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Texto de Cátia Vilaça
Edição de Débora Dias e Tiago Sigorelho
Design e Ilustração de Pri Ballarin. Adaptação de Marina Mota
Produção de Sara Fortes da Cunha
Captação vídeo e áudio de Marcelo de Souza Campos
Fotografia de Bárbara Monteiro
Comunicação de Carolina Esteves e Margarida Marques
Digital de Inês Roque
16.12.2024
“Qualquer que seja o custo do Decrescimento hoje, será inferior ao custo do colapso amanhã”. O aviso foi proferido pelo economista Timothée Parrique durante a conferência Beyond Growth, uma iniciativa organizada por 20 eurodeputados, com o apoio de várias entidades, entre fundações e institutos, para “discutir e cocriar políticas de prosperidade sustentável na Europa”. Mas em que assenta esta prosperidade? Para Parrique e outros teóricos do decrescimento, é preciso desacelerar a produção e o consumo para viver melhor e parar a destruição de recursos. O investigador da Universidade de Lund, na Suécia, usa o exemplo dos automóveis: produzir menos carros resultaria na diminuição da poluição do ar.
“O ideal seria decrescer de forma planeada e, quando chegarmos a um tamanho da economia que esteja mais de acordo com os objetivos ambientais e sociais”, parar. A perspetiva é de Inês Cosme, engenheira do ambiente com mestrado e doutoramento sobre decrescimento. Para a investigadora da Universidade Nova de Lisboa, o que importa é retirar o foco do crescimento económico enquanto instrumento do bem-estar humano.
Não existe uma definição teórica precisa para o decrescimento, mas deixar de usar o somatório das riquezas produzidas no país, o Produto Interno Bruto (PIB), como principal critério de prosperidade é um objetivo claro. O antropólogo Jason Hickel, um dos atuais teóricos do decrescimento, recorre, num artigo de 2020, à comparação do exemplo dos Estados Unidos com outros países, incluindo Portugal, para demonstrar que o PIB não anda necessariamente a par do bem-estar. Com um PIB per capita de 60 mil dólares, o país apresenta uma esperança média de vida de 78,5 anos. Já Portugal, cujo PIB per capita era, de acordo com os dados de 2017 do Banco Mundial que o investigador cita, de 21.400 dólares per capita, tinha uma esperança de vida de 81,1 anos. O exemplo dos Estados Unidos ilustra bem por que razão o PIB falha enquanto caminho para o bem-estar coletivo: o World Inequality Database, uma base de dados sobre a evolução histórica da distribuição mundial de rendimentos, mostra que os rendimentos da fatia de 1% da população mais rica quadruplicaram entre 1975 e 2022. Simultaneamente, o U.S. Census Bureau, que todos os anos mede a taxa de pobreza no país, apresenta flutuações desta taxa entre 11 e 15% desde a década de 1970 até à atualidade.
Em maio deste ano, foi a vez de o relator especial das Nações Unidas para a Pobreza Extrema e Direitos Humanos descartar o aumento do PIB como abordagem dominante à eliminação da pobreza, associado à redistribuição. Uma das ideias-chave do relatório de Olivier De Schutter é que enquanto a economia for orientada essencialmente pela maximização do lucro, irá responder à procura expressa pelos grupos mais ricos da sociedade, conduzindo a formas extrativas de produção que agravam a exclusão social com o objetivo de criar mais riqueza, deixando de fora os direitos de quem vive na pobreza. O documento baseia-se na investigação de teóricos decrescentistas como Jason Hickel, Timothée Parrique ou Kate Raworth.
Em 2022, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, responsável por sintetizar e divulgar o conhecimento mais atualizado sobre o tema, referiu pela primeira vez o decrescimento. Além da contextualização teórica, aponta a existência de estudos que demonstram que, apesar de algumas economias do norte global, como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, a Islândia e o Japão, terem conseguido reduzir a emissão de gases com efeito de estufa enquanto as suas economias cresciam, estudos de caso em Myanmar, China e Singapura sugerem que “os impactos do PIB na qualidade do ambiente dependem do contexto de desenvolvimento e do impacto ambiental considerado”. Ou seja, não é possível generalizar. O relatório identifica ainda a existência de uma “extensa literatura” que argumenta que os atuais padrões de desenvolvimento e os sistemas económicos na sua base são insustentáveis, pelo que o crescimento não deverá prosseguir indefinidamente na ausência de esforços mais concertados em prol de um desenvolvimento sustentável. O capítulo em causa, dedicado às arenas financeiras e económicas (do grupo de trabalho sobre Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade) prossegue com alternativas ao PIB para orientar o desenvolvimento e avaliar custos e benefícios das diferentes intervenções. Menciona-se o PIB verde, cujo objetivo é incorporar, no crescimento, as suas consequências ambientais, e o PIB azul, cujo foco é o desenvolvimento sustentável através dos serviços de ecossistemas oriundos da conservação dos oceanos.
