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REPORTAGEM
 SUSTENTABILIDADE 

Ativismo climático sob julgamento: repressão legal desafia protestos na Europa e em Portugal

Texto de Sara Pinho
Edição de Tiago Sigorelho
Ilustrações de Frederico Pompeu
12.05.2025

Esta reportagem recebeu o apoio da Bolsa Gerador Ciência Viva para Jovens Jornalistas.

Nos últimos anos, observa-se na Europa uma tendência crescente de criminalização do ativismo climático, com autoridades a recorrerem a novas leis e processos judiciais para travar protestos ambientais​. Em democracias consolidadas como o Reino Unido, a Alemanha ou a Itália, ativistas pacíficos têm sido detidos, julgados e até condenados por ações de desobediência civil em nome do clima, levantando alarmes sobre possíveis excessos legais e retrocessos nas liberdades de expressão e reunião​.
Portugal não está imune a este fenómeno: de ações simbólicas nas ruas de Lisboa a bloqueios de infraestruturas, vários ativistas climáticos portugueses enfrentaram detenções e acusações formais – incluindo multas pesadas – por exercerem o direito à manifestação. Enquanto as autoridades justificam estas intervenções como defesa da ordem pública e do Estado de direito, organizações da sociedade civil e juristas alertam para o impacto de tais medidas na liberdade de protesto e na vitalidade da democracia, num momento em que a urgência climática torna o dissenso cada vez mais crucial.

 

A decisão de interromper o então primeiro-ministro, António Costa, para ler um comunicado ao microfone foi impulsiva. Na sala que acolhia uma cerimónia do Partido Socialista, estava um grupo de ativistas do movimento Aterra sentados na plateia, à espera do momento para intervir. Queriam apelar ao governo para “dizer a verdade sobre os impactos ambientais da decisão” de construir um novo aeroporto, conta Francisco.

Foi ele quem subiu ao palco. Não disse mais do que “Lamentamos incomodar a vossa festa”, porque os seguranças logo o detiveram. Foi o único arguido, tendo sido acusado do crime de desobediência qualificada. Ficou sujeito a uma multa ou até dois anos de prisão por não ter informado às autoridades aquela manifestação que alegadamente tinha organizado. Depois de três audiências de julgamento em primeira instância, foi considerado inocente, mas o Ministério Público recorreu da decisão. O caso foi para o Tribunal da Relação e o Ministério Público ganhou.

“Claramente, há uma vontade de perseguir. E que mostra também a importância de agir, porque a quantidade de recursos que estão a ser mobilizados contra isto é revelador da importância do trabalho que estamos a fazer também”, afirmou Francisco, numa entrevista ao Gerador em agosto do ano passado.

“Recorremos dessa decisão, porque não podemos deixar que se abra um precedente tão absurdo para outras pessoas”, acrescenta.

Há cinco anos que decorre o processo do Francisco. Ainda hoje aguarda a decisão final, sob uma medida de coação que lhe exige apresentar termo de identidade e residência. Não sabe se vai ter de pagar uma multa ou se fará trabalho comunitário, mas vai avançar com uma queixa ao Comité dos Direitos Humanos.

Leis repressivas espalham a criminalização

Há cerca de seis anos, as notícias pintavam-se das cores das manifestações de estudantes que saíam à rua pelo seu futuro, impulsionadas pelo Fridays For Future, um movimento que mobilizou um número sem precedentes de jovens e galvanizou uma nova geração de ativistas no mundo inteiro. As narrativas descortinavam as reivindicações desta geração preocupada com a crise climática, mostrando-se até bondosas para com a luta e reconhecendo-a, mas isso mudou quando os movimentos se tornaram mais ásperos e categóricos nas suas ações.

Os casos que têm levado ativistas do movimento climático a tribunal seguem uma tendência que tem vindo a ser documentada em vários países: existe uma pressão crescente para criminalizar os protestos pelo clima. Há novas leis a ser implementadas, outras a ser alteradas e outras a ser instrumentalizadas para punir quem se manifesta.

Em julho de 2024, a Amnistia Internacional apresentou o relatório “Pouco protegido e demasiado restringido: o estado do direito de manifestação em 21 países da Europa”, levando-o inclusive à Assembleia da República, no qual denuncia o tratamento abusivo de ativistas e deixa um alerta para uma necessária revisão da legislação sobre o direito de manifestação, em Portugal e noutros países europeus, para o proteger. Questiona a retórica negativa relativamente à ação dos manifestantes e a desproporção na resposta das autoridades.

Os movimentos que lideram os protestos estão a ser classificados como organizações criminosas, terroristas e extremistas pelas ações diretas que têm conduzido e por recorrerem à desobediência civil como a principal técnica de participação política e cívica.

A nível europeu, o caso mais emblemático de criminalização de ativistas aconteceu no Reino Unido, onde cinco apoiantes do movimento Just Stop Oil foram condenados a penas de prisão efetiva de quatro e cinco anos por conspiração para desordem pública, ao abrigo de uma lei criada em 2022. O grupo tinha-se juntado numa reunião no Zoom para planear o protesto não violento que, durante quatro dias, bloqueou a autoestrada M25, em Londres, em novembro de 2022. Foram as penas mais longas alguma vez aplicadas a ativistas por protestos não violentos.

Em comunicado, o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos definiu a lei como “profundamente perturbadora” e falou de “restrições sérias e indevidas” ao direito de protesto, sublinhando que “os governos são obrigados a facilitar protestos pacíficos” e que, neste caso, pode tratar-se de um “grave risco de que estas ordens limitem preventivamente o exercício legítimo futuro de direitos de alguém”.

De acordo com a legislação internacional, é aceite que o protesto, pela sua própria natureza, possa ser perturbador e os governos não devem introduzir leis que criem um “efeito inibidor” na capacidade de as pessoas o exercerem, lê-se no documento.

O caso é ainda mencionado no relatório da Climate Rights International, uma organização não-governamental, que analisa a forma como ativistas têm sido reprimidos no Reino Unido, na Austrália, na Alemanha e nos Estados Unidos, mencionando ainda países como França, Suécia e Países Baixos.

