Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.
Há cem anos que o Alentejo não via um ecocídio assim. O dinheiro público e a água do Alqueva regam o crescer das monoculturas industriais. Há quem proteja a riqueza que resta e há quem semeie futuros entre os prenúncios do deserto.
I.
Abalei da minha terra
olhei para trás chorando
minha terra da minha alma
tão longe me vais ficando
O velho jipe imobiliza-se na paisagem. À volta, a perder de vista: infindáveis filas de olival. O silêncio poeirento da planície é entrecortado pelo roncar de um trator, num desfilar obediente. Os tons desérticos são salpicados pelo líquido azul que jorra do pulverizador.
José Manuel Rodrigues sai para o asfalto estreito, empunha a câmara e dispara. Foi aqui, em Baleizão, terra de Catarina Eufémia, que o mestre fotógrafo de Évora começou no início deste ano a percorrer o Alentejo, retratando a transformação da paisagem.
«No final da Segunda Guerra Mundial, os militares levavam os jornalistas e fotógrafos a ver o que encontraram, para mostrar ao mundo. George Rodger, quando chegou aos campos de concentração e começou a fotografar, a compor, como estava habituado, parou e disse: “Eu sou maluco! Estou a compor com a tristeza humana, com o caos total?” Eu tive um bocado essa sensação quando cheguei a Baleizão. Isto não é uma transformação da paisagem: isto é uma catástrofe.»
José ouvia falar do tema. Só não tinha noção de quão «grande e devastadora» era a expansão da monocultura industrial. «Não há pássaros. Cheira-te a químicos. Máquinas enormíssimas arrasam o território. Na região de Portel, vi campos tão vastos… Na estrada de Reguengos, já não reconheci os sítios, tal a mudança. Fui para os lados de Estremoz, vi a mesma coisa. Para os lados do Crato, a mesma coisa. Levei as mãos à cabeça… O que está a acontecer com o Alentejo?»
O desafio veio da Direção Regional de Cultura do Alentejo (DRCP): percorrer hoje a região que fotografou incessantemente nos anos 80. O projeto chama-se Natureza Morta e resultará numa exposição e na publicação de um livro no final deste ano.
II.
É tão grande o Alentejo
Tanta terra abandonada
A terra é que dá o pão
para bem desta nação
devia ser cultivada.
«Agora só nos visitam para filmar a desgraça», canta Celina da Piedade, com os Tais Quais. «Nos campos à volta da vila, nem papoilas, nem trigais / O olival moderno avança cada vez mais», prossegue a Moda dos Enjeitados. É em Baleizão que a acordeonista e compositora tem raízes.
«Notamos estender-se de dia para dia o olival intensivo, o amendoal, e já há nogueirais, mesmo até à beira das estradas», conta, após um dos concertos de verão que deu por todo o Alentejo. Outro exemplo é a sumptuosa praia dos Cinco Reis, inaugurada o ano passado numa albufeira do subsistema de Alqueva. «Há olival intensivo quase até à água. Para além de não parecer nada saudável, é um bocado perturbador.»
A célere mudança da paisagem sugere em Celina um «sentimento dúbio, agridoce». «Ouço a minha mãe e as pessoas mais velhas que sentem a alegria de ver os campos finalmente a render e a ser usados. Um lado em mim fica feliz por a terra produzir e haver trabalho. Por outro, sinto que é um extremo. Uma agricultura intensiva que vai esgotar os solos e os recursos, poluir os lençóis freáticos, danificar o ecossistema. Deixa-me triste e zangada. E tanta mão de obra que vem de fora e é recebida de forma pouco clara. É um preço muito caro que se paga a nível humano e a nível ambiental.»
III .
Não procures desvendar
os mistérios da natureza
Para depressa chegares
A teres a firme certeza
Alqueva, do árabe al-qewê, «terra deserta». É hoje o nome do maior lago artificial da Europa Ocidental. Dois mil quilómetros de canais e condutas, estações elevatórias e barragens levam água para regar 120 mil hectares de terras, que, em breve, podem ser 200 mil. É o equivalente a 20 cidades de Lisboa.
Foi há quase 20 anos que as comportas da barragem se fecharam, no maior investimento público alguma vez feito em agricultura no país. Sob o protesto de defensores do ambiente, concretizava-se uma velha vontade de irrigar em grande escala o Alentejo Interior. Para os gigantes do agronegócio, foi o Eldorado: água subsidiada, num vasto território despojado tanto de gente como de planeamento que lhes exigisse especial respeito pela ecologia do lugar. Fizeram copy na Andaluzia, paste no Alentejo.
