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REPORTAGEM
 DEMOCRACIA 

REFÉM DA FALTA DE RECURSOS, MEMÓRIA DOS MEDIA LOCAIS ESTÁ EM RISCO DE DESAPARECER

Reportagem de Sofia Craveiro
Edição de Tiago Sigorelho
Design de Marina Mota
Comunicação de Carolina Esteves e Margarida Marques
Digital de Inês Roque

Perante o crónico problema da escassez de recursos, os órgãos de comunicação social locais e regionais preservam como podem o seu património. A digitalização está por consolidar neste setor, detentor de materiais históricos ímpares. A memória coletiva local está, em muitos casos, armazenada em suportes obsoletos ou pouco seguros, que correm o risco de se tornar inacessíveis. Apesar das recomendações do regulador, medidas do Governo para a comunicação social mantêm os arquivos fora das prioridades.

 

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Na redação da rádio Voz da Planície, em Beja, descansam cerca de 20 anos de história. Ali, no número 4 da Rua da Misericórdia, está uma coleção de discos DVD com a emissão completa da estação alentejana desde 2004. “Começámos [nessa altura] a arquivar tudo, 24 horas sobre 24 horas”, explica Luís Silva, técnico de som e multimédia da referida emissora, a quem compete a salvaguarda do material radiofónico.

Organizados por ordem cronológica, nestes DVDs só é possível encontrar algum conteúdo se se souber a data e hora aproximada de emissão do mesmo. Não existe nenhum sistema elaborado de catalogação, pois os recursos não o permitem. “Criar um acervo, em que estivéssemos a adaptar tudo, a criar uma grelha diária de tudo o que passou nesses dias, torna-se incomportável. Se nem numa rádio [nacional] diária eles conseguem fazer isso, imagine uma pequena rádio local”, esclarece Luís Silva.

A decisão de arquivar a emissão na íntegra foi tomada no mesmo ano em que a estação alentejana passou a constar nos registos da Entidade Reguladora da Comunicação (ERC). Antes disso, o que havia, desapareceu.

É que a Voz da Planície nasceu em 1987, cerca de um ano antes da aprovação da Lei da Rádio. Sob o pretexto da legalização, este diploma acabaria por ser a guilhotina que pôs fim ao reinado das rádios pirata em Portugal. “Do histórico dessa altura, nós não temos nada”, lamenta Luís Silva. “Alguns daqueles ‘carolos’ que gostavam de ter algum tipo de registo, eventualmente gravaram [coisas] para eles próprios, mas existe um registo muito curto, muito pouco explorado e muito pouco conhecido da fase pirata”, diz o responsável.

Foi “a evolução da tecnologia” a responsável por tornar os suportes obsoletos e as emissões efémeras, segundo diz. A falta de recursos, aliada a alguma inexperiência, seriam os ingredientes finais para o desaparecimento dos programas de então.

Após alguns anos de inatividade, a Voz voltou a ouvir-se nas planícies, desta feita já dentro dos trâmites legais. Na viragem do milénio, a preservação dos conteúdos começa a ser uma preocupação, que, ainda assim, ficava à mercê dos poucos recursos disponíveis. A emissão era gravada e preservada, pelo menos durante os 30 dias exigidos pela lei. Depois disso, havia mais notícias para dar. “Chegávamos ao fim, pegávamos nessas cassetes todas, dávamos a volta e começava tudo novo. As cassetes eram outra vez todas regravadas. Porquê? Porque, simplesmente, nessa altura não havia condições humanas, nem físicas, nem nada para se ir arquivando tudo”, explica Luís Silva.

Em 2004, o DVD surgiu como uma opção barata, fácil de usar e com uma capacidade de armazenamento bastante razoável. Foi a solução encontrada para garantir a preservação do acervo até à atualidade. “Um pack de DVDs custa [cerca] de 25 euros. Nós, com 50 euros, conseguimos ter o ano inteiro arquivado”, diz o técnico.

 

MEMÓRIA ANALÓGICA

CDs e DVDs são um recurso barato e fácil de usar, vantagens relevantes para órgãos de comunicação com recursos limitados. Apesar disso, por serem um suporte praticamente obsoleto, levantam dúvidas quanto ao seu uso futuro, já que os dispositivos de leitura podem deixar de funcionar.