Clica em cada bandeira para conhecer alguns exemplos

Em 2022 e 2023 foram introduzidas leis que restringem a liberdade de protesto e expandem o poder discricionário da polícia na aplicação das mesmas, nos estados de New South Wales, Vitória e Austrália do Sul. A título de exemplo, as leis New South Wales Roads Act 1933 e New South Wales Crimes Act 1900 foram alteradas pela Road and Crimes Legislation Amendment Act de 2022, criminalizando a “perturbação grave” de pontes, túneis e estradas, através de “sanções desproporcionalmente severas”, de acordo com o relatório da Climate Rights International.

“As multas e as penas de prisão para manifestações sem autorização, bem como as graves consequências para os manifestantes, correm o risco de suprimir os direitos à liberdade de reunião e de expressão protegidos pelo direito internacional”, lê-se no documento.

Governos, empresas e media estão envolvidos na criminalização retórica dos protestos por retratarem os manifestantes como ameaças aos interesses económicos e políticos e à segurança nacional, de acordo com este artigo científico, partilhado no podcast Drilled.

Em agosto de 2023, o ator e ativista climático holandês Sieger Sloot foi condenado por sedição e sentenciado a 60 horas de serviço comunitário ou 30 dias de prisão por ter incentivado os seus seguidores no X (antigo Twitter) a aderir a uma manifestação do movimento Extinction Rebellion, agendada para Haia em janeiro desse ano.

Foram implementadas novas leis que incidem em infraestruturas críticas, equiparando-as a oleodutos, impondo penalizações severas por interferência com tais infraestruturas. Outras, que impõem penalizações igualmente severas por “protestos que impeçam o tráfego nas estradas, prejudicam o direito de protestar pacificamente e sugerem que se dê prioridade à salvaguarda dos combustíveis fósseis em detrimento da defesa dos direitos democráticos, minando os direitos humanos fundamentais à reunião pacífica e à liberdade de expressão”, de acordo com a Climate Rights International.

Em junho de 2023, o governo francês quis dissolver o movimento de ativistas Les Soulèvements de la Terre (SLT), conhecido por se opor à construção de novos projetos rodoviários e de mega bacias hidrográficas, justificando que o grupo tinha incitado à violência durante protestos. Depois de suspender a decisão, o Tribunal do Conselho de Estado acabou por anulá-la no final desse ano, determinando que “a ordem restringiria a liberdade de reunião dos ativistas e que o governo não tinha apresentado provas suficientes de que a organização estava a incitar à violência durante as suas manifestações.”, lê-se no documento da Climate Rights International.

Numa manifestação do SLT em março de 2023, as forças anti-motim dispararam mais de cinco mil bombas de gás lacrimogénio contra seis mil manifestantes no espaço de duas horas. Cerca de 200 manifestantes e 47 polícias ficaram feridos.

Em 2022, a Police, Crime, Sentencing and Courts Act criou uma infração estatutária de “perturbação da ordem pública”, punível com até 10 anos de prisão, e deu mais poderes à polícia para restringir protestos classificados por “perturbadores”.

No ano seguinte, a proposta de lei da Ordem Pública britânica, o Public Order Act de 2023, veio ampliar a definição de “perturbação séria”, permitindo que a polícia pare e reviste os manifestantes em busca de itens, mesmo sem suspeitas. Prevê penas de até seis meses de prisão para quem se colar ou prender com correntes ou cadeados a objetos e edifícios. Além disso, manifestantes que bloqueiem infraestruturas como ferrovias, aeroportos ou refinarias (não excluindo estradas e pontes) podem ser punidos com até 12 meses de prisão.

A ficha informativa do governo britânico sobre a Lei da Ordem Pública de 2023 refere expressamente os protestos ambientais dos movimentos Extinction Rebellion, Insulate Britain e Just Stop Oil como a razão para a aprovação desta lei.

A Polizeiaufgabengesetz ou Lei de Regulamentação do Policiamento de 2018 “tem sido utilizada de forma incompatível com o direito de protesto”, diz o relatório da Climate Rights International.

Em 2022 e 2023 foram introduzidas leis que restringem a liberdade de protesto e expandem o poder discricionário da polícia na aplicação das mesmas, nos estados de New South Wales, Vitória e Austrália do Sul. A título de exemplo, as leis New South Wales Roads Act 1933 e New South Wales Crimes Act 1900 foram alteradas pela Road and Crimes Legislation Amendment Act de 2022, criminalizando a “perturbação grave” de pontes, túneis e estradas, através de “sanções desproporcionalmente severas”, de acordo com o relatório da Climate Rights International.

“As multas e as penas de prisão para manifestações sem autorização, bem como as graves consequências para os manifestantes, correm o risco de suprimir os direitos à liberdade de reunião e de expressão protegidos pelo direito internacional”, lê-se no documento.

Governos, empresas e media estão envolvidos na criminalização retórica dos protestos por retratarem os manifestantes como ameaças aos interesses económicos e políticos e à segurança nacional, de acordo com este artigo científico, partilhado no podcast Drilled.

Em agosto de 2023, o ator e ativista climático holandês Sieger Sloot foi condenado por sedição e sentenciado a 60 horas de serviço comunitário ou 30 dias de prisão por ter incentivado os seus seguidores no X (antigo Twitter) a aderir a uma manifestação do movimento Extinction Rebellion, agendada para Haia em janeiro desse ano.

Foram implementadas novas leis que incidem em infraestruturas críticas, equiparando-as a oleodutos, impondo penalizações severas por interferência com tais infraestruturas. Outras, que impõem penalizações igualmente severas por “protestos que impeçam o tráfego nas estradas, prejudicam o direito de protestar pacificamente e sugerem que se dê prioridade à salvaguarda dos combustíveis fósseis em detrimento da defesa dos direitos democráticos, minando os direitos humanos fundamentais à reunião pacífica e à liberdade de expressão”, de acordo com a Climate Rights International.

Em junho de 2023, o governo francês quis dissolver o movimento de ativistas Les Soulèvements de la Terre (SLT), conhecido por se opor à construção de novos projetos rodoviários e de mega bacias hidrográficas, justificando que o grupo tinha incitado à violência durante protestos. Depois de suspender a decisão, o Tribunal do Conselho de Estado acabou por anulá-la no final desse ano, determinando que “a ordem restringiria a liberdade de reunião dos ativistas e que o governo não tinha apresentado provas suficientes de que a organização estava a incitar à violência durante as suas manifestações.”, lê-se no documento da Climate Rights International.

Numa manifestação do SLT em março de 2023, as forças anti-motim dispararam mais de cinco mil bombas de gás lacrimogénio contra seis mil manifestantes no espaço de duas horas. Cerca de 200 manifestantes e 47 polícias ficaram feridos.

