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Texto de Débora Cruz e Sofia Matos Silva
Edição de Débora Dias e Tiago Sigorelho
Ilustrações de Frederico Pompeu
Produção de Sara Fortes da Cunha
Comunicação de Carolina Esteves e Margarida Marques
Digital de Inês Roque
15.04.2024
O assédio sexual é a segunda forma de violência de género mais comum em contexto académico, ficando apenas atrás da violência psicológica, com cerca de um em cada três estudantes e trabalhadores a serem alvo deste tipo de comportamento. O desequilíbrio de poder muitas vezes verificado entre agressores e vítimas pode contribuir para a desvalorização das práticas de assédio entre pessoas que ocupam posições semelhantes. Ainda assim, especialistas consideram que a horizontalidade é uma “ficção” na maioria dos casos. O Gerador contactou instituições de ensino superior citadas em testemunhos recolhidos de assédio sexual para saber mais sobre as suas políticas e a sua atuação nestes casos.
O Provedor do Estudante da Universidade do Porto acredita que para denunciar casos mais sensíveis, os estudantes preferem o anonimato do canal de denúncias. O primeiro Provedor do Estudante da Universidade de Lisboa diz não ter recebido uma única queixa de assédio sexual em 12 anos.
Em novembro, divulgámos um formulário para obter relatos de pessoas que tivessem conhecimento, testemunhado ou sofrido algum tipo de comportamento abusivo em contexto académico. Em três meses, recebemos 83 respostas referentes a 22 instituições portuguesas, incluindo universidades, institutos politécnicos e escolas superiores não integradas. O Gerador entrou em contacto com 75 associações de estudantes de universidades e politécnicos portugueses com o objetivo de divulgar o questionário junto dos respetivos estudantes. Apenas duas responderam.
Esta reportagem é a segunda da investigação Abuso de Poder no Ensino Superior, publicada no Gerador ao longo dos próximos meses.
Quando começou a falar com outras estudantes sobre o que lhe estava a acontecer, Rita [nome fictício a pedido da entrevistada] percebeu que a pessoa responsável pela instabilidade na sua vida tinha um padrão de comportamento muito bem delineado. O alegado abusador, um estudante uns anos mais velho, usava a associação de estudantes para se aproximar de alunos de primeiro ano acabados de chegar a um mundo novo numa cidade nova, longe das redes de apoio que tinham até à altura e com novas redes de apoio por construir. Estes alunos tornavam-se nos seus pupilos, a quem prometia ajuda a navegar as burocracias, trabalhos e esfera social da universidade.
Rita conheceu-o logo no dia da inscrição, quando se deslocou à faculdade para fazer a matrícula no primeiro ano de licenciatura. Foram passando tempo juntos e começaram uma relação. Aos poucos, começou a perceber que nada era o que parecia ser. Por muito que inicialmente o estudante parecesse ser alguém com muitas amizades e de quem as pessoas gostavam, só tinha amigos de primeiro ano e os alunos mais velhos evitavam-no. Ajudava-a nos trabalhos, mas dizia aos professores que tinha sido ele a fazê-los, e frequentava as suas aulas, nas quais não estava matriculado, e outras aulas de primeiro ano.
A certa altura, pediu-lhe para ficar no seu apartamento quando teve de mudar de casa, e nunca mais saiu. Invadia o seu espaço, o espaço das suas amigas, ao mesmo tempo que a isolava de todas as outras pessoas, inclusive de família e amigos antigos. Chegava a enviar mensagens a amigas suas, a levar pessoas que não conhecia para o seu apartamento, e a invadir o espaço das suas colegas de casa ao ponto de uma delas se ter mudado.
Com o tempo, através de conversas com outros estudantes, começaram a chegar-lhe rumores aos ouvidos: assediava estudantes de primeiro ano em festas, convidava alunas a visitar a associação de estudantes, da qual tinha chave, quando a sala estava vazia. Quando alguma o rejeitava, era violento. Perseguia amigas suas e ameaçava-as. Agredia sexualmente estudantes, a par das já recorrentes agressões psicológicas e físicas. Pela altura das primeiras férias de verão desde que tinha entrado na universidade, já estava praticamente sozinha, ou por ele a ter isolado, ou por as pessoas terem começado a desconfiar dela também.
Rita é uma das pessoas que escolheu partilhar as suas experiências de abuso de poder com o Gerador. É, assim, uma das fontes ouvidas até ao momento no decorrer da investigação a que nos temos dedicado nos últimos meses e umas das pessoas que preencheu o formulário divulgado em novembro de forma a obter relatos de quem, em contexto académico, tivesse conhecimento, testemunhado ou sofrido assédio moral e/ou sexual, bem como situações de extrativismo intelectual.
Em três meses, recebemos 83 respostas, 70 das quais de pessoas que se identificam como mulheres. 89,2% dos participantes dizem ter sofrido pessoalmente algum tipo de abuso, 41% recorreram a apoio psicológico e 60,2% admitiram não sentir, ou ter sentido, conforto e segurança no seu estabelecimento de ensino. Ainda assim, 62,7% não denunciaram os casos.
Ao conjunto de entrevistados, foi explicitado que não constitui um propósito desta investigação proceder à identificação de alegadas vítimas e agressores, mas antes perceber a dimensão e gravidade destes problemas no ensino superior português, e quais as medidas que estão (ou que devem) ser adotadas pelas instituições académicas para a sua prevenção e combate.
Queremos perceber as circunstâncias que dificultam as denúncias de casos de assédio e explorar o modo como as estruturas hierárquicas e as dinâmicas de poder que existem no ensino superior são facilitadoras destes abusos.
Rita foi estudante da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP) entre 2018 e 2022. O início da pandemia da covid-19 e os confinamentos que se seguiram permitiram-lhe afastar-se do estudante que caracteriza como problemático, tóxico, invasivo, manipulador, metódico e vingativo. A pressão a que foi submetida, aliada à falta de autoestima, levaram-na a duvidar de tudo durante bastante tempo. Desenvolveu vários problemas psicológicos, teve acompanhamento profissional, e só com o passar do tempo e ao conhecer pessoas diferentes é que começou a perceber que nada do que se tinha passado era normal.