As dificuldades técnicas e tecnológicas resultam em problemas práticos: mesmo estando os materiais guardados, não estão devidamente catalogados, o que impede ou dificulta a pesquisa e, consequentemente, a sua utilização pelos próprios meios de comunicação que a detêm. Fotografias avulsas sem identificação e documentos encaixotados são também desafios recorrentes.

No caso da Rádio Pico, sediada na ilha açoriana homónima, grande parte do acervo fotográfico perdeu-se quando os discos externos se avariaram. Imagens de personalidades políticas, de edifícios e outros elementos relevantes estavam organizadas e eram facilmente acessíveis. Quando os discos externos deixaram de funcionar, desapareceu tudo. “Já por duas vezes perdemos essa informação toda”, diz Emanuel Pereira, diretor de informação.

Atualmente utilizam o software AVA para aceder ao histórico de conteúdos publicados online. Serve como uma espécie de arquivo vivo do site. Já a emissão em antena só é guardada durante os 30 dias obrigatórios por lei. Além disso, arquivam programas ou entrevistas específicas que sejam particularmente relevantes. Não há recursos para mais. “Houvesse discos para guardar as emissões todas…”, ironiza Emanuel Pereira.

A falta de meios humanos e financeiros é um problema de tal ordem que a Rádio São Miguel, em Coimbra, abandonou por completo a produção jornalística. “Há 20 anos atrás, eu lembro-me que nós tínhamos entrevistas e eu própria fiz algumas, mas depois, devido quer à conjuntura económica destes meios regionais, quer também à falta de recursos humanos – porque cada vez há menos gente a vir para estes sítios – [deixou de se fazer]. Uma pessoa sozinha faz tudo, então nós optámos [por abandonar a produção jornalística], diz Manuela Freire, locutora.

Esta emissora, que hoje se dedica totalmente a programas de entretenimento e animação, não guarda absolutamente nada além do período legal a que está obrigada a fazê-lo, já que não considera que tal se justifique.

Não é possível quantificar com exatidão a prevalência destas práticas, já que não existem dados recentes sobre o assunto. No entanto, em 2012, Alberto Sá, Professor Auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, elaborou, no âmbito do seu doutoramento, o estudo empírico Arquivos dos Media e Preservação da Memória: Processos e Estratégias do Caso Português na Era Digital. Muitas das suas conclusões mantêm-se atuais.

“Do estudo que fiz havia, notoriamente, um conjunto de órgãos que já estavam atualizados em função das tecnologias de digitalização e da utilização das bases de dados para a produção de conteúdos e produção noticiosa e depois havia [outros], nomeadamente os regionais, que tinham ainda muito trabalho por fazer nesse aspecto”, diz, em entrevista ao Gerador.

“Havia a consciência de que uma forma de preservar [o material analógico] era a digitalização e aqui começavam as dificuldades, porque a digitalização não é simples”, sublinha. “É preciso ter em conta os formatos dessa digitalização, os equipamentos mais adequados, questões de resolução, de espaço e, sobretudo, questões de operacionalizar essa digitalização”. É que só assegurando esses aspectos se torna possível a consulta do arquivo pelos jornalistas e comunidade em geral. Caso contrário, esse material acaba por ser inútil.

A necessidade constante de atualização dos suportes dificulta a evolução. “Havia a noção de que isso era preciso resolver, mas também que implicava um investimento continuado” não comportável para muitos órgãos de comunicação. Esta questão veio a agravar-se com a crise dos media, que acabou por atrasar os processos de digitalização, segundo o académico.

Em junho de 2023, a ERC publicou um estudo sobre A Rádio Local na Sociedade Portuguesa, onde incluiu entrevistas a especialistas e investigadores, assim como respostas a questionários feitos a ouvintes de rádios locais. A fragilidade dos arquivos e a falta de meios para concretizar a digitalização dos mesmos é um dos problemas destacados.

“Como país, ainda não somos suficientemente sensíveis ao valor patrimonial dos registos sonoros. Não há ainda uma estrutura que faça o arquivo das produções radiofónicas e, do ponto de vista da investigação académica. Isso é uma grande lacuna”, afirma Madalena Oliveira, investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, numa entrevista citada no referido estudo.