Em 2022, a Police, Crime, Sentencing and Courts Act criou uma infração estatutária de “perturbação da ordem pública”, punível com até 10 anos de prisão, e deu mais poderes à polícia para restringir protestos classificados por “perturbadores”.

No ano seguinte, a proposta de lei da Ordem Pública britânica, o Public Order Act de 2023, veio ampliar a definição de “perturbação séria”, permitindo que a polícia pare e reviste os manifestantes em busca de itens, mesmo sem suspeitas. Prevê penas de até seis meses de prisão para quem se colar ou prender com correntes ou cadeados a objetos e edifícios. Além disso, manifestantes que bloqueiem infraestruturas como ferrovias, aeroportos ou refinarias (não excluindo estradas e pontes) podem ser punidos com até 12 meses de prisão.

A ficha informativa do governo britânico sobre a Lei da Ordem Pública de 2023 refere expressamente os protestos ambientais dos movimentos Extinction Rebellion, Insulate Britain e Just Stop Oil como a razão para a aprovação desta lei.

A Polizeiaufgabengesetz ou Lei de Regulamentação do Policiamento de 2018 “tem sido utilizada de forma incompatível com o direito de protesto”, diz o relatório da Climate Rights International.

O relator especial da ONU para os Defensores do Ambiente, Michel Forst, tem sido igualmente vocal ao repudiar a implementação destas leis. Cunhou-as de “draconianas”, falando numa “repressão cada vez mais severa contra os defensores do ambiente no Reino Unido, nomeadamente no que se refere ao exercício do direito de protesto pacífico”. Num comunicado oficial, diz que este é um “precedente perigoso” para qualquer forma de protesto pacífico “que possa não estar alinhado com os interesses do governo da altura”.

Em fevereiro do ano passado, já se tinha pronunciado sobre a repressão estatal do protesto ambiental e da desobediência civil, defendendo que, além de a repressão ser uma ameaça à democracia e aos direitos humanos, “a emergência ambiental que enfrentamos coletivamente, e que os cientistas têm vindo a documentar há décadas, não pode ser resolvida se aqueles que dão o alarme e exigem ação forem criminalizados por isso”. Reforça ainda:

 

“A única resposta legítima ao ativismo ambiental pacífico e à desobediência civil neste momento é que as autoridades, os meios de comunicação social e o público compreendam como é essencial que todos nós ouçamos o que os defensores do ambiente têm para dizer”.

 

Além dos novos enquadramentos legais, uma nova expressão entrou no vocabulário mediático a pontapé: o “ecoterrorismo”. Os movimentos mais garreados têm sido colados a organizações terroristas, o que resulta, em primeira análise, na desumanização e marginalização destes ativistas e numa instrumentalização do próprio termo “terrorismo”.

O Extinction Rebellion do Reino Unido foi colocado numa lista de grupos extremistas selecionados pela polícia antiterrorista e ao movimento Letzte Generation, na Alemanha, foi aplicado o enquadramento legal do crime organizado violento.

 

Na mira do Estado português

Em Portugal, a Greve Climática Estudantil (GCE) e o Climáximo são os dois grupos que se têm destacado na organização de protestos não violentos para exigir uma ação climática urgente e alertar para o perigo atual e futuro dos eventos extremos, devido à crise climática. E também eles foram enquadrados num quadro de terrorismo e extremismo, não só no Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2023, mas também por deputados da Assembleia da República.

O documento refere-se aos dois movimentos no capítulo “Crime de terrorismo e unidade de coordenação antiterrorismo”, enquadrando-os como um fenómeno que ameaça a segurança interna do país e enfatizando a ideia de um “extremismo de esquerda”. No RASI de 2024, o mais recente, o mesmo se repete.

Sobre o que isto significa na prática para os dois movimentos, o Sistema de Segurança Interna esclarece que “as entidades competentes acompanham de perto todos os fenómenos, sempre que possam representar riscos à segurança interna, em estreita articulação com os diversos organismos do Sistema de Informações da República Portuguesa e Forças de Segurança”, em resposta por e-mail ao Gerador.

Sob um olhar na diagonal sobre os parágrafos em questão desse documento, Gonçalo Fabião, assistente convidado da Faculdade de Direito, diz que o contexto é “infeliz” e parece “um pouco excessivo”, podendo estar a “criar um estigma que não é aconselhável”. O professor diz acreditar que a menção destes dois movimentos naquela página não tem que ver com o facto de serem grupos que lutam pela justiça climática, mas seja, sim, relacionável com “qualquer grupo organizado que faça uma manifestação e pretenda perigar qualquer direito fundamental de terceiros”.

Alargar repertórios

Perante o agravamento da crise climática, com o contínuo aumento das emissões de gases com efeito de estufa para a atmosfera e a falta de respostas concertadas para lidar com ela, o Climáximo e a GCE mudaram a sua narrativa e forma de atuação. O primeiro passo foi começar a encarar o problema coletivamente; o segundo, escalar.

Trocaram as manifestações em massa, a assinatura de petições e as campanhas locais de sensibilização por ações diretas não violentas contundentes, onde entra a desobediência civil. Aqui, contam-se bloqueios de estrada, “sit-ins” à frente de edifícios do Estado, ocupações ou boicotes.

A estratégia tornou-se assim mais áspera e, também por isso, mais mediática. Ocuparam universidades, fizeram acampadas, pintaram escadarias, estenderam faixas com mensagens como «não há paz até ao último inverno de gás», cobriram um quadro de tinta vermelha, atiraram tinta a figuras políticas e bloquearam estradas e a entrada das sedes dos seis partidos com assento parlamentar.

Em matéria de direitos humanos, a desobediência civil é reconhecida como uma forma de exercício dos direitos à liberdade de expressão e à liberdade de reunião pacífica, garantidos pelos artigos 19 e 21 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP).

“Não sou eu que tenho de mudar os meus hábitos. Claro que tenho de os mudar para ser o mais sustentável possível, mas não sou eu que estou a causar o problema”, defende Maria, estudante e apoiante da Greve Climática Estudantil, afirmando que a narrativa dirigida ao consumidor, “de que, se reciclarmos, vai ficar tudo bem”, está ultrapassada e, também por isso, considera que a desobediência civil pode ser útil para fazer passar a mensagem deste e doutros movimentos sociais, já que o que se tentou anteriormente não parece ter surtido efeito.