Numa investigação publicada na revista Sábado, Paulo Barriga dá conta da concentração de terras da região. Em 10 anos, 70 % do território agrícola do Alqueva mudou de mãos, e o preço da terra aumentou cinco vezes. Hoje, apenas seis grupos detêm ou gerem mais de 65 % dos olivais da região, com a Elaia e a De Prado à cabeça.
«Tudo se vai plantando, olival em copa como olival em sebe. Em sebe tem a vantagem de otimizar os recursos com a tecnologia. É muito importante sermos eficazes na colheita para melhorar a qualidade do azeite e a rentabilidade», explica Pedro Lopes, diretor para Portugal da De Prado e também presidente da Olivum.
Fundada em 2014, a Olivum representa as empresas do setor, 42 mil hectares de olival, e os lagares, cujo número na região caiu para menos de metade nos últimos 20 anos. Dos 15 membros dos órgãos sociais, 14 são homens. Desde 2019, a associação divulga o estudo «Alentejo: A Liderar a Olivicultura Moderna Internacional», realizado por duas consultoras. A região é apresentada como tendo «as melhores características para o desenvolvimento da olivicultura moderna» no mundo e Portugal como podendo tornar-se na próxima década o terceiro maior produtor de azeite mundial.
III .
Não procures desvendar
os mistérios da natureza
Para depressa chegares
A teres a firme certeza
No site da De Prado, a gigante agroalimentar espanhola diz querer comprar 2 mil hectares de terras cada ano: em Portugal, na Califórnia e no Chile. Na imensa herdade a sul de Beja onde está sediada, as máquinas arrancam, uma a uma, jovens oliveiras plantadas em regime intensivo, para agora plantar oliveiras em sebe, em regime superintensivo, que permite a colheita mecânica, ou amendoal, cultura que exige 50 % mais água do que o olival.
Em 2017, a De Prado surgiu nas notícias ao destruir quase duas dezenas de sítios arqueológicos, para plantar três mil hectares de amendoal intensivo. Pedro Lopes declina abordar o episódio e diz que «toda a gente se pode enganar».
Os sítios vinham assinalados no Plano Diretor Municipal de Beja. Quando soube da ameaça, a Direção-Geral do Património solicitou à empresa que parasse os trabalhos. As máquinas prosseguiram. O «engano» custou uma ponte, um aqueduto e uma villa romanos, vestígios dos períodos Calcolítico, Idade do Ferro, do Bronze, Medieval e Moderno.
Mas o caso está longe de ser único. «Avisamos os proprietários ou promotores com cartas registadas e aviso de receção por mais do que uma vez, eles ignoraram sistematicamente», denuncia Ana Paula Amendoeira, diretora regional de Cultura do Alentejo. «É porque querem mesmo destruir, com o fito de plantar a maior área possível.»
Durante a obra pública da Barragem de Alqueva e infraestruturas associadas, houve lugar à maior operação de arqueologia de sempre em Portugal, que veio revolucionar o nosso conhecimento sobre o Alentejo. Já nos últimos cinco anos, aberta a torneira à agroindústria, acudir ao património ameaçado tornou-se uma das mais importantes e ingratas tarefas da DRCA.
«A maior parte das pessoas não se dá conta do que está a acontecer. Uma plantação destas implica uma violenta preparação do terreno. Num território de dois ou três mil hectares, o grau de destruição é massivo. As árvores são cortadas, os muros de pedra seca, que estão ali há séculos e são de um conhecimento técnico brutal, os cursos de água, os montes, os moinhos, as noras e os vestígios arqueológicos são completamente destruídos», afirma Ana Paula Amendoeira. «Não resta nada, como se fosse uma paisagem lunar».
Desde a sede da DRCA, no centro histórico de Évora, têm partido várias denúncias e queixas-crime. Até hoje não foi aplicada qualquer contraordenação.
Para a mestre em Recuperação do Património Arquitetónico e Paisagístico, «todos estamos a perder». «Quando se destrói monumentos megalíticos, vilas e pontes romanas, povoados pré-históricos, de forma selvagem e ignorante, numa atitude contra civilizacional, o que se está a fazer é impedir que aqueles sítios e conhecimentos possam algum dia entrar na nossa memória. Não destruir as coisas que são de todos é um princípio que qualquer pessoa percebe».