O professor do Instituto de Ciência e Tecnologia Ambiental da Universidade Autónoma de Barcelona Jason Hickel, em conjunto com outros três investigadores, regressou ao tema do decrescimento em dezembro de 2023, com um artigo em que o pós-crescimento é apresentado como caminho viável para limitar o aquecimento global a 1,5 ºC. Se isto ocorresse, cumprir-se-ia o Acordo de Paris, tratado internacional sobre alterações climáticas, com 195 países signatários, adotado em 2015. Com base em outros estudos, o investigador argumenta que, apesar de vários países ricos terem conseguido dissociar o PIB das emissões nos últimos anos, esta medida revelou-se insuficiente para manter o aquecimento abaixo de 1,5 ºC – 2 ºC. Ainda que vários estudos identifiquem esta dissociação entre PIB e consumo de energia em países de elevados rendimentos, as situações estavam ligadas à deslocalização de atividades com consumo intensivo de energia, segundo o documento.
Além disso, faltou equacionar nestes cenários o efeito da retoma económica, durante a qual as poupanças obtidas com a eficiência induzem consumo adicional.
Hickel também contraria a ideia de que o crescimento é condição necessária para o desenvolvimento de tecnologias de baixo carbono. Para o especialista em antropologia económica, trata-se de direcionar o investimento, não de crescer. Os autores do estudo não ignoram os efeitos potencialmente negativos desta política, como o desemprego e a desigualdade, já que um baixo nível de crescimento implica menos receita fiscal e menos investimento, e uma maior dificuldade em substituir profissões obsoletas. Mas sugerem que estes desafios podem ser ultrapassados com opções políticas, como a redução do número de horas de trabalho.
Também Timothée Parrique, em conjunto com outros investigadores, analisou, em 2019, a problemática da dissociação entre o crescimento económico e a sustentabilidade ambiental, num relatório para o European Environmental Bureau, uma rede de organizações ambientais europeias. Entre as conclusões, demonstrou que não há evidência empírica que sustente essa dissociação. Algumas das causas apontadas são a criação de novos problemas, como a pressão colocada sobre a extração de lítio, cobre e cobalto para assegurar o aumento da produção de automóveis elétricos ou ainda o potencial limitado da reciclagem.
A origem do termo “decrescimento” é atribuída ao filósofo e jornalista austro-francês André Gorz, que o proferiu durante um debate* em 1972, já depois da publicação, no mesmo ano, do relatório “The Limits to Growth” (Os Limites do Crescimento), a rampa de lançamento do tema. O documento, preparado para o think tank Clube de Roma, criado na capital italiana em 1968, é da autoria de um grupo de cientistas do Massachusetts Institute of Technology (MIT). O relatório parte de um cenário de crescimento exponencial da população, produção de alimentos, industrialização, poluição e consumo de recursos naturais não renováveis, para concluir que o sistema global provavelmente não suportaria os mesmos níveis de crescimento económico e populacional muito para lá do ano 2100, se lá chegasse sequer, mesmo com o desenvolvimento de tecnologia avançada.
Nem tudo era dado como perdido, e os investigadores acreditavam ser possível criar uma sociedade em que a humanidade conseguisse viver indefinidamente, desde que se mostrasse capaz de impor limites a si própria e à produção de bens materiais para chegar a um ponto de equilíbrio entre população e produção.
O relatório colheu críticas desde a primeira hora, mas em 2014, um estudo da Universidade de Melbourne, Austrália, reafirmou as suas previsões. O texto de 1972 equaciona vários cenários até 2100, que dependiam de a humanidade tomar ou não medidas sérias para enfrentar os problemas ambientais e de diminuição de recursos. Caso essas medidas não se verificassem, o resultado seria a ultrapassagem dos limites do planeta e o colapso da economia, ambiente e população antes de 2070. Esse era o cenário “business as usual”, ou seja, aquele em que tudo se mantém igual. É exatamente desse cenário que os investigadores de Melbourne concluem que nos estamos a aproximar.
Em 2024, a procura de recursos e serviços ecológicos excedeu a capacidade do planeta de os regenerar no dia 1 de agosto. É o Dia da Sobrecarga da Terra, calculado anualmente pela Global Footprint Network através da divisão da biocapacidade do planeta, ou seja, os recursos que a Terra é capaz de gerar num ano, pela pegada ecológica da humanidade, isto é, a nossa procura por esses recursos. O valor é depois multiplicado pelos 365 dias do ano. A tendência, desde 1971, mostra-nos que, de um modo geral, esse dia acontece cada vez mais cedo.