Diz querer denunciar que os culpados “são empresas de gás fóssil, são petrolíferas em indústria fóssil e os governos que permitem que isso aconteça” e, por isso, já se juntou a ações de desobediência civil em Coimbra e em Lisboa, junto do núcleo Fim ao Fóssil e da GCE.

Maria quer também esclarecer que as ações de bloqueio, como aquela que aconteceu em outubro de 2023, durante a qual ativistas cortaram o trânsito na 2ª Circular, em frente à sede da Galp, não são contra a população: “quando fazemos uma ação de bloqueio de estrada, não estamos a criticar o ato de alguém usar um carro. Estamos a avisar as pessoas do que é que vai acontecer, se não nos unirmos e se não pararmos isto. Não é contra ninguém, não é contra a população em geral”, reitera.

Se a crise climática evolui, os ativistas escolhem evoluir também. “Tivemos milhares de pessoas na rua e isso não funcionou. (…) A crise climática escala, as emissões escalam e nada acontece. E nós evoluímos com a crise climática”, explica Maria.

Alice, ativista do Climáximo, questiona qual é o limite da desobediência civil, se as emissões continuam a aumentar a este ritmo. Para si, seria caso suficiente para tratar a crise climática nas notícias como se tratou a covid-19.

“Nós fizemos as marchas de 2019, foram das maiores mobilizações que houve em Portugal desde o ‘Que Se Lixe a Troika’ [manifestação que juntou mais de 500 mil pessoas em Lisboa contra as medidas de austeridade do governo de Pedro Passos Coelho]. E as emissões continuam a aumentar. Não há um estado de emergência climática e uma resposta adequada à emergência climática por parte de nenhum partido”, afirma.

Reconhece a eficácia das marchas para abrir espaço para falar sobre a crise climática em Portugal, mas lamenta um “acomodar do discurso”, deixando críticas à comunicação social e ao governo por não tratarem do assunto com seriedade e urgência.

 

“Por parte da comunicação social, por parte dos políticos, sim, há um reconhecimento de que isto é um problema, mas não há um reconhecimento de qual é a dimensão do problema, quais são os impactos do problema, quem é que está a causar o problema e como é que se vai travar o problema. Então, as ações que nós estamos a fazer são para decidir sobre tudo isto”, alerta Alice.

 

As ações diretas não violentas são formas de participação cívica que, embora menos consensuais no que toca à sua legitimidade, por interferirem com os direitos de terceiros, não são novas no espectro de ações características dos movimentos sociais. É sobretudo a partir dos anos 70 que se afirmam enquanto formas legítimas de pressão que não se enquadram nas normas anteriores, da mesma forma que a oposição parlamentar ou o voto nas eleições podem ser usadas para contestar as decisões de um governo.

Vêm expandir o repertório político do cidadão, mesmo que essa forma de participação política democrática tenha um custo. A dissidência não é bem vista e qualquer forma de ativismo que saia do escopo institucional ou que se mostre mais disruptivo é desencorajado, deslegitimado e reprimido.

Até 2023, manifestantes e, em particular, estudantes eram raramente multados por participarem em protestos pelo clima nas escolas. É sobretudo a partir desse ano que surge uma resposta diferente para lidar com eles: detenções sistemáticas, acusações de desrespeito de ordens policiais e multas, refere este position paper do Relator Especial da ONU para os Defensores do Ambiente.

Em Portugal, aconteceu a estudantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa, em 2023, que se recusaram a sair de um edifício da faculdade depois de ordem de dispersão, tendo sido detidos e posteriormente condenados a uma multa de 150 euros cada; aconteceu a estudantes da Faculdade de Psicologia, no mesmo ano; e a estudantes da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 2022.

Se, por um lado, estar na mira da polícia e dos tribunais pode significar um estreitar de liberdades, por outro, é sinal de que se está a fazer algo de útil. É a opinião de João Camargo, investigador em alterações climáticas e um dos fundadores do Climáximo.

 

“Estar disponível para ser detido é dizer que há uma normalidade em que, para eu fazer a coisa que faz sentido, a coisa mais racional, a coisa mais lógica, tenho de entrar num confronto direto. E isso pode acarretar diretamente consequências, como ser detido, ser preso ou ser condenado. Isto é, há um sistema tão iníquo, tão perverso, que não estar sob a mira da justiça, da polícia e dos tribunais significa que não se está a fazer nada de útil”, defende João Camargo.

 

É também por isto que as detenções passam a ocupar um lugar expectável e até banal para os ativistas, se o mais importante é agitar as águas e entrar em confronto com aquilo que não se aceita.

O investigador olha de uma forma pragmática para a maneira como o discurso sobre estes ativistas tem mudado nos últimos anos, nas televisões, nos jornais, nas ruas. A ascensão dos movimentos liderados por estes jovens, a escalada das ações e a sua capacidade de influência cada vez maior na sociedade são o que o explica.

“O movimento antes era mais pequeno e, portanto, era considerado menos uma ameaça. Sendo maior a sua capacidade de influência sobre a sociedade, é maior também [a contra-reação]. Se há disponibilidade para fazer ações com uma escalada, obviamente, isso representa sempre escaladas de confrontações de poder”, acrescenta.

“A verdade é que estes ativistas cá em Portugal são muito fora da caixa daquilo que era uma interpretação de repertórios”, afirma Tiago Carvalho, investigador do CIES-ISCTE e autor do livro “Contesting Austerity. Social Movements and the Left in Portugal and Spain (2008-2015)”.

Para o investigador de movimentos sociais, este é um fator importante no conjunto de comportamentos cívicos e políticos, ainda que não corresponda aos padrões a que a sociedade portuguesa está habituada.

“Haver movimentos mais disruptivos e movimentos mais institucionais, [uns] voltados a falar com as instituições e a ir ao Parlamento e outros mais em contacto com a população, é importante, porque são movimentos que criam pressão em diferentes frentes e, muitas vezes, uns não funcionam sem os outros”, aclara Tiago Carvalho.

 

Momentos de catarse

As questões históricas associadas à ditadura do Estado Novo são referidas como a razão para a deslegitimação destas ações, por um lado, e para a fraca participação cívica em Portugal, por outro, por quase todos os entrevistados pelo Gerador.