«É absolutamente paradoxal: o património que temos estado a destruir com este modelo agrícola ensina-nos como é que a agricultura começou e se consolidou aqui. Para a agricultura, devia ser praticamente sagrado», afirma Ana Paula. E estes conhecimentos, defende, podem ensinar-nos muito no atual momento de destruição de recursos do planeta. «Estamos a fazer um corte brutal com o passado, a dizer que o que está para trás não nos interessa, apenas nos interessa promover a cultura da obsolescência programada e o rápido desgaste de tudo. Incluindo a terra… É destruição em pura perda. O que isto permite é um grande lucro privado, que entra diretamente nessa cadeia de obsolescência.»
Será igualmente um paradoxo que um projeto hídrico do século xxi sirva para apagar conhecimento ancestral sobre o aproveitamento da água. «O nosso território sempre foi escasso em água, por isso foi-se apurando conhecimento e tecnologia ao longo de milénios, que foram muito reforçados com os árabes. Noras, poços, cisternas, canais… Com uma atitude arrogante, estamos a desaprender, desperdiçar e destruir os vestígios dessa sabedoria.»
V.
O Sol é que alegra o dia
Pela manhã quando nasce
Ai de nós o que seria
Se o Sol um dia faltasse.
Como os vestígios subsistem na terra, há sabedoria que subsiste na casca dos sobreiros, nos versos do cante, nos gestos das gentes.
Nesta «terra de poucas gentes e de poucas gentes com terra», José Manuel Rodrigues testemunhou uma relação profunda entre homem e a natureza. «Havia muitas zonas que nunca haviam sido tocadas pelo homem, em que a natureza era assim há milhares de anos. Havia pessoas que eram autênticas enciclopédias, sabiam tudo: as plantas, a história, tudo de forma oral. As pessoas têm muito pouca formação – a formação que tinham, muito forte, era a sua ligação à natureza.»
«Não foi por acaso que o homem alentejano criou um dos ecossistemas – ecossistemas criados pela mão do homem – mais perfeitos que existem: o montado», anima-se Celina da Piedade. «Tem um equilíbrio tal que se autossustenta e autorregenera. Isso terá muito a dizer sobre esta ligação à Terra e este respeito intrínseco que estaria na génese da cultura do povo alentejano.»
Celina escuta no cante alentejano e observa no quotidiano da sua mãe exemplos dessa ligação. «Ela recicla tudo, sem que lhe importe o que é a reciclagem. Aproveita as cascas dos ovos para a terra, os restos de comida para as galinhas da vizinha, tem toda uma rede de vizinhos com quem troca o máximo de alimentos, sem ter que ir ao supermercado… Estamos a falar de gerações que passaram fome, e isso era necessário para a sobrevivência do dia-a-dia.»
«Há também o aceitar que todas as coisas têm o seu tempo. Não podemos ir trabalhar ao sol, nem à noite. Aceitar os ritmos. Essas lógicas naturais que demonstravam um grande respeito pelo ecossistema. Visto dessa perspetiva, esta agricultura intensiva desrespeita todo esse ritmo, todos esses ciclos.»
Desde o Castelo de Montemor-o-Novo, a descida do sol clareia o montado, que nesta zona do Alentejo ainda prevalece, e olivais antigos que penam em encontrar quem os colha. «A paisagem do Alentejo é de uma riqueza enormíssima, e o mais marcante é o sistema de montado. Estes sistemas silvopastoris, com árvores e pastagem por baixo, eram bastante comuns até à Idade Média e hoje existem muito pouco na Europa. São extremamente complexos e têm um interesse elevadíssimo do ponto de vista da biodiversidade», explica Teresa Pinto-Correia.
A investigadora do MED – Instituto Mediterrâneo para Agricultura, Ambiente e Desenvolvimento da Universidade de Évora – vem denunciando um processo silencioso: a cada ano desaparecem cerca de 5 mil hectares de montado. «Se desaparecer o montado, depois não há nada.»
VI .
Eu sou devedor à Terra
A Terra me está devendo
A terra paga-me em vida
Eu pago à Terra em morrendo
«Se hoje tivermos de produzir alfaces, produzimos alfaces, se amanhã for coentros, é coentros, se tivermos de produzir azeite, produzimos azeite», afirma Pedro Lopes. «O agricultor, o investidor, o empresário, está de acordo com aquilo que consegue tirar rentabilidade da sua terra, cuidando dela.»