A resposta não é tão óbvia quanto possa parecer. Ainda que não fizesse sentido representar graficamente o conceito com um animal veloz, a razão de fundo está na estrutura do gastrópode. O filósofo Ivan Illich descreveu-a: “O caracol constrói a arquitetura delicada da sua concha adicionando espirais cada vez maiores, uma após a outra, mas então pára abruptamente e regride na direção oposta. Na verdade, apenas uma volta adicional da espiral tornaria a concha dezasseis vezes maior. Em vez de ser benéfico, [esse crescimento] sobrecarregaria o caracol. Qualquer aumento na produtividade do caracol teria de ser usado para compensar as dificuldades criadas pelo crescimento da concha além dos seus limites pré-determinados. Uma vez que o limite para aumentar o tamanho da espiral foi alcançado, os problemas do crescimento excessivo multiplicam-se exponencialmente, enquanto a capacidade biológica do caracol, no melhor dos casos, só pode conferir crescimento linear e aumentar aritmeticamente”
Também é possível consultar os dados desagregados por país, ou seja, determinar o Dia da Sobrecarga caso a procura global de recursos tivesse como referência um dado país. Se a referência fosse Portugal, em 2024 teríamos ultrapassado o limite a 28 de maio. Mas se fosse o Qatar ou o Luxemburgo, a capacidade do planeta teria sido esgotada logo em fevereiro.
Na sua tese de mestrado, sobre sustentabilidade numa perspetiva decrescentista, Inês Cosme agrupa algumas ideias-chave em torno do conceito, como a sua inevitabilidade perante os limites da natureza e a necessidade de usar o progresso tecnológico para controlar o decrescimento ao invés de promover mais crescimento. Existem objetivos gerais e também medidas que têm vindo a ser propostas para restringir o impacto humano a uma escala mais apropriada, como identificar limites ao uso de recursos e às emissões e estabelecer metas de redução, investir em Saúde e Educação, reduzir o número de horas de trabalho, reduzir o uso de energia e de materiais nas regiões que já esgotaram os seus limites ecológicos, incentivar ações de base comunitária, reduzir o consumo não essencial e investir em inovação técnica mais criteriosa.
O decrescimento não é a única formulação oferecida pela literatura científica para contrariar o crescimento, mas talvez a mais firme. Existe também a abordagem do pós-crescimento (post-growth), também chamado Beyond Growth (a formulação escolhida para a conferência do Parlamento Europeu) ou ainda a-growth, uma espécie de visão agnóstica do crescimento. Contudo, estes conceitos, sintetizados no documento distribuído aos eurodeputados antes da conferência Beyond Growth, derivam da mesma filosofia, que tem implícita a ideia de reduzir a dependência do crescimento económico.
Como chegar ao decrescimento? Segundo Inês Cosme, em entrevista ao Gerador, “existem três formas para pensarmos mais restritivamente sobre isso”. Um caminho será reformar o sistema atual com pequenas mudanças que nos levem a uma visão diferente. Outra, mais radical, poderá passar por uma estratégia de oposição ao sistema vigente, um boicote às instituições. E outra ainda será criar pequenas bolhas de projetos que nos permitam imaginar (e testar) outros modos de vida, procurando que esta realidade suplante a anterior.
Para Guilherme Serôdio, membro da Rede para o Decrescimento, um coletivo português lançado em 2018 para reunir quem defende ou pratica as propostas desta teoria, este será sempre um caminho complicado. E afasta a via eleitoral, por não existir espaço narrativo ou mediático para sufragar propostas que impliquem ter menos: “o decrescimento, no limite, está a dizer que não podemos ter todos um carro privado, não podemos ter todos um computador espetacular em casa, não podemos ter todos um supercomputador no bolso, um smartphone, e isso eleitoralmente não é um caminho”, resume ao Gerador o ativista e doutorando do grupo Economia e Globalização do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE). A sua investigação centra-se no tema “Decrescimento, Democracia e Novos Territórios – Experimentações para um mundo em transição”.
Guilherme encara o decrescimento sobretudo como uma filosofia de desconstrução da realidade social em que vivemos, experimentando caminhos, numa base local e com plataformas democráticas alternativas ao mainstream: experimentar economias locais, experimentar cooperativas integrais, experimentar modelos de participação democrática. Experimentar tudo isto para que “quando os grandes choques sistémicos chegarem, haja essas alternativas”, aponta o investigador.