Tentou afastar-se de tudo o que envolvia aquela pessoa para se proteger, mas os relatos continuaram a surgir. Já no final do seu último ano letivo na FBAUP, foi criada uma página web para denunciar as práticas do alegado agressor, e tentar avisar as novas estudantes deste tipo de padrões comportamentais. Uma equipa de cinco pessoas participou nesse processo e uma equipa inicial de dez imprimiu e distribuiu autocolantes com códigos QR pela faculdade.
Nesta página, o estudante é caracterizado como “violador”. Numa caixa intitulada “r.ape”, as criadoras da página expõem que o acusado: “Tira o preservativo sem o consentimento e conhecimento da parceira”, “Mostra nudes [fotografias que envolvem nudez] privadas a outras pessoas sem a autorização dos proprietários das fotografias”, “Não respeita um ‘não’, e força-te a fazer coisas que não queres” e “Impõe situações que comprometem o teu bem-estar psicológico, humilhando-te”.
Ao Gerador, tanto Rita como as criadoras do site (que preferem não ser identificadas) e duas representantes da associação de estudantes (a AEFBAUP) explicam que foi a partir da criação da página online que a situação começou a ser mais discutida na faculdade, ao ponto de docentes se começarem também a envolver. O estudante em questão deixou de frequentar a FBAUP durante algumas semanas; porém, no início do ano letivo seguinte, as queixas de mulheres a frequentar o primeiro ano de licenciatura voltaram a surgir, segundo as criadoras da página online.
Quem estava à frente do site intensificou os esforços e continuou a partilha de informação, até porque, contam, o alegado abusador, que já não era estudante da universidade desde 2021 (apesar de nunca ter deixado de frequentar os espaços da faculdade), se tinha candidatado a mestrado, no qual foi aceite. Já em 2023, o caso chegou ao Conselho Pedagógico e, posteriormente, foi encaminhado para a reitoria. No final do ano, foi comunicado aos estudantes envolvidos no caso a conclusão do processo disciplinar, instaurado por eventuais violações do Código Ético de Conduta Académica da Universidade do Porto e do Código de Boa Conduta para a Prevenção e Combate ao Assédio e Discriminação no Trabalho da instituição.
Não haveria indícios, segundo foi determinado, para as violações aos documentos serem provadas, e como tal, não seria determinada a aplicação de qualquer infração disciplinar, nem se configuraria a hipótese de ilícito penal. O estudante em causa ainda está inscrito e continua a frequentar a FBAUP.
AS VIOLÊNCIAS SEXUAIS
A Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV) explica no seu site que a violência sexual é “qualquer ato de natureza sexual que é perpetrado contra a vontade de outrem (OMS, 2015), incluindo quando a vítima é incapaz de consentir, devido à idade, doença, deficiência, ou por estar sob a influência de álcool ou drogas”, salientado ainda que “não é sexo, é crime e tem como motivo central o desejo de controlar, humilhar e/ou infligir danos a outra pessoa”. É também esclarecido que a violência sexual “inclui diversas manifestações e comportamentos”:
• Assédio sexual: todo o comportamento indesejado de caráter sexual, constrangendo a pessoa e afetando a sua dignidade. Pode ser praticado no trabalho ou noutros contextos, como por exemplo nos espaços públicos;
• Violação (por desconhecidos e conhecidos, nas relações familiares e nas relações de intimidade);
• Abuso sexual na infância: geralmente por familiares, incluindo por progenitores (incesto) ou por pessoas da rede social da família;
• Exploração sexual, incluindo tráfico de seres humanos;
• Mutilação genital feminina: a remoção, parcial ou total, ou lesões nos órgãos genitais femininos externos por razões não médicas;
• É cada vez mais frequente a violência sexual ser praticada através das novas tecnologias, especificamente através das redes sociais, como, por exemplo: ofensas e difamação a nível sexual, partilha de fotos e vídeos íntimos sem o consentimento da pessoa envolvida e encontros com intenção de forçar relações sexuais”.
A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) disponibiliza também uma folha informativa sobre violência sexual. “A violência sexual contra adultos/as refere-se a qualquer ato sexual ou tentativa de ato sexual, avanço ou comentário sexual praticado contra uma pessoa sem que esta o deseje ou consinta livremente”, é definido, acrescentando-se que, “Se a vítima for criança, a Lei penaliza todos os atos sexuais praticados, independentemente do consentimento”.
As representantes da associação de estudantes da FBAUP, Constança Viegas e Sofia Barroso, explicam ao Gerador que as queixas relativas a situações entre estudantes são muito raras. Constança Viegas aponta que “as pessoas não levam aquilo com seriedade, vê-se isso como um problema pessoal, como um problema que está fora daquilo que é a faculdade”, acrescentando que a perceção geral é a de que, “quando é entre pares, quase parece menos mau”. Os relatos que lhes têm chegado nos últimos anos são, assim, maioritariamente relativos a situações entre estudantes e docentes.
Há mais de trinta anos, esta desvalorização de situações abusivas estendia-se a relações entre estudantes e pessoal docente. Quando iniciou o seu percurso no ensino superior, no final na década de 1980, José Moreira, presidente do SNESup – Sindicato Nacional do Ensino Superior, recorda-se da existência de comentários sobre estudantes que tinham relações, ou que acabavam mesmo por casar, com os seus professores e professoras.
Em entrevista ao Gerador, o sindicalista sustenta que, devido ao desequilíbrio de poder, pode ser “muito difícil” identificar “onde é que começa algum assédio” e onde existe “uma relação normal e consentida” entre adultos. “Na altura, as questões do assédio não estavam em cima da mesa e as coisas seriam entendidas como [um] envolvimento consensual entre dois adultos. Não vou dizer que não seja consensual, mas, de qualquer maneira, a questão das relações de poder nunca era refletida neste tipo de práticas e penso que, hoje em dia, estamos mais alerta.”