“Não tenho dúvidas, [se existissem arquivos sonoros organizados] teríamos um património riquíssimo da história local, que não é acessível por nenhuma outra via, senão aquela que as rádios efetivamente poderiam ajudar a preservar”, diz ainda a académica.

Neste sentido, umas das recomendações que a ERC faz à esfera executiva é, precisamente, a adoção de medidas que reforcem a digitalização das rádios locais com vista à preservação dos arquivos sonoros.

 

FALTA DE RECURSOS

No Jornal do Fundão a preocupação com a preservação dos arquivos sempre existiu. As edições impressas estão encadernadas desde 1946, ano da sua fundação. Também o espólio fotográfico e documental está devidamente arquivado (na redação e também na Torre do Tombo).

A memória do tempo da ditadura é marcante para este semanário beirão, que defendeu ativamente a democratização cultural e enfrentou as piores consequências. Entre os documentos mais preciosos dessa época estão os relativos à suspensão do semanário, caso sui generis em Portugal.

A história é conhecida: em 1965, o Jornal do Fundão foi suspenso pela censura durante seis meses, por ter noticiado o reconhecimento de Luandino Vieira. O escritor tinha recebido o Grande Prémio de Novela da Sociedade Portuguesa de Escritores, pelo seu romance Luuanda. Estava preso no campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, por defender a independência de Angola e ser, inclusive, militante do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola). Era considerado um “terrorista” pelo regime, pelo que a mera menção ao seu nome num jornal era já um ato insolente, mais ainda por estar incluído num suplemento literário que não tinha sequer sido sujeito à censura prévia.

“É manifesta a falta de colaboração desse jornal com os Serviços de Censura, revelada, quer através de 16 anotações disciplinares, constantes do respetivo registo, correspondentes a faltas diversas, quer, no que se refere agora e muito especialmente, ao “suplemento literário” (…)”, lê-se numa das missivas enviadas ao Jornal do Fundão pela Direcção dos Serviços de Censura.

A suspensão por um período de tempo tão alargado foi das medidas mais severas que os Serviços de Censura alguma vez tomaram contra um órgão de comunicação social.

Notícia sobre o prémio atribuído a Luandino Vieira e notificação dos Serviços de Censura arquivados no Jornal do Fundão

Na pasta dedicada a este episódio, guardada num cofre existente na redação do Jornal do Fundão, estão, a par com os documentos da sanção, dezenas de cartas assinadas pela população e dirigidas ao próprio Presidente do Conselho de Ministros, António Oliveira Salazar. Nelas pedia-se o término da suspensão e frisava-se a importância do periódico para a comunidade. A lista de assinaturas inclui personalidades de vários quadrantes, nomeadamente da cultura e militares.

Para evitar a sua degradação, estes documentos estão devidamente digitalizados. São muito solicitados para consulta, o que, para Nuno Francisco, diretor do Jornal do Fundão, é motivo de orgulho e confirmação da sua relevância. Apesar disso, lamenta não haver meios para digitalizar o espólio na totalidade e que ainda estejam em falta alguns documentos. “Há uma coleção, algumas páginas de [provas de] censura que não estão na nossa posse, porque foram cedidas a uma instituição [para exposição], e ainda não regressaram à base”, lamenta, sem querer adiantar mais detalhes.

A fragilidade económica da imprensa regional é um problema que não apenas ameaça a sobrevivência dos órgãos de comunicação, como prejudica a preservação da sua memória. “Um jornal de 78 anos, como tem o Jornal do Fundão, [possui] milhares de páginas que necessitam de se digitalizar e salvaguardar. Há outros [jornais] centenários, bem mais velhos, onde o problema se agrava ainda mais”, frisa Nuno Francisco, que é também docente na Universidade da Beira Interior (UBI).

“Os jornais não conseguem libertar ou ter fundos para iniciar um processo de digitalização”, pelo que esta “tem de estar dependente de entidades exteriores, que tenham interesse naturalmente, em salvaguardar aquele património comum”, acrescenta.

A Aurora do Lima e a intervenção autárquica

Assume-se como “o decano dos periódicos continentais” e afirma a sua capacidade de resistir desde o nascimento, a 15 de setembro de 1855. “Como periódico soube sobreviver a quase todos os regimes, desde o liberalismo constitucional monárquico, à implantação da República, resistindo aos 48 anos da Ditadura Nacional e sobrevivido nos pós-25 de abril de 1974, por vezes, com períodos difíceis para a imprensa”. Assim está descrito na página oficial do periódico de Viana do Castelo.