Outro aspeto importante, que perpassa todo o pensamento decrescentista, é que o decrescimento apenas se aplica aos países do norte global, ou seja, aqueles onde existem condições para satisfazer todas as necessidades, mantendo a qualidade de vida.
Filipe Medeiros, que também integra a Rede para o Decrescimento, sublinha precisamente isso: trata-se de decrescer nos países de salários elevados, que são também os mais poluidores. Mas o engenheiro informático reconhece o grau de disrupção da ideia, porque o normal é almejar mais, nunca menos, ou sequer manter. Daí que a estagnação também não seja bem vista. “Os países que hoje poluem muito pouco e que claramente não estão a cumprir as necessidades sociais e as necessidades humanas podem ter espaço para crescer a sua economia no sentido especificamente de começar a aumentar a produção de bens essenciais e de serviços essenciais, como a saúde, a educação, a alimentação, em métodos locais, em economias diferentes das que temos tido”, exemplifica Filipe Medeiros.
O ativista reforça que este posicionamento retira pressão dos países do sul global, para quem o atual modelo económico acaba por ser bastante “infeliz”, orientado por uma mecânica extrativista onde se vai buscar petróleo, recursos minerais e até alimentares, e se devolve na forma de resíduos e destruição geral de ecossistemas. “A melhor maneira, mais rápida e mais eficaz de darmos espaço aos países que hoje em dia não conseguem cumprir as necessidades básicas humanas – água, comida, etc. – é darmos esse espaço deixando de retirar os recursos de lá e também deixando de emitir para lá as consequências negativas desse consumo”, resume Filipe.
Filipe Medeiros subscreve a ideia de se tratar de um processo de transição, não de algo permanente. A proposta é depois conseguir chegar àquilo que a literatura descreve como steady state, ou seja, um estado de equilíbrio de ecossistemas e sociedade, com o progresso tecnológico a adaptar as coisas. “Não estamos a falar de um decréscimo total de tudo no mesmo nível”, como contextualiza Guilherme Serôdio, ou seja, o objetivo não é que os ricos se tornem remediados e os remediados fiquem pobres. Para o investigador, o processo é, sobretudo, uma equalização, que não significa diabolizar o progresso tecnológico, mas antes abraçar a sua utilidade.
Para os defensores do decrescimento, o problema é que o progresso que nos permitiu dar saltos fundamentais de qualidade de vida, ao pôr à nossa disposição frigoríficos, máquinas de lavar ou meios de comunicação eficazes, exacerba agora o consumo com telemóveis e computadores que rapidamente se tornam obsoletos para dar lugar ao próximo modelo, gerando uma crescente acumulação de resíduos elétricos e eletrónicos. “O decrescimento não é contra a tecnologia mas é a favor de uma tecnologia muito mais democrática no sentido de ser acessível a toda a gente, de ser facilmente reparável e de ser uma coisa que dura muito mais tempo do que um computador, que dura cinco a oito anos”, explica Guilherme Serôdio. Segundo argumenta, o decrescimento vem precisamente dissociar a acumulação material da qualidade de vida para criar espaço a que haja mais proximidade com a natureza, mais convívio, mais comunidade.
Os especialistas em decrescimento entrevistados pelo Gerador afastam qualquer via impositiva para implementar estas ideias. Filipe Medeiros e Guilherme Serôdio acreditam precisamente na importância de testar modelos democráticos alternativos e mais participativos. A descentralização e as assembleias de cidadãos são, por isso, mecanismos possíveis para debater e testar soluções, e Guilherme tem-no verificado na sua terra natal, Montemor-o-Novo. “Na verdade, as pessoas têm um grande ímpeto a participar numa coisa diferente porque há uma grande desilusão com a democracia”, sentencia. Com essa motivação, Guilherme e outras pessoas da região fundaram a Montemor-o-Vivo, uma plataforma de democracia deliberativa. A Montemor-o-Vivo apresentou-se às eleições autárquicas de 2021 como Grupo de Cidadãos Eleitores, ou seja, um conjunto de cidadãos que, de acordo com a lei eleitoral, pode apresentar candidatura direta (sem intervenção de partidos) à câmara municipal, à assembleia municipal e à assembleia de freguesia. O ato eleitoral não se traduziu em representação para o movimento, mas Guilherme vê aqui um caminho para que os cidadãos possam testar soluções sem terem de esperar que os políticos “do costume” acolham estas ideias: “Há espaço para que a população arranje soluções para o próprio território, mas nós temos de ir buscá-las, ninguém nos vai dar nada”.