Há cerca de vinte anos, este tipo de situações ainda era desconsiderado. Carolina [nome fictício a pedido da entrevistada] estudou na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL) entre 2005 e 2009, e relata que o contacto inapropriado entre estudantes e docentes era, na altura, visto como normal. O assédio e a agressão sexuais eram comuns e expectáveis, e havia “até professores que tinham assumidamente relações com raparigas que, ou ainda eram, ou tinham sido muito recentemente, alunas da faculdade”.
Entre o segundo e o quarto ano de licenciatura, um dos professores tinha uma relação próxima com a sua turma, sendo frequente acompanhar os estudantes em jantares e saídas à noite. Carolina relata que, a certo ponto, começou a ser notório o interesse do docente por uma colega sua um pouco mais velha. Na altura, a namorada do professor também tinha sido sua aluna, e este acabou por se envolver com outras estudantes mais tarde.
“Houve uma noite em que as coisas…”, começa por contar Carolina. “Ele bebeu demasiado e toda a gente estava meio tocada. Eu era muito inocente, mas tinha ideia de que havia também alguma relação com drogas, e o professor acabou por apalpar algumas alunas, inclusivamente a mim, por dentro das calças. Uns dias mais tarde, telefonou a cada uma de nós a pedir desculpa, mas foi uma coisa muito direta.” Um outro docente, já no último ano de licenciatura, era conhecido por tocar nas alunas “de forma sub-reptícia e disfarçada”. “Era uma coisa que se sabia” e os estudantes mais velhos chegavam a alertar as colegas mais novas: as alunas eram avisadas para “afastar os rabos” na sua presença, e ficavam aliviadas quando não era ele a dar as aulas práticas.
Durante esse ano, o professor desenvolveu um interesse por Carolina. Nessa fase, já não lecionava aulas práticas, apenas teóricas, o que reduziu bastante as oportunidades para qualquer tipo de contacto físico. Houve, no entanto, várias tentativas de aproximação, de marcação de encontros, de convites para que visitasse o gabinete, de aliciamento com uma carreira académica e até mesmo o envio de mensagens nos anos seguintes ao fim do seu percurso no ensino superior. Carolina sentia que a preferência era tão óbvia que chegava a aliená-la dos outros estudantes, que a olhavam de lado.
A antiga aluna da FBAUL confessa que “não tinha muita noção da gravidade disto na altura e acho que nenhuma das minhas colegas tinha”, acrescentando que “atualmente as pessoas têm muito mais consciência destas questões”. “Deve ter havido queixas junto da direção, porque um artista que conheço, que trabalhou na escola depois, contou-me que tinha havido medidas de consciencialização dos professores na altura em que ele tinha andado lá”, continua.
Carolina refere que o problema não era exclusivo das Belas-Artes; pelo contrário, era algo relativamente generalizado na altura, admitindo conhecer histórias idênticas de colegas que estudavam outras áreas artísticas. “Na mesma altura em que era estudante, tinha colegas da área do teatro que me falavam destas mesmas dinâmicas que estou a contar. Na dança, as histórias eram mais de abuso psicológico e body shaming [ridicularização do corpo].” Estas são áreas em que tendencialmente existe uma maior proximidade e um maior contacto físico entre docentes e estudantes, o que pode facilitar a criação de condições para a reprodução de comportamentos inapropriados.
Tal como Carolina, as duas representantes da AEFBAUP chegam a conclusões idênticas, comentando até as semelhanças de relatos provenientes de outras instituições de ensino artístico do Porto. Para Constança Viegas, há uma grande diferença entre áreas científicas no que diz respeito à relação estabelecida entre estudantes e docentes. “Na engenharia, as pessoas são um número. Os estudantes colocam o seu número mecanográfico nos exames e é o número que depois aparece com uma nota. No nosso caso, não. Um professor tem um acompanhamento físico, tem de fazer um acompanhamento mais pessoal”, aponta.
Para Carolina, foi importante partilhar o seu testemunho porque “estas histórias vão ficando enterradas”. Considera que as coisas têm vindo a melhorar e que “as pessoas estão muito mais conscientes hoje em dia”, mas “há aqui uma questão geracional”, e a sua geração sofreu em silêncio. “Para mim não foi marcante, não tenho pesadelos com isto. Mas isto acaba depois por influenciar a forma como entras para o mercado de trabalho e a forma como toleras este género de questões, porque esta é uma altura de formação mesmo muito importante. Se as pessoas são formadas a acharem que isto é normal, vão achar que isto é normal o resto das suas vidas” e transpor os comportamentos para o espaço de trabalho.
RESPOSTAS AO FORMULÁRIO GERADOR
Das 83 respostas ao formulário do Gerador, divulgado em novembro, cerca de cinco eram referentes, exclusivamente, a casos de assédio sexual, e cerca de 24 sobrepunham casos de assédio sexual e de assédio moral. Todas as pessoas que partilharam as suas experiências identificaram-se como mulheres; apenas duas se mostraram disponíveis para entrevista, e nenhuma das restantes participantes se identificou ou deixou contacto. As respostas parecem indicar, deste modo, uma maior facilidade de partilha de situações referentes a assédio moral e extrativismo intelectual. Ainda assim, múltiplas participantes descreveram algumas das situações que viveram e testemunharam em contexto académico.
“O caso concreto que tenho em mente reporta-se a 2002/2003. Cheguei cinco minutos atrasada a uma aula e quando entrei não vi cadeira disponível para me sentar. O ‘respeitável’ professor catedrático interrompeu a sua aula e achou por bem sugerir ‘que me sentasse no seu colinho’, fazendo uma expressão lasciva que gerou reações de gozo e risada entre os alunos presentes, na sua enorme maioria do sexo masculino. Foi um momento humilhante que me deixou a sentir pessimamente e revoltada com a piadola e o abuso de poder”, escreveu uma das participantes.