«O que se quer é produzir cada vez mais em cada vez menos espaço. Ao preço a que está o hectare de terra agrícola com acesso à água em Portugal, o investidor não está interessado em ver o seu investimento desbaratado. A terra tem de ser cuidada e bem tratada. Ninguém é suicidário ao ponto de comprar terra para a destruir», defende por seu lado Gonçalo Almeida Simões. O atual diretor executivo da Olivum foi representante da agroindústria e depois representante do governo português junto das instituições europeias em Bruxelas. Apresenta um estudo deste ano da Empresa de Desenvolvimento de Infraestruturas do Alqueva (EDIA), que conclui que a cultura do olival está «perfeitamente adaptada» ao Alqueva, possui «baixas exigências hídricas» e é, para a região, uma «mais valia económica e social».
Para Teresa Pinto-Correia, o estudo tem poucos dados. «Não temos a informação de base para perceber em que se fundamentam algumas das conclusões. Isto é uma questão tão grave e importante para o país que precisamos de informação qualificada e comprovada para poder discutir.»
Segundo a investigadora, o custo real da água que está a ser utilizada para regar é muito superior ao que está a ser cobrado. «Obviamente é um negócio muito bom para as empresas.»
«Nos nossos climas mediterrânicos, já sujeitos claramente às alterações climáticas, a água é e será um recurso extremamente escasso. Seria mais interessante e sustentável aplicar o esforço e investimento público em pequenos regadios, que ajudassem a dar sustentabilidade ao montado ou aos sistemas de sequeiro, naturalmente mais bem adaptados ao ecossistema.»
Entretanto, um levantamento da associação ZERO, apresentado em agosto deste ano, cartografou os terrenos convertidos para olival, amendoal, vinha e outras culturas em regadio intensivo em Beja. Neste concelho apenas, contabilizou a destruição de 18 charcos temporários mediterrânicos e mais de mil hectares de montados, habitats protegidos. A ZERO denuncia a «subsidiação pública da destruição ambiental»: grande parte destes projetos beneficiam de fundos do Programa de Desenvolvimento Rural.
«Por ser mais fácil o trabalho mecânico, as galerias ripícolas [habitats junto aos cursos de água] nas áreas onde foram instalados olivais e amendoais intensivos foram completamente destruídas», diz Teresa. «Em princípio nem se pode tocar ao longo das linhas de água, correspondem ao domínio público hídrico. As galerias ripícolas não são só estética: têm uma função fundamental no funcionamento de uma paisagem do ponto de vista do fluxo da água, evitar a erosão e manter corredores para a biodiversidade.»
A investigadora lamenta que o investimento público do Alqueva não tenha tido o planeamento e ordenamento do território associado. «A agricultura deve ser integrada na paisagem e no ecossistema do Alentejo, para criar um mosaico agricultural e manter a diversidade e o equilíbrio. A conversão em áreas muito extensas de monocultura é uma enorme simplificação da paisagem, que tem problemas do ponto de vista identitário, mas sobretudo do ponto de vista da falta de biodiversidade. Vai trazer problemas às culturas, porque o controlo de pragas e doenças é muito mais difícil. Têm de ser tratadas com fitofármacos, e isso vai trazer problemas na qualidade da água, e no investimento necessário para manter a cultura. Já verificámos em Espanha que em termos de solos e de pragas há uma falha grande do ponto de vista ecológico.»
Nas palavras do biólogo Paulo Pereira, o advento da engenharia agronómica trouxe consigo uma certa presunção do ser humano achar que controla todos os processos. «Em qualquer tipo de sistema agrícola intensivo, há aquela ideia de que a única coisa que nos interessa é o que temos a produzir. Tudo o resto é concorrência a eliminar. Isto é como ligar a nossa produção à máquina. Como se tivéssemos um doente de covid ligado ao respirador. Só com a água a pingar, adubos, tratores, pulverização de inseticidas e herbicidas todo o ano se consegue manter a cultura. Estamos a criar um zombie, que não tem qualquer autonomia fora do cuidado humano.»
VII.
Seara, verde seara
Mondada com tanto gosto
És verde na primavera
E loura no mês de agosto
A rega do Alqueva pinga hoje sobre a ferida de um ecocídio mais antigo.