“Nós somos uma sociedade que viveu sob a ditadura mais longa da Europa. As pessoas têm uma relação distante com o direito à manifestação, porque nós não tivemos cá disso durante meio século. É algo recente para a sociedade portuguesa”, diz Maria Paixão, assistente convidada e investigadora em Direito do Clima na Faculdade de Direito de Coimbra.

Inês Subtil, coordenadora de investigação da Amnistia Internacional Portugal, destaca as ações de protesto, “quase de catarse”, do movimento Que Se Lixe a Troika, do movimento pelo direito à habitação e do movimento pela independência de Timor, que, embora “muito fortes também, acabam por ser momentos esporádicos” que aconteceram depois da ditadura, com um peso significativo na cultura política da sociedade portuguesa.

Meses antes do lançamento do relatório sobre o direito de manifestação em 21 países europeus, mencionado na primeira parte deste trabalho, foram publicados os dados do inquérito da Amnistia Internacional Portugal com a Universidade Católica, no âmbito da mesma campanha global “Protege a Liberdade”.

Os números revelam que apenas uma em cada 10 pessoas diz ter participado numa manifestação nos últimos cinco anos. Mostram também que quase metade dos inquiridos (47%) acha que as manifestações têm de ser autorizadas.

 

Uma lei “arcaica e anacrónica”

O artigo 45º da Constituição da República Portuguesa diz que não é preciso “qualquer autorização”, mas o decreto-lei nº 406/74, que garante e regulamenta o direito de reunião e manifestação, exige, entre outros deveres, que as manifestações sejam notificadas com dois dias úteis de antecedência à Câmara Municipal e que os promotores se identifiquem pelo nome, profissão e morada. No caso de os promotores serem associações, são as direções que têm de se identificar. Caso contrário, incorrerão no crime de desobediência qualificada, punível com até dois anos de prisão (artigo 15º deste decreto-lei).

Para a Amnistia, o caso de Francisco, citado no início desta reportagem, é um dos mais evidentes casos de condicionamento do direito de protesto em Portugal, na medida em que o ativista foi acusado de um crime por ter sido declarado o promotor de um protesto não notificado às autoridades.

E todo o caso desenvolveu-se com base num decreto-lei de 1974 que precisa de ser revisto e que é descrito como arcaico e anacrónico.

“É uma lei completamente arcaica, completamente anacrónica, que precisa de se alterar. Foi criada na altura do pós-revolução, em que havia imensas manifestações dos trabalhadores durante o horário laboral. É importante esse historial, porque tem um contexto histórico muito forte. Por isso é que não podes fazer uma manifestação em determinados períodos do dia”, exemplifica Mariana Gomes, fundadora da primeira associação de litigância climática em Portugal, a Último Recurso.

“Independentemente de estares a exercê-lo com 10 pessoas, 20 pessoas, nas formas em que estiveres, o direito de manifestação implica a colisão com outros direitos, automaticamente. Porque implica fechar estradas; implica teres mais do que três pessoas a manifestar-se; implica teres um objeto político. Então, automaticamente, ao fechares uma estrada, estás a colidir com o direito à circulação de outras pessoas. É inerente ao direito de manifestação. O próprio direito de manifestação, em si, é impossível de ser exercido sem colidir com outros direitos”, acrescenta a jurista.

O que acontece perante isto – e é este o exercício que um juiz faz – é perceber se a colisão entre um e outro direito é proporcional. “É, no fundo, tentar garantir dois direitos ao mesmo tempo, o máximo possível. E é aí que entra, no fundo, uma indicação de medidas alternativas, subsidiárias até, que as polícias podem ir tentando fazer”, diz Gonçalo Fabião, sobre a ideia de proporcionalidade aplicada ao Direito.

 

Refere-se, sobretudo, à ordem de dispersão que as autoridades podem dar durante manifestações. Consta no artigo 5º do direito de reunião que as autoridades só podem interromper uma manifestação se forem praticados “atos contrários à lei ou à moral ou que perturbem grave e efetivamente a ordem e tranquilidade públicas, o livre exercício dos direitos das pessoas”. Para isso, têm de apresentar auto da interrupção, justificando a decisão, e têm também de entregar uma cópia desse auto aos promotores.

“Ou seja, a polícia não pode dar ordens de dispersão desproporcionais sem nenhum motivo atendível. Tem de fazer, no fundo, uma espécie de comparação de medidas alternativas que permitam ainda o exercício da manifestação”, esclarece o professor da Faculdade de Direito.

Apesar disso, atualmente, é difícil um manifestante demonstrar que uma tal ordem de dispersão foi ilegítima, o que interfere com outro direito – o direito de resistência, previsto no artigo 21º da Constituição da República Portuguesa -, tornando igualmente difícil que este possa ser efetivamente exercido.

Por esse motivo, Gonçalo Fabião aconselha que ao decreto-lei nº 406/74 sejam integrados mais critérios de previsibilidade e que se encolha a sua amplitude no que toca àquilo que pode ou não pode ser decidido pelas autoridades. Nas suas palavras, que se muna “as autoridades policiais de critérios mais definidos, para que elas possam tomar as melhores decisões para salvaguardar os vários direitos fundamentais aqui em confronto”.

Defende que, “a partir daí, será muito mais fácil perceber quando é que essa ordem é ilegítima e depois, sendo ilegítima, poder exercer-se legitimamente o direito de resistência. As decisões ou a vontade de perseguir uma manifestação estão nas mãos da polícia, que é quem tem o poder naquela altura de fazer alguma coisa.”

Atacar o mensageiro abre portas à criminalização

A tropelia de vozes nos órgãos de comunicação social ajuda a marginalizar quem protesta através do bloqueio de estradas e de infraestruturas poluentes. São formas de protesto que instituições, figuras políticas e comentadores consideram “violência” e “terrorismo” ou cuja legitimidade não reconhecem.

Quando, em 2022, os alunos da escola secundária António Arroio, em Lisboa, bloquearam a escola pelo “fim ao fóssil”, o então diretor da escola chamou-lhe “ato de terrorismo”. Também o líder do CDS, Nuno Melo, se pronunciou quando um ativista da Greve Climática Estudantil atirou tinta verde ao primeiro-ministro, Luís Montenegro, em fevereiro do ano passado. Chamou ao acontecimento um “ato cobarde”, infantilizando depois os ativistas climáticos no seu conjunto.