Manuel Sottomaior é jornalista n’A Aurora do Lima desde janeiro de 1996, um de dois que atualmente compõem a redação, além do diretor.

Em entrevista ao Gerador, explica que o arquivo do jornal é maioritariamente composto pelas edições publicadas desde a sua fundação. Esse espólio está devidamente encadernado, em livros volumosos de grande dimensão e capa dura, prática habitual nos jornais impressos. O acervo esteve guardado nas instalações do jornal até 2021, ano em que foi vendido ao Município de Viana do Castelo por 170 mil euros.

O protocolo estabelecido tinha como objetivo a preservação do espólio mas também a sua digitalização e disponibilização ao público. Atualmente, estão digitalizados 100 anos de edições, publicadas entre 1855 e 1955, com algumas falhas já existentes antes da venda da coleção, segundo fonte da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo.

Previa-se ainda a constituição de uma hemeroteca, que ficaria com dependência direta da biblioteca municipal, mas esse projeto está ainda por concretizar. O acordo inicial também referia a compra do imóvel histórico onde está sediado o Aurora, mas o negócio não foi avante. Neste edifício estão várias máquinas de impressão antigas, do tempo em que o jornal tinha a sua própria tipografia.

Após a venda à autarquia, a direção do jornal ficou ainda na posse de algumas edições impressas que estavam repetidas, uma pequena biblioteca composta sobretudo de livros oferecidos e um número indeterminado de fotografias dispersas.

O negócio foi vantajoso para o jornal. Permitiu não só a preservação do acervo físico – que não estava assegurada nas instalações da redação -, como também levar a cabo a digitalização, segundo descrito por Manuel Sottomaior. “O jornal não tinha qualquer possibilidade financeira [para fazer] isso”, diz. “Depois a venda também constituiu uma receita, não é? E o jornal não perdeu porque fica à disposição da comunidade”, acredita o jornalista.

 

DIGITALIZAÇÃO MIMETIZA O PAPEL IMPRESSO

Os desafios inerentes à digitalização dos media regionais não se cingem ao arquivamento dos conteúdos. Nos jornais nomeados nesta reportagem é possível verificar que os próprios métodos de trabalho estão predominantemente orientados para o suporte de papel.

A produção noticiosa é feita para o jornal, sendo o site considerado um meio “menor”, que não merece o mesmo cuidado. Isso reflete-se no que é guardado. A digitalização acaba por ser sinónimo de ficheiros PDF correspondentes às edições em papel. A preservação de artigos exclusivamente publicados online, ou da própria homepage, não é considerada tão relevante.

“Para o bem e para o mal, nós funcionamos em regime impresso”, afirma Nuno Francisco, diretor do Jornal do Fundão. “Sim, temos conteúdos online que não estão no papel, mas em termos de preservação arquivística – ou como queira chamar -, continuamos a estar muito vocacionados para guardar o que é impresso”, diz o responsável.

O mesmo acontece n’O Mensageiro de Bragança. Neste semanário octogenário de inspiração cristã, a prioridade é a edição em papel, segundo António Rodrigues, diretor. “O site é um formato complementar, cobre o imediatismo e serve de ponto de contacto com a nossa marca, para além de [ser] um repositório de todas as edições mais recentes”, ou seja, da última década.

Partindo da sua experiência enquanto investigador da imprensa regional, Pedro Jerónimo confirma: “Os media regionais cuidam dos seus arquivos, se estivermos a falar no domínio do impresso, no caso dos jornais. O que é físico, eles cuidam. Agora, o que é digital não [cuidam]”.

O especialista do LabCom – Unidade de Investigação de Comunicação e Artes, sediada na UBI, dá o exemplo da renovação do site do jornal Região de Leiria, caso que estudou aquando da elaboração da sua tese de doutoramento: quando a mudança foi feita, não foi acautelada a possível perda de informação. “É um crime. Não se garante a preservação de tudo o que foi publicado até à data da renovação, porque se muda de servidor, muda-se de empresa [fornecedora do serviço] e ninguém cuida daquilo”, lamenta.