Durante os anos em que frequentou a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, entre 2009 e 2012, Isabel [nome fictício] diz ter presenciado e ter sido vítima de assédio múltiplas vezes. “Um professor catedrático, já falecido, aproveitou o momento em que lhe fui entregar o meu exame final para me dizer que gostaria de ‘cheirar a [minha] doce flor’. Esse mesmo docente pediu que uma colega minha lhe ‘mostrasse a cona’. A outra colega, asiática, perguntou-lhe se tinha ‘a cona atravessada’.” Andreia [nome fictício] também recorda comentários insultuosos de um dos seus professores. “[Entre] 2003 e 2008, [um docente] dizia pérolas do tipo: ‘As leis são como as mulheres, podemos violar de vez em quando’.”
Mónica [nome fictício] relembra os comportamentos inapropriados de docentes e colegas estudantes. Numa das situações que descreve, diz que um professor recusava, ironicamente, responder às suas questões em contexto de sala de aula, dizendo-lhe que ela “estava muito gira de batom”, entre outro tipo de comentários. Mas nem sempre as situações descritas envolvem alegadas vítimas e agressores em posições hierárquicas distintas: “também testemunhei inúmeras situações violentas por parte dos trajados uns com os outros, meio notório pela perpetuação da cultura de violação”, conta.
Em oito anos como Provedor do Estudante da Universidade do Porto, Carlos Costa diz ter recebido poucos pedidos relacionados com práticas de assédio. “Não tenho tido casos muito graves de assédio moral, recebo pedidos relacionados com o abuso de poder, essencialmente”, clarifica, em entrevista ao Gerador. Os casos de assédio sexual são ainda menos comuns, sobretudo desde a criação, há cerca de dois anos, do canal de denúncias da Universidade do Porto. “A instituição tem um portal de queixa que permite o anonimato. Quando me contactam, têm de se identificar com o nome ou a identificação de estudante.” Por esta razão, o provedor acredita que para casos mais sensíveis os estudantes acabam por preferir o anonimato possibilitado pelo canal eletrónico.
Ainda assim, o provedor atenta que se a formalização da queixa levar a um processo de inquérito, a manutenção do anonimato é improvável. “É preciso perguntar às pessoas o que aconteceu e depois [o alegado agressor] – o docente, o funcionário ou o estudante – também vai ter de responder no contraditório, faz parte dos direitos das pessoas”, explica. Se o inquérito apurar que a denúncia é fundamentada, a instituição comunica-a ao Ministério Público. No entanto, mesmo quando há uma convicção forte de que houve um caso de assédio, nem todos os estudantes decidem avançar com este processo.
“A recolha de provas é difícil [porque] é preciso que os estudantes se disponibilizem para testemunhar”, atesta. “No início [do processo] há, aparentemente, algumas testemunhas, depois as pessoas começam a inibir-se porque têm medo das retaliações. Não quer dizer que as haja, mas as pessoas têm medo, e sem provas testemunhais, é a palavra de um estudante contra a palavra de um professor, por exemplo.”
Se um estudante da Universidade do Porto for alvo de assédio, o provedor dá conta de que este pode também fazer uma queixa direta dentro da sua unidade orgânica. “Cada curso tem uma comissão de acompanhamento constituída por docentes e estudantes. Se houver algum problema com um professor, tipicamente, deve ser discutido nessa comissão e o diretor do curso toma conhecimento e intervém”, esclarece. “Se o problema não for resolvido, existem ainda os conselhos pedagógicos em cada faculdade. Só depois daí é que, em princípio, escolhem vir até mim.” No caso de Rita, nenhuma queixa foi apresentada à provedoria.
O cargo de Provedor do Estudante existe na Universidade do Porto desde 2002. A dimensão da comunidade estudantil, constituída por cerca de 35 mil estudantes, faz com que Carlos Costa o considere um “recurso muito escasso” na instituição. Ainda assim, assegura ao Gerador que tem tido as condições necessárias para desempenhar as suas funções. “Tenho sido capaz de lidar com os números [de pedidos] que recebo. [Mas] se mil estudantes quisessem a minha intervenção, tinha de dizer ao Conselho Geral para ter uma equipa, senão não seria possível.”
No ano letivo de 2016/2017, no início do seu primeiro mandato, teve cerca de 200 processos, que aumentaram para 340 no ano letivo de 2019/2020. No entanto, o número de solicitações tem vindo a diminuir desde a pandemia da covid-19, tendo contabilizado 114 no ano passado. Estes números, relativos às queixas e reclamações recebidas, deveriam ser públicos. Segundo o Artigo 21.º do Regulamento do Provedor do Estudante da Universidade do Porto, o provedor deve elaborar um relatório anual em que descreve a atividade desenvolvida, e que deve ser publicado após a sua apresentação ao reitor.
Ainda assim, o último relatório a que é possível ter acesso foi publicado em fevereiro de 2020. Carlos Costa reconhece a ausência dos documentos no site da instituição, mas garante que os entrega “religiosamente” à reitoria. O Gerador questionou, via e-mail, a reitoria da Universidade do Porto sobre a ausência dos relatórios, mas, até ao momento, não obteve qualquer resposta.
O PROVEDOR DO ESTUDANTE EM PORTUGAL
Em Portugal, a figura de Provedor do Estudante surgiu no âmbito do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) consagrado pela lei em 10 de setembro de 2007. O artigo 24.º do documento determinou que “em cada instituição do Ensino Superior existe, nos termos fixados pelos seus estatutos, um Provedor do Estudante cuja ação se desenvolve em articulação com os órgãos e serviços da instituição, designadamente com o conselho pedagógico”. De acordo com a Rede Portuguesa de Provedores do Estudante do Ensino Superior, a adoção desta regra traduziu-se na “elaboração de regulamentos próprios, distintos em muitos pontos e concretizados em momentos temporais diferentes” pelas instituições.