A conotação negativa da palavra “ativista”, o fraco conhecimento da lei que garante o direito de manifestação e os baixos níveis de participação política em Portugal são, para Inês Subtil, três peças intimamente ligadas entre si e fundamentais para refletir sobre a pouca tolerância que há não só para com as ações dos ativistas pelo clima, como a interpretação delas como atos violentos.

Anabela Carvalho, professora e investigadora em Ciências da Comunicação da Universidade do Minho, tem analisado os mecanismos discursivos mais ou menos indiretos de comentadores, decisores políticos e jornalistas. A seu ver, são também eles o que “torna tudo isto, incluindo a própria aceitação do processo de criminalização, mais fácil”.

À medida que prosseguia com a pesquisa no âmbito do projeto “JustFutures”, do qual foi a investigadora responsável, a investigadora deparou-se com títulos de artigos de opinião que ridicularizam e infantilizam os ativistas (com expressões como “noção mínima” ou “cérebros com 0% de emissões”).

Foi também depois de olhar para mais de 200 peças jornalísticas e analisar discursivamente uma longa reportagem de televisão que a equipa de investigadores do “Just Futures” concluiu que se faz uma distinção entre dois tipos de ativismo: aquele com traços mais institucionais e aquele mais disruptivo. A reportagem, em particular, “subtilmente desacredita e deslegitima um ativismo climático mais perturbador”, afirma Anabela Carvalho.

Enquanto o ativismo daqueles que advogam pela justiça climática através de laços institucionais é retratado com maior maturidade e legitimidade, aquele dos que empreendem ações diretas e disruptivas é caracterizado como sendo menos eficaz e menos bem pensado.

A investigadora defende que o paradigma “muito linear e simplista de cobertura mediática, assente na mostra do que se quebra, da perturbação, da violência, e não explicando o que está em causa, é, obviamente, um grande problema”, podendo “ser negativo para a imagem pública dos ativistas e até para a causa pela qual eles estão a batalhar”. Diz também haver falta de ousadia dos media mainstream em debater sobre as últimas ações de protesto dos ativistas climáticos e em contextualizá-las. “O que é que está em causa? O que é que querem realmente? Quais são as suas propostas?”, questiona, criticando ser “muito mais fácil atacar o mensageiro”.

Em contrapartida, o que incomoda tem o efeito desejado, porque a causa climática permanece e o apelo deste movimento mantém-se na ordem do dia. “Há estudos que mostram que, apesar de esses atos alienarem alguns públicos, a longo prazo pode não haver necessariamente uma perda para a causa em si, porque as pessoas podem afastar-se daquele grupo e dizer que não aceitam aqueles atos, mas, de alguma maneira, a causa permanece, o apelo mantém-se na agenda”, afirma.

Durante a entrevista, invocam-se outras lutas históricas, como a do Movimento dos Direitos Civis ou o Movimento das Sufragistas, para discutir se não estaremos a passar por um momento que, no futuro, virá nos livros de História e onde a memória do que estes jovens estão atualmente a fazer será exaltada.

“Eu acho que o que está aqui em causa é tão ou mais importante que qualquer uma dessas outras lutas históricas, algumas das quais envolveram atos de violência perpetrada por ativistas, que na altura causaram muita indignação, mas que manifestaram, ao mesmo tempo, a paixão, a determinação, o sentimento de que se está, de facto, a lutar por uma coisa maior do que nós”, defende Anabela Carvalho.

 

“O que está aqui em causa com as alterações climáticas é quase a luta pela questão mais fundamental de todas, que é, de facto, o planeta, o sistema biogeofísico que nos sustenta sine qua non, sem o qual nenhuma outra luta pode sequer ser pensada”, sublinha a investigadora.

 

Existe também uma dualidade na forma como se olha para estes ativistas e os agricultores. O tratamento de uns e outros nos media não passa despercebido quando se comparam as duas realidades. No início do ano passado, agricultores protestaram veementemente pela Europa contra as metas do Pacto Ecológico Europeu e que causaram tanta ou maior perturbação.

“No ano passado, os agricultores cortaram a Ponte Vasco da Gama. Em termos económicos, os impactos de uma ação destas são muito maiores do que o corte de estradas feito por ativistas da Climáximo”, recorda Inês Subtil, da Amnistia. “Ainda assim, nós não assistimos a uma revolta em relação a estas acções dos agricultores, até mesmo pelos meios de comunicação social dos comentadores políticos. Toda a gente pareceu entender e tolerar aquelas ações. E muito bem, nós achamos que esse deve ser o caminho, mas em relação aos ativistas pelo clima, não há esse grau de tolerância, nem por parte das pessoas, nem por parte das forças de segurança”.

Criminalização em curso?

As mais recentes decisões dos tribunais portugueses têm acompanhado a escalada das ações de protesto do movimento climático. Não foram criadas novas leis para punir ou reprimir a ação de ativistas, mas os ativistas estão a ser condenados à luz da legislação existente. As opiniões dividem-se quando a “criminalização” é o centro da questão.

Gonçalo Fabião interpreta a «criminalização» como “um projeto político de criar leis que criminalizem novos comportamentos que ainda não são crimes”. Estar a acrescentar crimes ao Código Penal para criminalizar comportamentos de ativistas climáticos, como aconteceu no Reino Unido ou na Austrália, poderia criar “um desequilíbrio nos pratos da balança”, afirma, “até porque os essenciais já estão criminalizados”, referindo-se à ofensa à integridade física, ao atentado à segurança rodoviária e património cultural.

Para Tiago Carvalho há “um aproveitamento dessas leis para ir atrás de movimentos sociais e de militantes”, referindo-se à forma discricionária de como a lei é aplicada por parte das entidades em determinadas situações. “Não podemos condená-los por desobediência civil, vamos condená-los por outra coisa, como destruição de propriedade privada e coisas do género”, exemplifica o investigador.

Para Maria Paixão, a criminalização é clara e o que tem acontecido não é mais do que uma interpretação da lei. “A lei não tem nenhum crime específico que diga «ativistas que se sentam na estrada são condenados a X anos de prisão». Isso não existe. O que existe é que os tribunais têm de ir buscar outros crimes que já estão no Código Penal. E aqui eles têm de ir buscar, por exemplo, o crime de atentado à segurança rodoviária. Não é automático que aquilo que eles estão a fazer seja um atentado à segurança rodoviária. É uma interpretação que os tribunais estão a fazer e é por isso que nós falamos numa criminalização, porque os tribunais poderiam decidir de outra forma”, explica a investigadora que presta também apoio legal a ativistas climáticos em diferentes coletivos, nomeadamente no Climáximo, na GCE e no Fim ao Fóssil de Coimbra.