 

Embora detenham sites e perfis de redes sociais onde divulgam informação, estes canais acabam por funcionar apenas como um complemento, onde os conteúdos são uma mera “transposição” do jornal impresso. “Há aqui um elemento que acaba por determinar essas escolhas, que tem a ver com o modelo de negócio. Se ele ainda está muito centrado no impresso e sobretudo na publicidade, as empresas e os meios tentam preservar isso”, explica Pedro Jerónimo.  “A estratégia é: “não vamos pôr tudo na web, porque temos um jornal para vender. Então, o que às vezes fazem é publicar tipo um lead da notícia que vai sair daqui a dois ou três dias”.

Nenhum dos periódicos mencionados anteriormente faz o arquivamento sistemático das páginas do seu site, embora quase todos disponham de sistemas de proteção dos dados e backup, na eventualidade de serem alvo de ataques informáticos.

“Temos muito para fazer aí. Ainda estamos muito aquém do que era desejável”, confirma ao Gerador o administrador do jornal Região de Leiria, Francisco Rebelo dos Santos. Embora reconheça a importância de atualizar as práticas de arquivo dos órgãos de comunicação regionais, frisa que “precisamos de recursos para isso”. “Nós estamos no permanente esforço de digitalização de edições antigas, e agora sentimos, claramente, que temos muito a fazer e a melhorar no campo dos arquivos”, acrescenta.

A prioridade dada ao papel explica-se, também, pelo facto de a maior parte dos leitores de jornais regionais pertencer a uma população mais envelhecida, conforme referido no estudo A Imprensa Regional Portuguesa Como Pequeno Bastião da Imprensa Tradicional no País, publicado em 2019 pelos investigadores Tiago Lima Quintanilha, Miguel Paisana e Gustavo Cardoso do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. Como o público mais fiel continua a preferir o papel, todo o trabalho destes órgãos acaba por ser orientado para esse formato, segundo o mesmo estudo.

 

 

“DECADÊNCIA DIGITAL”

Baixo Alentejo e Algarve ganharam um novo órgão de comunicação totalmente digital em setembro de 2011. O Sul Informação nasceu não só para ser uma voz ativa da região, como para funcionar como instrumento de memória que a fundadora e diretora, Elisabete Rodrigues, faz por preservar.

Arquivar os conteúdos noticiosos produzidos “sempre foi uma preocupação” para a jornalista, que trabalhou em diversos títulos nacionais de referência, antes de se dedicar à imprensa regional. “Os órgãos de comunicação social, sobretudo a nível local ou regional, têm essa missão, de dar as notícias daquilo que se passa nas terras, nas regiões, e é fundamental que essa memória seja preservada para o futuro, porque nós próprios, de vez em quando, usamo-la para fazer certos trabalhos”, diz Elisabete Rodrigues, em entrevista ao Gerador.

Neste sentido, o material recolhido e publicado é habitualmente guardado em discos externos, particularmente as fotografias e vídeos. As gravações sonoras de entrevistas são guardadas por cada jornalista, de forma autónoma, nas suas pastas pessoais. Já os textos noticiosos e reportagens ficam no site do Sul Informação, onde podem ser consultados pelos leitores. “Nós até temos a possibilidade de, por exemplo, guardar as reportagens em PDF, mas não fazemos isso”, lamenta Elisabete Rodrigues. Assim, o próprio site acaba por servir de plataforma de arquivo, como aliás acontece em muitos outros órgãos de comunicação, nacionais e regionais.

No final de 2024, o site do Sul Informação esteve em processo de atualização. São conhecidos casos de órgãos de comunicação onde esta transição foi feita sem que os conteúdos publicados fossem devidamente acautelados, culminando na sua perda. Um exemplo conhecido é a rádio TSF.

Estas situações são motivo de preocupação para Elisabete Rodrigues, que diz estar garantida a preservação da informação do site. Apesar disso, admite que a situação está longe de ser a ideal. “De facto, depois de me serem colocadas estas questões, fez-me pensar que temos também que começar – pelo menos naquilo que é mais importante e eventualmente mais polémico -, a guardar isso também a nível mais centralizado”, afirma.

 

Embora esteja a par do trabalho levado a cabo pelo Arquivo.PT – que guarda páginas de sites no domínio .pt -, esta não é uma ferramenta utilizada ativamente pela equipa do Sul Informação.