No caso da Universidade do Porto, o Regulamento do Provedor do Estudante estabelece que o exercício do cargo tem como missão principal “defender e promover os direitos e os interesses legítimos dos estudantes no âmbito universitário” através de uma atuação independente, imparcial e confidencial. “Os estudantes podem, individual ou coletivamente, apresentar ao provedor queixas relacionadas com a ação ou omissão dos órgãos, serviços e agentes da Universidade e das suas Unidades Orgânicas, bem como formular sugestões, nomeadamente sobre questões pedagógicas ou relativas à ação social”, lê-se no site da instituição.
Quanto às motivações que levam os estudantes a pedirem a ajuda do provedor, Carlos Costa dá conta de que não mudaram muito ao longo dos anos. “Os pedidos que têm que ver com a parte administrativa e financeira e os que têm que ver com a componente pedagógica ocupam cerca de 70% dos casos que recebo. O resto são questões relacionadas com a ação social escolar e relações entre estudantes, por exemplo, que são mais residuais”, explica.
O provedor indica ainda que, dos pedidos relacionados com questões pedagógicas, cerca de 20% são referentes a queixas de docentes. “A maior parte dessas queixas, podemos relacioná-las com abuso de poder: [quando um docente] muda a nota num exame sem justificar e não devia ter mudado. São pequenas coisas em que o docente decide de uma forma arbitrária, [mas] as pessoas têm direito a saber a justificação, portanto, isso constitui abuso de poder.”
Raul Bruno de Sousa tornou-se o primeiro Provedor do Estudante da Universidade de Lisboa, após a criação do cargo na instituição, em 2013. O antigo professor catedrático do Instituto Superior de Agronomia, agora reformado, manteve-se no cargo até ao início de funções da atual provedora, Maria Fernanda Oliveira, em 2022. O primeiro provedor da instituição lisboeta já tinha sido provedor da Universidade Técnica, pelo que diz ter “transportado” a sua experiência para as novas funções.
Ao Gerador, Raul Bruno de Sousa indica que recebia entre cem a 120 solicitações de apoio por ano. “Durante todo este período em que estive como provedor de estudante, foram cerca de 12 anos, nunca tive qualquer caso relacionado com problemas de assédio sexual, ou mesmo de assédio moral”, assevera. O antigo provedor esclarece que se deparou com apenas um caso de “incompatibilidade entre um docente e um estudante” no início das suas funções, mas que este não se tratava de um caso de assédio moral. No caso de Carolina, as situações que reportou ao Gerador ocorreram quando a figura do Provedor do Estudante ainda não tinha sido criada na Universidade de Lisboa.
Os pedidos de ajuda mais frequentes, conta o antigo provedor, encontravam-se relacionados com o pagamento de propinas, procedimentos de avaliação, questões de saúde ou o alojamento estudantil. Quanto aos procedimentos adotados após a solicitação, explica que eram sensivelmente os mesmos para a maioria dos casos. “A queixa chega ao provedor, que a analisa para ver se está tudo em ordem para poder receber o processo. Depois de fazer uma consulta à instituição que era alvo dessa queixa, aguardava esclarecimentos devidos por parte da mesma instituição. Em função desses esclarecimentos e daquilo que o estudante dizia, muitas vezes com o suporte do apoio jurídico da própria reitoria, conseguia-se encontrar soluções.”
As queixas só chegavam até si, contudo, quando os outros recursos disponíveis ao nível das unidades orgânicas já tinham sido contactados. “De acordo com o regulamento, os processos só chegavam ao provedor depois de ultrapassar determinadas etapas. Muitas vezes, os processos eram resolvidos nas próprias faculdades, porque estas têm autonomia para ter o seu próprio provedor”, esclarece.
Neste momento, das 18 unidades orgânicas da Universidade de Lisboa, apenas a Faculdade de Direito, a Faculdade de Ciências, o Instituto Superior Técnico e o Lisbon School of Economics and Management têm os seus próprios provedores, de acordo com as páginas das instituições. “Se não fosse encontrada uma solução ao nível da faculdade, os casos chegavam até ao provedor. Portanto, lidava com os casos mais extremados”, explica Raul Bruno de Sousa.
Quanto a possíveis retaliações por parte das instituições face às queixas apresentadas pelos estudantes, o antigo provedor declara nunca ter presenciado quaisquer situações. “Nunca verifiquei da parte de qualquer escola, ou da universidade, qualquer atitude de retaliação para com os estudantes”. Ele garante que, se isso se verificasse, “o estudante recorreria de novo ao provedor, mas nunca aconteceu.”
O Gerador entrou em contacto com a provedora do estudante da Universidade de Lisboa, Maria Fernanda Oliveira, solicitando-lhe uma entrevista e referindo o conhecimento de casos de assédio na instituição entre os anos letivos de 2006/2007 e 2020/2021. Apesar de salvaguardar não ter desempenhado funções de provedora durante o período de tempo indicado (a provedora afirma ter iniciado funções a 6 de setembro de 2022), Maria Fernanda Oliveira acedeu, inicialmente, ao pedido, mas depois informou que, por motivos de agenda, estava indisponível.
Lúcia Matos é diretora da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP) desde 2018, o mesmo ano em que Rita conheceu o seu alegado assediador. Sobre o caso relatado pela estudante e outras colegas, Lúcia Matos diz ao Gerador que foi informada acerca dos QR Codes espalhados pela faculdade, mas nunca abriu a hiperligação que conduzia ao site criado pelas alunas. A diretora informa que o caso foi analisado pelas instâncias adequadas, nomeadamente pela reitoria, mas acredita que o corpo docente evita imiscuir-se neste tipo de situações. “Os professores começam agora a ter algum cuidado — precisamente porque estes temas estão a ser mais discutidos — [para não] tratar de assuntos para os quais sentem que não têm competência profissional.”
A diretora da FBAUP acredita também que a comunidade estudantil confia nos meios de denúncia e no processo de investigação das queixas formalizadas. “O anonimato e o sigilo são garantidos, e as entrevistas feitas durante o processo de averiguação de um caso são individuais. Portanto, o processo segue as regras que hoje em dia são consensuais e que devem ser seguidas”, reitera. “Se o outcome [resultado] é satisfatório ou não, isso já não posso dizer. O que interessa é que o processo decorra como deve decorrer, depois o resultado nunca é satisfatório para ambas as partes, ou é mais para uns do que para outros, inevitavelmente. Mas acho que tudo está a ser feito com muita seriedade.”