Quer ajudá-los a compreender o que está escrito na lei, em termos direitos e deveres que todos temos, sobretudo em torno do direito de manifestação, tecendo um laço íntimo entre o conhecimento e a emancipação. No caso de haver algum tipo de contacto com autoridades policiais ou mesmo com tribunais, dá apoio na desmistificação de conceitos da linguagem legal para que as pessoas se sintam mais confortáveis e familiarizadas com aquilo que pode parecer ambíguo à primeira vista.

“O Direito devia ser acessível a todas as pessoas, porque na realidade são as regras que regem a sociedade. Mas, na prática, muita gente não lhe tem acesso. E essa questão para mim é mesmo importante, no sentido não só material, mas também de elas próprias se sentirem emancipadas, de perceberem o Direito e saberem quais é que são os seus direitos”, defende Maria Paixão.

Em Portugal, não há nova legislação, mas o decreto lei nº 406/74 irá ser revisto nos próximos anos. O processo, que está agora no início, vai ser longo e irá requerer um trabalho de equipa de vários partidos, de acordo com a Amnistia Internacional. Para já, Inês Subtil não consegue precisar quanto tempo irá demorar a revisão, mas avança que todos os partidos com assento parlamentar, à exceção do Chega, se mostraram disponíveis para rever a legislação.

A preocupação basilar é “entender exatamente de que forma é que uma alteração à lei não acaba por ser contraproducente”, diz a investigadora. À luz do que aconteceu no Reino Unido, Inês Subtil diz que não se quer cometer o mesmo erro, visto que “a legislação foi revista para pior”, passando a restringir o direito de protesto dos manifestantes.

Todos os partidos com assento parlamentar foram contactados, a fim de perceber de que forma o exercício do direito à reunião e à manifestação iria ser protegido enquanto a lei não é revista, mas o Gerador não obteve resposta de nenhum.

 

Contrapesos

Inês, apoiante do Climáximo, afirma que “é absolutamente inegável” que as detenções servem o propósito de intimidar ativistas e de “criar peso na vida das pessoas, de fazer com que elas comecem a ficar assustadas e pensem que é melhor não se arriscarem a coisas dessas”, sob pena de, depois, terem de ficar retidas na esquadra, serem detidas ou terem de enfrentar processos em tribunal que se arrastam durante anos.

Está há quatro anos à espera da conclusão de um processo, no qual é acusada de desobediência qualificada, por ter bloqueado a Rotunda do Relógio, em Lisboa, num protesto contra a poluição causada pela aviação, em maio de 2021. Sobre si, cai uma medida de coação que a proíbe de entrar no aeroporto de Lisboa.

É ainda arguida noutros processos e, entre acusações de crime de dano, dano qualificado e desobediência qualificada (artigos 212º, 213º e 348º do Código Penal, respetivamente), o “caso mais complexo”, como o descreve, foi aquele em que foi condenada por introdução em lugar vedado ao público (punido pelo artigo 191º do Código Penal), pela ação que decorreu no aeródromo de Cascais em Tires, em dezembro de 2023, na qual ativistas pintaram e bloquearam um jato privado.

Esta ação foi das que trouxe maior atenção mediática e apoio ao movimento, segundo Viriato, também apoiante do Climáximo. Afirma que as pessoas tendem a compreender melhor quando o alvo das suas ações mais disruptivas são infraestruturas poluentes. Esta foi também a ação que mais trouxe realização pessoal ao ativista, por ter tido consequências diretas no corte de emissões de carbono.

 

“Foi a ação em que eu senti mais que realmente tínhamos cortado emissões, durante o tempo em que aquele jato esteve parado. Não só aquele jato, mas todo o aeródromo esteve parado durante uma hora e meia”, conta Viriato.

 

Os ativistas que participaram nesta ação foram condenados a 15 meses de prisão suspensa e de 135 dias de multa, convertidos em trabalho comunitário.

Se numa das frentes está o corte direto de emissões através do bloqueio de infraestruturas poluentes, noutra está o alcance que um ato isolado pode ter. “Atirar tinta é uma ação mais isolada, mas que tem muito mais alcance mediático e que nos faz provar um ponto”, diz Vicente, ativista da GCE recentemente condenado por ter atirado tinta ao atual primeiro-ministro e lhe ter estragado a roupa. Na sua perspetiva, este tipo de ações dá-lhes uma “plataforma para falar, para que as pessoas percebam o que estamos a fazer e para se poderem juntar também”.

Mas as acusações e condenações não os demovem. Inês afirma que não sente o peso das acusações no seu quotidiano, mas reconhece que elas podem funcionar como um entrave ao movimento climático para a mobilização de mais pessoas ou ter mesmo um efeito dissuasor. Por outro lado, acredita que as condenações “muitas vezes, também geram uma solidariedade geral da população”, referindo-se ao apoio que, de vez em quando, recebem para ajudar a pagar multas.

Espera.

Por norma, a pessoa que é alvo de uma acusação tem um percurso longo pela frente. A jurista e investigadora Maria Paixão destaca que são necessários recursos materiais, financeiros e emocionais para a combater.

A morosidade da Justiça em Portugal e as greves nos tribunais que aconteceram nos últimos anos prolongam estes processos e, apesar de haver apoio judiciário gratuito, garantido pelo Estado, o custo da Justiça não é acessível a toda a gente.

Além das custas judiciais do próprio processo, “se uma pessoa quiser ter uma defesa fora do sistema público, vai ter de sustentar os custos de um advogado, que são também muito elevados”, ilustra a jurista, acrescentando, por outro lado, que “os limiares que nós temos na Segurança Social para obter o apoio judiciário são bastante baixos; então, a maior parte das pessoas que têm um salário normal já não vai usufruir desse apoio”.

Mesmo que a absolvição seja o desfecho, o fardo de um caso em tribunal já criou raízes, o que, em último caso, pode desincentivar a participação em protestos pacíficos mais perturbadores ou disruptivos.

A nível de saúde mental, o burnout militante é uma realidade, embora o apoio que estes ativistas dão uns aos outros e o cuidado que têm uns pelos outros também o seja.

