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Texto de Sofia Craveiro
Edição de Débora Dias e Tiago Sigorelho
Produção de Martim Campos
Ilustrações de Nuno Metello
Design de Priscilla Ballarin
Digital de Eunice Gordon
Ainda antes de chegar às bancas, em 1973, o jornal Expresso já tinha arquivo. Francisco Pinto Balsemão, que o fundou, teve desde cedo a preocupação com a preservação da memória deste que foi o primeiro órgão de comunicação do grupo Impresa. Isto mesmo foi referido por Maria João Lopes, diretora dos Arquivos Impresa e Produção Publishing, durante a visita do Gerador às instalações do grupo.
No início, o semanário arquivava, sobretudo, recortes e edições em papel, microfilmes e fotografias. Atualmente, os procedimentos são diferentes. Todo o espólio está digitalizado e é acessível numa plataforma digital interna. Nunca foi prática desta empresa arquivar materiais não publicados, com exceção das fotografias, que podem sempre vir a ser utilizadas no futuro. Quaisquer materiais relativos à investigação realizada por jornalistas – como brutos de entrevistas – também não são guardados. “É uma questão mesmo de gestão”, diz Maria João Lopes. “Nós fomos melhorando alguns processos conforme as necessidades e, se a direção, nomeadamente o Expresso, solicitasse algum tipo de [conteúdo] avaliava-se e integrava-se [no arquivo].”
No que toca aos conteúdos audiovisuais da SIC – detida pela mesma empresa –, os processos são um pouco diferentes: “Guardamos o PGM, que é o que vai para a emissão já com o grafismo exatamente como [passa], o mesmo clip, mas clean feed, sem o grafismo, para poder ser reutilizado e os brutos de reportagem”, nomeadamente imagens de edifícios, ambientes ou circunstâncias. Também podem guardar brutos de entrevistas, após avaliação editorial. Os programas de entretenimento da SIC generalista também estão todos salvaguardados, seja em formato digital ou VHS, mas noutro departamento da Impresa.
Enquanto o Expresso tem um arquivo digital próprio, no caso da SIC existe um sistema “completamente integrado”, no qual é gerido o sistema editorial com que o jornalista trabalha, e onde é possível transpor ficheiros diretamente para o arquivo. Todas as componentes “estão integradas”, como um “fluxo”, desde a gestão de contratos, ao trabalho na redação. “Isto tem de ser muito específico e algumas coisas são desenhadas para nós”, refere a responsável.
“Os arquivos têm de estar disponíveis para terem valor e para serem consultados. Um arquivo morto não serve rigorosamente para nada. Por isso, tudo o que temos em arquivo tem de estar à distância de um clique. Parece clichê, mas tem de ser assim”, acrescenta. Daí que exista a premissa de um jornalista poder aceder ao arquivo de forma autónoma, sem intervenção do arquivista, salvo raras exceções.
No que respeita a conteúdos mais sensíveis, que possam dizer respeito a denúncias anónimas, por exemplo, as gravações não são arquivadas. “Na maioria dos casos, são destruídas” e nem chegam ao arquivo. Essa é uma política definida pela empresa. Daí que não existam quaisquer conteúdos de acesso restrito.
De facto, além do Expresso e SIC, também a Rádio Renascença e a RTP relataram que não é prática habitual guardar materiais não publicados inerentes à prática jornalística. A maioria dos responsáveis que deram o seu contributo para esta reportagem desvalorizam a importância dos mesmos, ao contrário dos historiadores e investigadores, que os consideram cruciais para estudar a história dos media em Portugal.
“A imprensa é uma das fontes mais vivas da história e, para contarmos essa história, acho que seria fundamental que as próprias empresas jornalísticas se preocupassem em preservar o seu património e o seu arquivo”, diz Pedro Marques Gomes, docente da Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa e da Universidade Lusófona.
De uma forma geral, percebe-se que o arquivo é feito em torno do que é publicado ou exibido. Só as entrevistas mais longas, que não tenham sido publicadas na íntegra, podem ser arquivadas, assim como planos de ambiente, no caso das televisões. Existem também, habitualmente num departamento à parte, arquivos administrativos.
Impresa e Renascença também arquivam conteúdos digitais, que publicam nos seus sites, mas esse trabalho é feito pelos departamentos de informática, sendo considerado algo externo ao arquivo propriamente dito.
Há ainda situações em que as empresas de comunicação social têm na sua posse espólios de outros títulos. A Impresa possui, além dos seus títulos, o arquivo fotográfico e de edições publicadas de O Jornal e suas variantes como O Jornal Ilustrado e O Jornal da Educação e o Se7e, um semanário dedicado ao mundo do espetáculo.