Quanto à possibilidade de retaliações contra estudantes que apresentem queixas do corpo docente, admite que poderia acontecer, por parte dos professores, mas garante que o Conselho Pedagógico se encontra “muito atento” a esse tipo de situações. “Não estou a dizer que nunca aconteça, nem que nunca possa acontecer, mas não é de todo [uma] prática generalizada por professores, mas eles são indivíduos, não instituições. Institucionalmente, [as retaliações] nunca acontecem, posso garantir que não.”
Quanto à possibilidade de retaliações contra estudantes que apresentem queixas do corpo docente, admite que poderia acontecer, por parte dos professores, mas garante que o Conselho Pedagógico se encontra “muito atento” a esse tipo de situações. “Não estou a dizer que nunca aconteça, nem que nunca possa acontecer, mas não é de todo [uma] prática generalizada por professores, mas eles são indivíduos, não instituições. Institucionalmente, [as retaliações] nunca acontecem, posso garantir que não.”
Lúcia Matos acredita que a forma como a Universidade do Porto lida com casos de assédio e abuso de poder tem vindo a melhorar ao longo dos anos. “Todas estas questões são tratadas ao nível da universidade. Tudo está centralizado na universidade, que tem os seus procedimentos bastante claros e objetivos e nos trâmites normais, seja qual for a natureza da queixa: há um portal de denúncias e depois, de acordo com a natureza da queixa, é tratada pela universidade, não por nós.”
A diretora explica que é notificada quando uma queixa referente à FBAUP é apresentada no canal de denúncias da universidade, mas afirma, sem especificar números, que os casos têm sido “raríssimos”. Quanto ao processo, a diretora indica que, após a notificação, contacta os serviços jurídicos para saber qual o procedimento que deve adotar para cada caso. Por norma, necessita de fazer um despacho com o objetivo de introduzir formalmente o caso na Universidade do Porto, para que este seja analisado pelos serviços competentes, que depois decidem se este dispõe dos requisitos mínimos indispensáveis para se prosseguir com um inquérito.
Nos casos em que uma queixa é apresentada num dos órgãos internos da faculdade e chega até si, a diretora envia-a “imediatamente” para a reitoria. “Nem sequer tento analisar ou falar com A, B, ou C, porque a orientação que temos, com a qual concordo — sobretudo numa faculdade pequena em que toda a gente se conhece e se cruza todos os dias — é [a de que é] melhor não alimentar conversas e tomar uma iniciativa para mostrar que se está a tomar conta do assunto de uma forma séria.”
No dia 19 de janeiro, o Gerador contactou, via e-mail, o secretariado do presidente da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa solicitando uma entrevista a António de Sousa Dias, presidente da instituição. Não tendo obtido resposta, reenviámos o pedido no dia 29 do mesmo mês, mas até ao fecho desta reportagem não houve qualquer resposta por parte da instituição.
De igual forma, o Gerador questionou, via e-mail, a reitoria da Universidade do Porto acerca do canal de denúncias, nomeadamente quanto ao número de queixas apresentadas ao longo dos anos, e a sua respetiva natureza e origem. Até à data de fecho desta reportagem, não obtivemos qualquer resposta, mas os canais de comunicação mantêm-se abertos.
“Mesmo entre pessoas supostamente na mesma posição, esse cenário das dinâmicas horizontais [de violência] levanta muitos problemas, porque muitas vezes isso é falacioso. Quando vemos no concreto, essas dinâmicas têm hierarquias de género, de idade, de classe. A horizontalidade muitas vezes é uma ficção”, explica Maria João Faustino, investigadora sobre violência sexual, em entrevista ao Gerador.
“A normalização da violência contra as mulheres e da violência sexual acontece desde muito cedo, em muitas esferas, e em coisas que às vezes podem parecer pormenores”, analisa. “O modo como educamos raparigas e rapazes de formas muito diferentes sobre a aceitação e exposição do corpo, o que é lícito ou não, o que devemos preservar ou não, a resposta ao toque e ao toque indesejado, os estereótipos de género que estão indissociavelmente ligados à violência sexual – tudo isto informa o modo como somos socializados.”
A investigadora examina que as raparigas e as mulheres, sobretudo, são condicionadas a aceitar que “atropelos” à sua autonomia são “expectáveis ou inevitáveis” e que fazem parte de como o mundo funciona, pelo que a única coisa a fazer é mesmo aceitar. Este tipo de pensamento, defende a académica, põe a responsabilidade da prevenção da violência sexual e de género do lado das vítimas. “Temos de prevenir, temos de nos adequar e corrigir o nosso comportamento de forma a proteger-nos: somos ensinadas a evitar uma data de comportamentos, lugares, determinadas companhias, para nos salvaguardar, como se isso fosse possível. Esta normalização é transversal a uma série de camadas de socialização, e tira-nos, muitas vezes, as ferramentas para identificar e para nomear a violência.”
A investigadora acredita que há “brincadeiras estúpidas ou parvas” que têm uma gravidade maior do que quem as pratica lhes atribui. Algumas das respostas ao questionário divulgado pelo Gerador parecem ser exemplos ilustrativos desta visão. Uma estudante escreve que “ainda persiste o machismo de muitos professores ditos ‘da velha guarda’ em relação às estudantes do sexo feminino”. Outra denuncia que um docente tinha o hábito de “responder às dúvidas de todas as alunas com: ‘depois passe no meu gabinete para ver melhor.’”