“Não temos propriamente um psicólogo, mas falamos em grupo e partilhamos as nossas experiências. E é a coisa mais importante depois de uma ação”, diz Maria, apoiante da GCE. Explica que existem grupos de afinidade dentro dos movimentos, exatamente com o propósito de se apoiarem mutuamente, e “buddies”, ou pares, para que ninguém fique sozinho durante as ações.

As experiências relatadas contam stress, trauma, cansaço físico e psicológico e, para alguns, a necessidade de fazer pausas tanto na participação assídua às reuniões coletivas como nas próprias ações de rua. Assumir menos riscos legais é, num dos casos relatados, sinónimo de proteger a saúde mental, porque “ir para a prisão, para mim, não é uma opção”, conta um dos ativistas do Climáximo.

Fazer questão de se estar informado e atualizado das evidências científicas sobre a crise climática é um dos fatores que gera ansiedade, sendo que, por outro lado, sentimentos de desespero, irritação e frustração pelo facto de “as pessoas não estarem a agir” são igualmente comuns.

O confronto com a polícia também é referido como fator de desregulação emocional. Inês relata que, para si, “teve um impacto muito forte” e ansiogénico, mas a rede de apoio que tem no movimento de que faz parte ajuda-a a lidar com isso.

“Por muito que nós saibamos que existem pessoas que são constantemente alvo de ataque por parte destas instituições, por exemplo, pessoas marginalizadas nos bairros, até sentirmos isto na nossa pele, às vezes há uma certa dissonância. (…) Mas, enfrentando isto em coletivo, a minha ansiedade é mais sobre o mundo em que estamos a viver e sobre as consequências desastrosas do colapso climático do que propriamente sobre as consequências em mim própria e nas consequências que a repressão tem no geral no movimento”, afirma a ativista.

Há, simultaneamente, uma violência policial crescente para lidar com as ações de desobediência civil dos ativistas.

As histórias de repressão e o crescente zumbido dos órgãos de comunicação social levaram a Amnistia Internacional a intervir e a criar um programa de observadores de manifestações, no âmbito da campanha “Protege a Liberdade”. O objetivo, segundo Inês Subtil, “é ver de que forma é facilitado ou não o direito de reunião em Portugal”.

 

Ativistas entoam “Que vergonha, que vergonha que deve ser prender um ativista num mundo a arder” durante a manifestação organizada pelo movimento Climáximo, em novembro de 2024

 

Na manifestação organizada pelo Climáximo em novembro passado, em Lisboa, foi a primeira vez que a Amnistia Internacional esteve presente enquanto observadora.

 

A ação, que teve início na Praça Paiva Couceiro e desaguou na Praça do Chile, pretendia “quebrar com a normalização que existe da violência da crise climática” e “apelar a uma mobilização de base”, permitindo que as pessoas se encontrassem durante aquelas horas e sentissem “o poder que existe entre elas”, disse Inês, apoiante do movimento, em declarações ao Gerador nesse dia.

A marcha fez-se ao som de tambores, palavras de ordem e algumas paragens. A cada paragem, um momento para cruzar as pernas no chão e ouvir a voz de quem perdeu a sua casa para as chamas, nos fogos devastadores de 2017, em Portugal, ou de quem sofre diariamente com a crise climática.

 

Passagem de um testemunho durante a manifestação organizada pelo movimento Climáximo. Aqui, pode ouvir-se: “Vi-me rodeado de chamas que entravam pelas janelas e de um fumo que já não me deixava respirar. Tive que abandonar a casa, consegui passar pelas chamas e chegar à população e fiquei a saber que nesse dia muita gente morreu e foi um dia trágico para Portugal. Foi o maior incêndio da Europa. Para que conste, até hoje ainda não recebi o apoio à reconstrução a que tenho direito legal.”

 

Vestidos de amarelo, viam-se observadores da Amnistia Internacional de um lado para o outro. Como referido anteriormente, a presença da Amnistia em protestos e manifestações serve um mapeamento, à escala europeia, para aferir o estado da legislação no que toca a este direito fundamental, mas nasce também de algumas denúncias relacionadas com violência e o uso excessivo da força por parte de agentes de segurança.

“Nós sabemos que, quando a Amnistia está presente, há um efeito dissuasor da violência. Na realidade, estamos lá também para dar esse apoio aos ativistas e às próprias forças de segurança”, afirma a coordenadora de investigação desta organização.

Já estiveram presentes em manifestações do movimento Vida Justa e da plataforma Casa para Viver, na Marcha Amílcar Cabral e na Marcha do Orgulho LGBT, bem como nas comemorações do 25 de Abril e em concentrações organizadas pelo partido Chega.

Nesses momentos, os olhos estão postos em “todos os atores envolvidos numa ação de protesto” – sejam eles manifestantes, agentes de segurança ou transeuntes. A Amnistia quer perceber como estes atores reagem e interagem entre si.

 

Num contexto democrático em que se multiplicam desafios globais, a forma como as nações lidam com o ativismo climático tornou-se um barómetro dos seus compromissos com as liberdades fundamentais. Criminalizar protestos estritamente pacíficos em nome da lei e da ordem pública coloca em causa princípios basilares como a liberdade de expressão e de reunião – os mesmos que distinguem uma democracia robusta de um regime autoritário​. Ao enquadrar atos de desobediência civil não violentos como ameaças criminais, as autoridades abrem um precedente delicado, normalizando a repressão e potencialmente alargando esse alcance punitivo a outras formas de participação cidadã no futuro.

O caso português insere-se neste dilema: até que ponto se pode invocar a defesa do Estado de direito para conter protestos por uma causa pública urgente, sem erodir os alicerces da própria democracia?

Em última análise, a criminalização do ativismo climático arrisca comprometer não apenas o direito de manifestação, mas a própria participação cívica. À medida que o espectro de sanções legais severas se amplia, muitos cidadãos poderão afastar-se dos movimentos de protesto, receando as consequências – um efeito dissuasor já visível em países onde leis anti-protesto mais duras entraram em vigor​. O resultado é um debate público empobrecido, com menos vozes dispostas a exigir mudanças, precisamente quando a crise ambiental exige uma mobilização social sem precedentes. Sufocar a dissidência em nome da ordem não só levanta questões éticas e políticas imediatas, como pode atrasar soluções para a própria emergência climática: afinal, o futuro da justiça climática dependerá também da capacidade de a sociedade civil se fazer ouvir sem medo e de manter vivo o espaço democrático de contestação.

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