O mesmo relata João Baptista, diretor e fundador do site Mais Ribatejo. Jornalista há mais de três décadas, João Baptista era chefe de redação do jornal O Ribatejo, encerrado em 2018. Os problemas financeiros deram origem a dívidas, que acabaram por ditar o fim do periódico.

Na altura em que se despediu dos leitores, o diretor e administrador Joaquim Duarte apontou o dedo ao advento das redes sociais e argumentou que “as notícias no papel envelhecem antes de chegarem ao leitor”.

As edições em papel foram doadas ao Arquivo Ephemera. Já as milhares de fotografias guardadas em caixotes simplesmente foram descartadas.

Perante a falta de oportunidades de trabalho, João Baptista fundou a plataforma Mais Ribatejo. “Como já tinha mais de 50 anos ninguém me deu trabalho, por isso decidi criar o site.” Sozinho, o jornalista montou a estrutura do zero e tornou-se uma espécie de faz-tudo no jornal onde é o único responsável. Escreve as notícias, faz reportagens com fotografia e vídeo, gere o site, as redes sociais e resolve quaisquer problemas técnicos que possam surgir.

No caso de ataques informáticos, possui um backup do site, que lhe permite recuperar a informação perdida, mas não tem um sistema de arquivamento duradouro da informação publicada.

De facto, nenhum dos órgãos de comunicação mencionados anteriormente está focado no arquivamento da informação publicada online, nem a reconhece como prioridade. Muitos deles, mesmo já tendo ouvido falar do Arquivo.PT – e da possibilidade que oferece, de arquivar páginas indicadas pelo utilizador – não a utilizam. Encontrámos apenas uma excepção a esta regra: o extinto jornal digital O Corvo.

Samuel Alemão, jornalista e fundador deste órgão focado na área de Lisboa, quis salvaguardar o trabalho desenvolvido durante o período em que o projeto esteve ativo (1 de Março de 2013 e 29 de Maio de 2019). Após o jornal ter cessado atividade, contactou o Arquivo.pt para esse efeito. Hoje os conteúdos continuam acessíveis. “Acho que é muito importante os jornais regionais também zelarem pela sua memória”, explica.

E há dados que corroboram esta afirmação: em maio de 2024 um estudo do Pew Research Center revelou que um quarto das páginas web criadas entre 2013 e 2023 já não existem. Segundo a análise feita no relatório When Online Content Disappears, 38% das páginas web existentes em 2013 já não estão disponíveis. Em relação a 2023, há 8% na mesma situação, o que demonstra que quanto mais antigos são os conteúdos, mais acentuada é a “decadência digital”, conforme descrito. Um ponto relevante é que, na maioria dos casos, os links permanecem ativos mesmo que os conteúdos tenham sido removidos.

O estudo analisou sites governamentais, de notícias e links incluídos na secção “referências” da Wikipédia. 54% das páginas desta plataforma colaborativa possuem pelo menos um link de uma página inexistente. No caso dos sites de notícias, a percentagem é de 23%.

Quando algum trabalho do Sul Informação apresenta particular relevância, é impresso para ser guardado e arquivado em papel. “O papel também tem os seus problemas. O papel arde, é destruído pela água, por exemplo, mas às vezes, até para uma maior facilidade de acesso, há coisas que eu simplesmente guardo, como sempre se fez, em pastinhas”, assume Elisabete Rodrigues.

Uma das razões é, também aqui, a rapidez com que os suportes informáticos ficam obsoletos. “A tecnologia, que hoje em dia evolui a todos os segundos, acaba por ter esse problema. Nós hoje guardamos. Ok, fica guardado. Depois temos que ter a esperança que no futuro ainda haja tecnologia que permita voltar atrás, digamos assim, e ler [o que ali temos]”, diz a jornalista, para quem grande parte do problema está na ausência de legislação. “Não há nada [leis] no digital ou no som, e isso eu acho que vai criar problemas. Aliás, já está a criar, porque as publicações que se editaram depois desapareceram”, acrescenta.

Também João Baptista reconhece a dimensão do problema e acredita ser necessário apoios estatais para que se possa resolver. “De facto é preocupante pensar que os historiadores do futuro não terão informação na qual se possam apoiar para estudar o tempo em que vivemos agora”, diz.