“Tínhamos um professor, que por ser catedrático, ou talvez porque ninguém dava importância, [era] muito machista. Tanto que nas aulas dizia em voz alta, para quem quisesse ouvir, que as mulheres não tinham lugar naquele curso e que deviam estar em casa a aprender a cozinhar, [mas] que nem isso sabiam fazer”, conta uma estudante. Ao mesmo tempo, noutra das respostas ao formulário pode ler-se: “Na minha faculdade, toda a gente está a par [de] que o tratamento que os estudantes recebem é muito distinto de acordo com o género. Uma das piores situações em que isso é mais visível é, por exemplo, nos exames orais. A minha associação de estudantes ainda tentou fazer algo e fez um inquérito que teve um número alarmante de respostas. Os resultados foram apresentados ao presidente da faculdade e [foram] completa e absolutamente desvalorizados através de frases como: ‘vocês têm de entender que é normal isto acontecer’ ou ‘é uma geração diferente’.”
Saber quais os direitos que possui é fundamental para uma pessoa se autorreconhecer como vítima, defende a investigadora Isabel Ventura, em entrevista ao Gerador. Autora da obra de 2017, Medusa no Palácio da Justiça ou Uma História da Violação Sexual, salienta que há poder em saber “que tens direito a outra vida, que tens direito a outra dignidade, que tens direito a não ter de passar por aquilo” – e isto também “significa que os outros têm deveres” e que “têm o dever de se abster de determinados comportamentos”.
Maria João Faustino reflete que, apesar de não ser algo exclusivo a Portugal, uma conjuntura de condições sociais, políticas, históricas e religiosas do nosso país (com ênfase para a ditadura de 41 anos que terminou apenas em 1974) contribuíram “para que se fale muito pouco sobre violência sexual, e que se fale muitas vezes da maneira errada”. As abordagens são, considera, “muito viciadas à partida”, mantendo vivos uma série de mitos – de que a violência sexual é “uma coisa muito rara”, “muito atípica”, “maioritariamente perpetrada por pessoas que identificamos como estranhas” e também “por pessoas de alguma maneira desviantes”.
“Ora”, contra-argumenta a investigadora, “a violência sexual acontece em todos os contextos sociais, em todas as classes, em todos os contextos profissionais – acontece a toda a gente, potencialmente”. Porém, os tabus, a negação e o silêncio em torno da violência sexual fazem “com que seja muito mais fácil perpetuar mitos”. A Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV), por exemplo, aponta que qualquer pessoa é uma potencial vítima e que a maioria dos crimes de violência sexual é cometida por conhecidos das vítimas.
No ensino superior, os comportamentos de assédio e de agressão sexual são, maioritariamente, cometidos por outros membros da comunidade académica, não por “desconhecidos escondidos atrás de arbustos”, como é referido no documentário The Hunting Ground. A AMCV também aponta que este tipo de crimes é geralmente premeditado; a RAINN (de Rape, Abuse & Incest National Network), a maior organização norte-americana contra a violência sexual, alerta ainda que este tipo de violência tende a ocorrer com maior regularidade em certas alturas do ano, e que estudantes caloiros estão numa posição de maior risco de vitimização.
Este fenómeno é conhecido nos EUA (Estados Unidos da América) como “The Red Zone”, ou “a zona vermelha”. Segundo dados da Association of American Universities, cerca de 26,4% das estudantes de licenciatura que se identificam como mulheres e 9,7% das alunas dos restantes graus de ensino (mestrado, doutoramento e outros tipos de formação) são vítimas de violência sexual (para estudantes que se identificam como homens, as estatísticas apontam que 6,8% dos estudantes de licenciatura e 2,5% dos restantes graus de ensino sejam vítimas de violência sexual), e a maior parte destas agressões ocorre nas primeiras semanas, ou meses, do primeiro ano no ensino superior. Desta forma, a violência sexual é mais frequente no início de cada ano letivo, entre os meses de setembro e novembro.
A maior parte das vítimas de violência sexual em contexto universitário são, assim, alunas de primeiro ano, e a maior parte dos alegados agressores são estudantes do sexo masculino de anos superiores. Além destes dados, a associação aponta também que 23,1% dos estudantes que se identificam como transgénero, genderqueer ou não conforme já foram vítimas de agressão sexual.
Em novembro de 2022, foram divulgados os primeiros resultados do estudo Gender-based violence and its consequences in European Academia [Violência de género e as suas consequências para a Academia Europeia]: a investigação foi desenvolvida pela UniSAFE, um projeto financiado pela União Europeia. De janeiro a maio de 2022, os funcionários e estudantes de 46 centros de investigação e universidades, de 15 países europeus (Portugal não foi inquirido), participaram no estudo. No total, foram obtidas cerca de 42 mil respostas, naquele que é considerado o “maior levantamento realizado [sobre este tema] até agora no Espaço Europeu de Investigação”, segundo a UniSAFE.
Os resultados mostram que 62% das pessoas inquiridas sofreram pelo menos uma forma de violência de género desde que começaram a trabalhar ou a estudar na sua instituição. As mulheres (66%) e as pessoas não binárias (74%) demonstraram uma maior probabilidade do que os homens (56%) de sofrer qualquer forma de violência baseada no género, exceto a violência física. No caso do assédio sexual – a segunda forma de violência de género mais reportada – cerca de um/a em cada três estudantes e trabalhadores afirmam ter sofrido alguma situação nas suas instituições (31%) e cerca de 3% alegam ter sido vítimas de outras formas de violência sexual.
“Tive uma situação de assédio no primeiro ano em que um professor disse que só discutiria uma subida de nota se tomasse café com ele, fora da escola – ignorei e fui a exame. No segundo ano, um professor em contexto de final de aula e na presença de colegas minhas afagou-me o cabelo e elogiou-me de forma inapropriada. Fez isso também com colegas, sendo que a esposa dele era professora na mesma escola. E, por fim, no último ano fui sexualmente assediada por um enfermeiro, meu tutor, e um mediático médico do serviço de cirurgia do hospital. Foi um conjunto de situações arrastadas no tempo em que eu estava sozinha com o meu tutor e ele abusava verbalmente de mim no meu local de trabalho/estágio. Foi a pior experiência da minha vida, a pessoa que me devia proteger incentivava os comportamentos abusivos para parecer “fixe” e masculino.”
