zincogravuras e provas de contacto, além de ilustrações originais de artistas de relevo, segundo descrito.
Nesta altura, Pedro Tadeu, que foi subdiretor do DN entre 2010 e 2014, afirmou, num artigo de opinião no Jornal de Notícias (JN) que “o arquivo do Diário de Notícias não existe desde, pelo menos, 1991, quando, na sequência da privatização, o jornal foi comprado pela empresa Lusomundo juntamente com o JN e com outras marcas relevantes da história da imprensa portuguesa”. O jornalista queria com isto dizer que já há algum tempo não existia um arquivo individualizado, mas antes o espólio estava “unificado” juntamente com acervos de outros títulos da Global Media, pelo que a classificação singular do DN seria insuficiente. “Para além do património próprio do DN e do JN, este arquivo inclui materiais de outras marcas do grupo cuja dimensão e relevância, em conjunto, tornam esse património ainda mais significativo e importante para a sociedade”, escreveu o jornalista, que também desmentiu que o arquivo do DN apenas estivesse microfilmado desde 1970, referindo que toda a coleção estava disponível nesse suporte.
O Gerador tentou contactar o jornalista Pedro Tadeu, assim como a direção do grupo Global Media. Enquanto o primeiro não deu resposta, os segundos limitaram-se a dizer que o momento “não era oportuno”.
Não obstante, a classificação do espólio do DN como “tesouro nacional” viria a ser aprovada em Conselho de Ministros, dois anos depois. Abrange o arquivo da redação – dossiês temáticos, recortes de imprensa, recortes de censura, desenhos originais de ilustradores como Bordalo Pinheiro, coleções completas de publicações, etc. –, o arquivo fotográfico e documentação sediada em fundos privados.
Silvestre Lacerda, diretor da DGLAB, reconhece a importância desta classificação “pelo valor patrimonial que toda essa coleção tinha e também como forma de preservação” do espólio que vai muito além das edições publicadas, que estão salvaguardadas por via do depósito legal. “Conhecíamos bem quais eram os mecanismos de produção de informação no âmbito da imprensa e considerámos que havia risco [de desaparecerem]”, diz o responsável, em entrevista ao Gerador.
Signatário do requerimento submetido em 2020, José Pacheco Pereira diz inequivocamente que este instrumento de classificação deveria ser utilizado mais vezes, para salvaguardar outros títulos históricos da imprensa. “No período contemporâneo, desde a Revolução Francesa, os jornais são uma das fontes mais importantes para tudo, particularmente para a história, mas não só”, afirma o historiador que destaca a importância de arquivos de títulos históricos já extintos, como o Comércio do Porto ou o Primeiro de janeiro. “São fundamentais, não há volta a dar.”
Também o historiador Manuel Loff afirma que “não pode haver nada de prescindível nos conteúdos da comunicação social”, pelo que “tem de haver mecanismos de preservação desses arquivos”. Nesse sentido, a questão principal, na sua opinião, é que “a obrigação legal de preservar esse arquivo não pode ser posta em causa por causa da transferência de propriedades.”
A classificação como património poderia ser atribuída a outros jornais, à semelhança do que foi feito com o DN no ano passado. Para isso acontecer, porém, é necessário que o pedido seja devidamente submetido pelos cidadãos, conforme explica Silvestre Lacerda. “A propriedade é privada e, dentro da legislação geral da propriedade privada, a não ser que haja um risco iminente, nós temos também um outro instrumento que é a Lei de Bases do Património Cultural. É uma lei que permite, de alguma maneira, em casos de risco iminente para o património, [proteger os acervos], tem é que se iniciar um processo de classificação, para eventualmente se poder intervir”, explica o diretor da DGLAB.
De acordo com o presidente da assembleia-geral da Associação Portuguesa de Imprensa, João Palmeiro, a classificação é um mecanismo legal que reconhece a importância dos espólios, mas que, não garante, por si só, a preservação e acesso aos materiais. “Infelizmente, a história de Portugal mostra-nos que a classificação de qualquer coisa em património pelo Estado não é segurança de coisíssima nenhuma”, lamenta.
“Se nós olharmos para o orçamento que os Governos portugueses dedicam regularmente à cultura em Portugal, temos de perceber que, muitas vezes, estas classificações são mais carimbos do que processos que nos vão permitir, enquanto cidadãos, de ter uma maneira de usufruirmos daquele bem de uma maneira simples e normal.”
De facto, Silvestre Lacerda referiu, durante a entrevista concedida ao Gerador, que dos cerca de 13 milhões de euros que constituem o orçamento anual da DGLAB, “quase 90 % é para custos fixos”. “Abrir e fechar a porta, por exemplo, aqui na Torre do Tombo, é praticamente um milhão de euros”, explica o responsável, referindo-se a custos de segurança, de manutenção de temperatura e humidade para conservação dos documentos, do Data Center – cuja capacidade de armazenamento está a ser expandida de 750 terabytes para 3 betabytes –, processos de restauro, etc.
Seja como for, João Palmeiro defende que a classificação é sempre positiva, mais que não seja para alertar a sociedade para a importância de preservar os acervos de órgãos de comunicação. Apesar disso, acredita que “os proprietários e acionistas das empresas privadas têm a estrita obrigação de participar na preservação desses documentos”.