Inspirada no fascismo italiano, a Campanha do Trigo dos anos 30 e 40 foi o projeto da ditadura militar e do Estado Novo com vista à autossuficiência em Portugal. A expansão descontrolada das monoculturas de cereais significou então o desaparecimento quase total das florestas naturais e o esgotamento dos solos do Alentejo.
Tal como o projeto de Alqueva, a Campanha do Trigo não desafiou o latifúndio nem o direito à terra, e tornou a agricultura mais subordinada do que nunca às indústrias química e de maquinaria agrícola (entre 1927 e 1934 a produção nacional de adubos duplicou).
Onde Salazar viu o celeiro de Portugal, a Olivum vê o lagar da Europa. Os caminhos de ferro abasteciam as cidades do litoral, onde crescia o uso do pão branco. Hoje os camiões abastecem as cidades europeias, onde cresce o consumo de azeite ou de leite de amêndoa. O estado subsidiava o arroteamento; hoje subsidia a rega. Onde se exaltava o «trigo da nossa terra», hoje exalta-se um azeite virgem «dos melhores do mundo».
Nos anos 50, quando a Campanha do Trigo é aceite como um desaire económico, social e ecológico para a região, o Estado Novo apresenta o Plano de Rega do Alentejo. Era o precursor da barragem de Alqueva.
VIII.
Ouve muito e fala pouco
Aprende com paciencia
Em sabendos que não sabes
Chegaste à melhor ciencia
Para lá do paredão de 100 metros de altura e mil milhões de metros cúbicos de betão, o Guadiana segue serpenteando para sul. Cem quilómetros a jusante, no alto da margem direita, surge a parede do castelo de Mértola.
A Horta da Malhadinha, cem mil vezes mais pequena que a área irrigada pelo Alqueva, acolhe o Centro de Agroecologia de Mértola. «É um sítio onde vamos plantando, testando, mostrando boas práticas agroecológicas, e capacitando outros para eles próprios pertencerem a esta rede de agroecologistas locais», explica Pedro Nogueira, da associação Terra Sintrópica. «É preciso que haja experiências que correm bem e mostrem que possibilidades há para cultivar num território com solos tão pobres, com falta de água e altas temperaturas».
Após ano e meio de experimentação, há entusiasmo. «Conseguimos ver um sistema abundante e, sim, está claro aqui que é uma via possível: um espaço que é produtivo mas que consegue ao mesmo tempo estar a regenerar-se e diminuir os níveis de água a ser debitados.»
«Na agricultura sintrópica trabalhamos com a sucessão e a estratificação. No fundo é planear no tempo e no espaço. E é incrível ver como o sistema cresce, mesmo neste clima! Pensas que seria queimado pela geada ou o sol, ou seco pela falta de água», afirma Laura Green.
«Não há conhecimento já prefeito. Tudo tem de ser adaptado ao contexto. E por isso precisamos de experimentar. De errar. De ter um espaço de partilha desse conhecimento que se vai fazendo», explica a jovem, que acaba de fechar um precioso ano letivo a trabalhar num projeto de hortas escolares no concelho – um convite desde a tenra idade para estas práticas e estes olhares. «Perceber que alternativas existem, consonantes com a ecologia do sítio, com uma comunidade, com uma escala do possível», completa Pedro, que deixou a carreira de arquiteto paisagista no Porto para se instalar em Mértola.
Aqui, onde a Ribeira de Oeiras conflui com o Guadiana, confluem a desertificação biofísica e a desertificação humana. Os vizinhos Mértola e Alcoutim são os concelhos com menor densidade populacional do país. Se os habitantes de Mértola se espalhassem pelo concelho, cada um teria mais de 5 quilómetros quadrados só para si.
«Estamos na linha da frente das alterações climáticas, num clima que já está classificado como semiárido, num caminho que conduz a esse deserto que já se anuncia. Temos solos muito pobres e degradados, com fertilidade baixíssima, onde não é invulgar ter plantações de árvores com 20, 30, 40 anos que mantêm uma altura quase anã», conta Pedro.
Assumem o desafio de forma conjunta: conseguir fixar pessoas no território, e que o propósito que as fixa seja exatamente a necessidade regenerativa do território. Regenerar, mas também produzir. Criar em conjunto uma transição agroecológica.