Têm ainda o arquivo fotográfico de A Capital e exemplares publicados, encadernados em livros com capa dura, como era costume ser feito na altura. Francisco Pinto Balsemão vendeu, segundo Maria João Lopes, o título A Capital a um dos acionistas, o jornalista António Matos, mas ficou com os arquivos fotográficos e as coleções físicas. Este espólio está classificado como histórico-cultural. “Aquilo que nos chegou era muito e penso que havia muito mais. Não me pergunte onde está o resto. Provavelmente os fotógrafos da altura levaram algumas coisas também com eles, não sei”, explica a diretora.
Os arquivos da revista Visão também estiveram na posse da Impresa, mas os mesmos foram transferidos para as mãos da Trust In News (TIN) aquando da compra do título. Também o jornal Público confiou, no passado, a função de centro de documentação à Impresa. “Documentalmente e arquivisticamente tratávamos do jornal. Nunca guardámos fotografias deles. Era só o título impresso. Guardávamos os PDF, tratávamos e eles tinham acesso à base de dados”, explica.
No caso da Renascença, o sistema é diferente.
O trabalho diário é desenvolvido no backoffice do site, que reúne sons, texto e imagem de cada artigo, de forma integrada. A plataforma funciona como um arquivo interno para jornalistas, que o consultam caso precisem, para uma peça ou para preparar uma entrevista. O que não é publicado vai sendo apagado automaticamente, salvo se o jornalista o guardar nas suas pastas próprias. Não existe, no entanto, nenhuma indicação nesse sentido, já que o Centro de Documentação trabalha na recolha pontual de conteúdos publicados, conforme foi possível constatar nas instalações do grupo.
Existe, não obstante, a salvaguarda dos conteúdos digitais, mas numa lógica de preservação de recursos internos. “Nós somos uma instituição privada. Damos prioridade ao acesso ao arquivo aos nossos profissionais para construírem conhecimento”, embora também respondam a solicitações, explica Nelson Pimenta, diretor digital da Rádio Renascença.
A prática arquivística tida como exemplo em Portugal e elogiada por muitos investigadores, é a que foi implementada pela RTP. Sendo estação pública, tudo o que é emitido é arquivado, desde que seja detentora dos direitos das imagens, conforme referido ao Gerador por Hugo Aragão, subdiretor dos Arquivos RTP.
“Desde que existe RTP, existe arquivo RTP”, mas nem sempre tudo foi arquivado da forma sistemática que é hoje. “Nós não temos tudo arquivado. Houve muitos conteúdos da RTP que, porque era direto, não guardávamos, outros guardávamos só o som, outros temos imagem e não temos som”, explica.
Isto acontecia quando o mundo era analógico, pois não existiam recursos para guardar tudo, já que os materiais eram muito dispendiosos. “Tinham de ser feitas escolhas e foram feitas”, diz Hugo Aragão, que garante que, desde 1990, tudo começou a ser arquivado de forma mais organizada.
Atualmente, “a política do arquivo da RTP é guardar tudo para, no futuro, não termos nada que não possamos voltar a exibir”. O critério assenta, assim, na exibição de “tudo o que a RTP tenha direitos” e, portanto, pode voltar a exibir sem restrições, incluindo conteúdos de entretenimento.
Em termos de rendimento, a estação pública arrecadou, em 2022, 187 mil euros com o acesso externo e comercialização do seu arquivo, segundo noticiado pelo Correio da Manhã. No relatório a que o jornal teve acesso, o rendimento provém da resposta a 551 solicitações de licenciamento para fins comerciais, números confirmados por Hugo Aragão ao Gerador.
Em termos de trabalho diário de arquivo, a RTP trabalha da seguinte forma: “Todos os dias, os repórteres de imagem saem para a rua. No dia seguinte, há um documentalista que vai [percorrer] desde o primeiro ao último ficheiro, verificar todas as imagens, fazer a seleção do que ele acha [relevante]”. Esta relevância é analisada com base em critérios estabelecidos, como o “histórico da imagem, possibilidade de reutilização” entre outros, diz o responsável.
Não se guardam brutos de entrevistas não exibidas, salvo se existir indicação do jornalista ou se se tratar de grandes entrevistas – que possam eventualmente vir a ser reeditadas para peças futuras –, ou planos de ambiente atualizados. Também aqui não existe informação em arquivo que seja sigilosa, já que apenas o jornalista tem acesso, por exemplo, a imagens não tratadas (sem desfoque ou distorção) de pessoas que testemunham sob anonimato.
Na posse da RTP estão ainda alguns espólios privados que foram doados aos arquivos, assim como o acervo da Rádio Clube Português, cujo conteúdo não foi especificado pelo responsável.
Quando questionados sobre o que aconteceria ao arquivo no caso de o órgão de comunicação ser vendido, não há respostas seguras. Sendo um cenário hipotético, nos casos analisados não estão definidos procedimentos por parte das empresas que acautelem e impeçam a saída dos acervos para o estrangeiro, por exemplo, como esteve em risco de acontecer com o arquivo do Diário de Notícias. O reconhecido valor do espólio deste diário levou 20 personalidades a mobilizarem-se, em 2020, e a apelar à Direção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas (DGLAB) que o protegesse. Esta entidade acabou por classificar o mesmo como “tesouro nacional”, para impedir que o acervo saia de Portugal.