Clica na imagem para ver o exemplo do
ArquivoNC – Arquivo web do jornal Notícias da Covilhã.

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Numa tentativa de criar um arquivo que possa funcionar de forma independente às plataformas propriamente ditas do jornal, surgiu o ArquivoNC - arquivo web do jornal Notícias da Covilhã. O site foi desenvolvido no âmbito do projeto final de curso do 1.º ciclo em Engenharia Informática da Universidade da Beira Interior (UBI) e permite aceder a uma década de páginas web do semanário beirão.

A iniciativa surgiu após um período de crise, durante o qual o jornal chegou a deixar de ser publicado. A edição em papel cessou e o site ficou inativo, colocando em causa o acesso da população à informação ali publicada. “Se é verdade que, entretanto, o jornal Notícias da Covilhã está outra vez a ser impresso [e distribuído de forma gratuita em vários pontos da cidade], a verdade é que eles nunca tiveram a capacidade de recuperar os conteúdos que tinham sido perdidos”, diz, ao Gerador, Ricardo Campos, professor da UBI que orientou o projeto desenvolvido por Rodrigo Silva, aluno de engenharia informática da mesma instituição.

“Este projeto, de alguma forma, acabou por recuperar esses conteúdos desde 2009”, acrescenta o docente, destacando a importância do Arquivo.PT para esse efeito.

“Nós conseguimos ter acesso a quase três mil versões do website, [guardadas] entre 2009 e 2019.” Mas algumas versões ou estavam corrompidas ou não tinham informação. Na altura podiam ter só guardado o sítio em si, mas não o conteúdo que estava lá, explica Rodrigo Silva. No fim de contas, estavam guardadas “quase três mil notícias, dessas, 1300 imagens e quase 400 capas do jornal”, acrescenta.

A partir daí foi construído um site autónomo que reúne toda a informação recuperada através do Arquivo.PT numa plataforma mais dinâmica e acessível, com diferentes funcionalidades de pesquisa.

Para Ricardo Campos, esta é uma forma de rentabilizar a informação armazenada numa plataforma de serviço público, passível de ser replicada por outros órgãos de comunicação.

 

Um novo plano de Ação para os media foi apresentado pelo Governo a 8 de outubro de 2024. As medidas previstas incluem a revisão da legislação do setor, que deverá ser integrada num futuro “Código da Comunicação Social”. A eliminação gradual da publicidade na RTP e a reestruturação da estação pública, nomeadamente através da redução de pessoal (250 trabalhadores) foi um dos pontos mais polémicos. No âmbito dos media regionais, o plano refere uma avaliação do atual regime de incentivos do Estado à Comunicação Social de âmbito local e regional, o apoio à distribuição de publicações periódicas para zonas de baixa densidade populacional, a garantia de distribuição de publicações periódicas em todos os concelhos do país, a duplicação do Porte Pago, a promoção de formações e ações de modernização, a valorização das rádios regionais ou locais, entre outras.

O Gerador questionou o Ministério dos Assuntos Parlamentares para saber se alguma destas medidas – nomeadamente as relativas ao setor como um todo -, irá abranger a questão da digitalização e preservação da memória, mas não obteve resposta.

Além disso, foi solicitado um esclarecimento à Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto da Assembleia da República, que indicou que, até ao momento, “nada tem sobre a matéria em apreço”.

Também os partidos com assento parlamentar, nomeadamente PCP, PS, BE, LIVRE, PAN, PSD, IL, Chega e CDS foram contactados. Apenas o PAN respondeu.

Alertado pelas questões colocadas no âmbito desta reportagem, o partido propôs uma alteração ao Orçamento de Estado para 2025, na qual defendeu a criação de um “Programa de apoio à transição digital para órgãos de comunicação social local”.

Segundo o documento, o programa será criado pelo Governo em 2025, “em articulação com os órgãos de imprensa local e regional” e prevê “a atribuição de auxílios à digitalização do arquivo destes órgãos de imprensa, garantindo a sua proteção e salvaguarda”.

A proposta do PAN foi votada dia 27 de novembro de 2024, na Assembleia da República e foi aprovada com os votos contra do PSD e CDS, abstenção do Chega e voto a favor do BE, LIVRE, PS, PCP e IL.

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