Se é desde aqui que pessoas como o arqueólogo Cláudio Torres têm contribuído para conhecer e curar a nossa relação com o passado, hoje pelo concelho de Mértola tece-se todo um «Laboratório do Futuro». É como um chapéu, aberto pela visão estratégica de mulheres como Rosinda Pimenta, vereadora da Câmara de Mértola, e Marta Cortegano, presidente da Associação de Empresários do Vale de Guadiana. À sombra do chapéu cresce todo um ecossistema de projetos: a rede alimentar local de Mértola; as Hortas Floresta nas escolas; o PREC – Processo Regenerativo em Curso, uma pequena cafetaria, mercearia, frutaria de produtos locais; os Jardins Terapêuticos; o «De Boca em Boca – histórias a nutrir comunidades», projeto cultural de reativação do ato de contar em comunidade, em parceria com a Universidade Sénior.
«Num sítio com tantas dificuldades, fazer um laboratório onde testar possibilidades. É muito concordante com o nosso momento do mundo», diz Pedro. «Há um grande desequilíbrio entre esse litoral cada vez mais adensado e um interior cada vez mais despovoado. Que possibilidades há para revermos estas práticas e criar outras centralidades onde achávamos que eram só periferias?»
IX.
Em cada dia que passa
E ao cheirinho do alecrim
Transformamos um deserto
num delicado jardim
«O que é que se perspetiva em termos de culturas a aparecer no Alqueva? Aquilo que o consumidor quiser consumir é aquilo que o agricultor terá para lhe dar», diz Gonçalo Almeida Simões. «A orientação do agricultor é sempre em termos de interesse de mercado e de interesse do consumidor. E o consumidor somos todos nós.»
«Não se vai arrancar todo esse olival», diz Teresa Pinto-Correia, mas devem-se criar mecanismos de compensação. «Por exemplo, quem planta 100 hectares de olival tem de manter 10 hectares de área ecológica. Seja manchas ou corredores, matas, reforçar as galerias ripícolas… Para parar os processos de erosão e possibilitar a recuperação ecológica e a regeneração dos solos.»
Ana Paula Amendoeira assume como tem sido dura a defesa do património arqueológico. «Ocupa-nos muita energia, temos de estar todos os dias a lutar. E, embora tenhamos perdido muitas vezes, não desistimos.» Numa iniciativa sem precedentes, para proteger o património que resta, a DRCA propôs no ano passado a classificação de dois mil monumentos megalíticos no Alentejo como um conjunto de interesse nacional. Se forem classificados, a sua destruição passará a ser considerada crime público. «Temos aqui uma grande cruzada. Precisamos muito de eco. E as artes têm um contributo muito importante a dar.»
José Manuel Rodrigues prossegue pela estrada, de olhar atento. «Com o tempo interessa-me mais chegar à essência das coisas do que documentar. Começa a ser mais importante aquilo que estou a fotografar do que eu próprio», confessa. O fotógrafo sente que os desastres silenciosos a acontecer em vários pontos do Alentejo – das vinhas ao parque de painéis solares no Cercal, das pedreiras às estufas do litoral – «são, afinal, a mesma coisa». O projeto «Natureza morta» promete «deixar de ser um projeto fotográfico, para ser um projeto de combate. Gostava que a exposição fosse mais um grito. O problema é tão grave que tenho de ir à luta.»
Celina da Piedade revela um novo projeto – e por ele o seu entusiasmo. Chama-se «Um» e é iniciativa da Associação Rota do Guadiana, do centro Musibéria e do município de Serpa. Através da música, quer-se juntar as comunidades locais e as pessoas migrantes, muitas delas vindas trabalhar nas monoculturas. «Há grande dificuldade em chegar aos migrantes, que muitas vezes vivem nas próprias herdades isolados. O sonho seria criar uma pequena orquestra multicultural e multigeracional, que incluísse migrantes e residentes, e cruzasse repertórios. Que todos aprendêssemos música do Bangladexe ou do Paquistão. E fazê-los sentir-se mais acolhidos. Temos de ser todos bons vizinhos, pôr-nos na pele dos outros, encurtar as distâncias!»
Pedro Nogueira diz-se consciente do desafio que é ensaiar futuros em Mértola. «Mais do que um projeto, é um processo. As plantas demoram o seu tempo a crescer. Estas coisas demoram tempo, então é preciso sermos todos generosos. Criar redes é um desafio. Mas elas estão a ganhar corpo, e isso dá-nos esperança. Temos caminho a fazer. E quanto mais pessoas se aproximarem e forem parceiras, estupendo!»