“A classificação não impede a transação [do título] dentro do país, mas condiciona a sua exportação para um outro país”, explica Silvestre Lacerda, diretor da DGLAB, entidade tutelada pelo Ministério da Cultura.
O responsável diz que apenas é possível atuar caso a caso, sendo o tipo de intervenção da DGLAB desenhado em função de uma situação de risco. “Não há um protocolo definido”, esclarece.
Surgiu em 1821 sob a designação de The Manchester Guardian, antes de o seu nome ser alterado para o que hoje conhecemos em 1959. Constitui, junto com o The Observer e The Guardian Weekly, parte do Guardian Media Group, detido pelo fundo de investimentos Scott Trust Limited.
Este fundo foi, de acordo com a informação disponível na página oficial, criado para “assegurar a independência financeira e editorial do The Guardian perpetuamente”, evitando que o mesmo fique nas mãos de uma única pessoa. Atualmente, “mais de metade da receita” vem diretamente dos leitores, segundo a mesma fonte, o que também contribui para a manutenção da independência editorial.
Pela dimensão e valor patrimonial, o arquivo do The Guardian, é detido por uma entidade independente sem fins lucrativos criada separadamente para o efeito: a The Guardian Foundation. Em entrevista ao Gerador, via e-mail, Philippa Mole, chefe do Guardian News and Media Archive (GNM) pertencente à referida fundação, explica que esta organização “também desenvolve trabalho na área da liberdade de imprensa global e acesso a jornalismo liberal”.
A estrutura de propriedade deste órgão de comunicação internacional – que dizem ser única no Reino Unido – faz com que não possa ser vendido. Além disso, por estarem integrados numa entidade autónoma, os arquivos também gozam de uma proteção especial. As coleções são guardadas na sede do GNM, em Londres. “Nós temos, aproximadamente, 1800 metros lineares de material. Não temos informação sobre a quantidade para os volumes compilados de jornais publicados”, informa Philippa Mole. Isto porque, de acordo com a responsável, as edições publicadas não são o foco do arquivo. Essas são salvaguardadas pelo depósito legal e, por isso, “detidas pela nação”.
“A nossa missão é [salvaguardar] os registos empresariais não publicados que documentam as histórias por detrás do The Guardian, do The Observer, fotografias originais, etc.”
O GNM tem uma equipa de bibliotecários que recolhem cópias dos jornais e os enviam para que possam ser reunidos e depois usados pela equipa do GNM. Estes volumes são guardados numa localização distinta.
No que respeita aos conteúdos digitais, são recolhidos snapshots das homepages das edições britânica, americana e australiana desde 2013. As restantes edições, nomeadamente do The Observer e The Guardian Weekly passaram a ser guardadas em 2016 e 2018, respetivamente. “Isto é para documentar o aspeto do site e uma amostra do conteúdo direcionado para as páginas principais”, explica Philippa Mole. De acordo com a responsável, o conteúdo propriamente dito – artigos, galerias, etc. – é mantido acessível no site e tem estado desde 1998. Para conteúdo anterior a esta data, afirma: “Nós confiamos no trabalho do Internet Archive, que tem capturado snapshots do conteúdo online do Guardian desde que começou [a atividade], em 1994.”
Desde 2013, o website é abrangido pela lei do depósito legal britânica, segundo a qual a British Library é obrigada a recolher conteúdo de todos os sites. “Eles não recolhem cada atualização ou cada edição do site, mas os pesquisadores vão além da página principal para recolher conteúdos”, refere a diretora.
Destacando a importância dos arquivos do GNM como recurso para historiadores de diversas áreas, além da relevância que possuem para os próprios jornalistas, Philippa Mole afirma que os jornais publicados documentam a história nacional e internacional dos últimos 200 anos: “ajudam a obter considerações contemporâneas de eventos históricos (globais a locais), reflexões sobre como as notícias eram reportadas e compreendidas nesse tempo e uma visão das diferenças no reporte através do espetro político e em diferentes regiões”.
“Arquivos como o nosso dão uma perceção do trabalho interno da imprensa, as vidas e trabalho de jornalistas e artistas envolvidos com os jornais e os detalhes de eventos noticiosos”, como fotografias não publicadas e correspondência editorial, explica.
Neste sentido, e segundo a responsável, a maioria da coleção do GNM é constituída por material não publicado que inclui mesmo elementos confidenciais. No que respeita a registos empresariais, a consulta tem um período de embargo de entre 10 e 20 anos. Todos esses registos são tratados e catalogados por um arquivista qualificado antes de serem consultados, em ambiente controlado por investigadores. Muitas vezes, os períodos de embargo são alargados se estiverem em causa dados pessoais, negociais ou questões éticas.