“Havia o caso de um professor que claramente flertava com as alunas e não tinha interesse em ensinar, apenas em alimentar o ego. Vejo que na classe académica existe a hierarquização e isso traz a falsa ideia de poder sobre os outros. Muitos professores usam dessa ideia para seduzir, humilhar, questionar muitos valores dos seus alunos.”
“Aderi à praxe por curiosidade e acabei por ficar. Fui assediada e as minhas doutoras disseram que eu devia ter feito algo para provocar quem o fez.”
“No último ano de licenciatura, um dos docentes/investigadores que acompanhava o meu projeto de investigação abusou-me sexualmente. Tinha apenas 23 anos na altura, e o docente 37 anos. Não tinha consciência do que estava a acontecer e, após o abuso, retraí-me e parei de estudar. Só retomei os estudos noutro curso passados três anos e cortei todos os contatos com esse docente, colegas e outros professores do curso.”
“Na altura, o professor filmou as apresentações de trabalhos das alunas, colocando zoom em determinadas partes do corpo delas. No final da aula, chamou-me a mim e a uma colega. Aí, disse-nos que a nossa apresentação tinha sido a melhor, que tínhamos uma ótima aparência e convidou-nos para irmos com ele para o seu gabinete.”
“[Vi] um professor numa aula dizer a uma aluna: ‘Menina, qual a diferença entre uma pila e uma escova de dentes?’. A aluna acenou negativamente. ‘Que confusão vai na sua boca’, disse.”
“O assédio sexual está naturalizado em ambientes de lazer noturno […]. A intersecção entre a frequência de ambientes de lazer noturno, o consumo de álcool e/ou outras drogas e as normas hegemónicas de género promove uma atmosfera onde as mulheres são vistas como sexualmente disponíveis e acessíveis”, escrevia Cristiana Vale Pires, investigadora e membro da Kosmicare, num artigo publicado no Público, em 2019. Mais à frente, defendia que os ambientes académicos “promovem uma cultura onde o excesso é a norma e a objetificação do corpo feminino e a degradação da sua sexualidade persistem enquanto conteúdos de comunicação presentes tanto na publicidade de eventos como nos cânticos de praxe”.
Este texto de opinião foi escrito aquando da criação do Ponto Lilás, que nasceu em 2019 da parceria estratégica entre três organizações: o centro de atendimento EIR (Emancipação, Igualdade e Recuperação) da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta), o programa UNi+ (Programa de Prevenção e de Combate à Violência no Namoro no Ensino Superior) da Associação Plano i e do projeto Sexism Free Night (Prevenção de violência sexual e promoção de ambientes de lazer noturno não-sexistas) da Associação Kosmicare. A iniciativa, apesar de pioneira em Portugal, parte de um conceito que não é inédito: a criação de espaços que sirvam de “porto seguro” em eventos; é esclarecido na página que “tem como referência o modelo de intervenção implementado em festivais de música eletrónica e em festas populares em Espanha”.
“Surge assim, em Portugal, como uma estrutura de proximidade, que promovia a disponibilização de informação e atuava na prevenção e intervenção em situações de violência sexual, deslegitimação de práticas sexistas e promoção de um lazer noturno mais seguro e igualitário em eventos de grande dimensão, designadamente aqueles que ocorrem em contexto académico”, é ainda acrescentado. Em entrevista ao Gerador, Joana Sales, técnica da UMAR, explica que esta iniciativa conjunta é umas das várias que têm desenvolvido ao longo dos últimos anos com o objetivo de sensibilizar, informar e prevenir, bem como, quando necessário, dar resposta rápida e apoiar vítimas.
“Era sobretudo em ambiente de lazer académico, e centrámo-nos na Queima das Fitas do Porto, mas também estivemos no Primavera Sound. Foi realmente um projeto muito interessante na prevenção da violência sexual neste tipo de contextos em que sabemos que ocorrem vários tipos desta violência, nomeadamente o assédio. E pretendemos dar continuidade a esta iniciativa, porque realmente sentimos que faz mesmo muita diferença as pessoas terem um lugar seguro a que podem recorrer, um espaço seguro em que podem simplesmente ficar um pouco connosco, num ambiente como o da Queima das Fitas, que tem milhares de pessoas”, explica ainda Marisa Fernandes, psicóloga da UMAR, ao Gerador.
Nos cartazes divulgados na altura, o grito de ordem era: “Eu não permito o teu assédio!”. Como uma forte componente educativa, é apontado que “violência sexual não é só violação”, sendo apresentados outros comportamentos dos quais estudantes se podem proteger ‘refugiando-se’ no Ponto Lilás: “apalpões e toques não consentidos”, “insistências verbais e físicas”, “aproveitar-se de alguém inconsciente”, “piropos e comentários sexistas” e “encurralamentos em grupo”.
Porque é que as técnicas se referem ao Ponto Lilás apenas no passado? Beatriz Morgado, do FEMfdup, o Coletivo Feminista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, conta em entrevista ao Gerador que, na Queima das Fitas de 2022, o Ponto Lilás “dava resposta especializada, com técnicos que conseguiam responder a nível médico, psicológico [e] emocional a pessoas que procuravam, quer ajuda no ‘pós-’, quer proteção no ‘pré-’, digamos assim. Havia apenas um problema com este espaço: estava situado na ponta oposta de onde estavam todas as outras coisas”. Em 2019, o espaço podia ser encontrado numa zona central de fácil acesso, tanto das barraquinhas como dos palcos.
“E na última Queima das Fitas”, continua Beatriz Morgado, “a de 2023, o Ponto Lilás evaporou-se. Os problemas não mudaram, mas a resposta mudou radicalmente, como se tivéssemos erradicado o assédio. Agora, há apenas uma resposta harmonizada a todo o tipo de problemas que surjam no recinto: as mesmas pessoas que estão a dar resposta a problemas de embriaguez ou de ferimentos ligeiros são as mesmas, sem qualquer tipo de especialização, a dar resposta a vítimas de violência sexual, quer seja violação ou assédio ou qualquer outro tipo”. “As vítimas perderam esse porto seguro dentro do recinto”, lamenta.