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Pensar a sociedade para lá do crescimento ilimitado: propostas do norte e do sul global

 

Texto de Cátia Vilaça
Edição
de Débora Dias e Tiago Sigorelho
Design e Ilustração de Pri Ballarin. Adaptação de Marina Mota
Produção de Sara Fortes da Cunha
Captação vídeo e áudio de Marcelo de Souza Campos
Fotografia de Bárbara Monteiro
Comunicação de Carolina Esteves e Margarida Marques
Digital de Inês Roque

22.09.2025

O debate sobre decrescimento faz-se sobretudo a partir da necessidade de os países do norte global alterarem os seus padrões, mas tal não significa que não haja visões decrescentistas noutras zonas do globo.
Pensar a sociedade para lá do crescimento económico é a proposta do Bem Viver, um movimento nascido nos Andes e na Amazónia que propõe romper com o modelo de desenvolvimento colonialista em prol de uma vida melhor.
Mais a norte, nos EUA, o conceito ganha expressão pela mão dos Socialistas Democráticos, que propõem a transição para o pós-capitalismo.
A última parte da série sobre decrescimento explora os ecos desta proposta em diferentes latitudes.

 

 

“O Bem Viver é, essencialmente, um processo proveniente da matriz comunitária de povos que vivem em harmonia com a Natureza”, descreve o político e economista Alberto Acosta no seu livro O Bem Viver – uma oportunidade para imaginar outros mundos.

A partir de conceitos e práticas andinas e amazónicas, o Bem Viver supera o conceito tradicional de desenvolvimento. As rebeliões populares indígenas serviram de fermento à construção destas alternativas, que se propõem desafiar uma modernidade de preceitos coloniais. A complementaridade entre seres vivos – humanos e não humanos – é uma das bases desta proposta, bem como as práticas solidárias e a interculturalidade. Não se trata de acumular para viver melhor, mas de viver bem agora, sem colocar em xeque as gerações futuras. Tal começa pela redistribuição da riqueza em prol de uma sociedade mais justa. O conceito foi inclusivamente incorporado pelos governos locais, o que merece críticas a Alberto Acosta, que exerceu os cargos de ministro de Energia e Minas e de presidente da Assembleia Constituinte do Equador, mas viria a abandonar o partido Alianza País por divergências com o antigo Presidente Rafael Correa. Acosta identifica uma contradição entre a propaganda e a realidade, quando os governos da Bolívia e do Equador inserem o Bem Viver na sua documentação, associado, por exemplo, a projetos municipais para a melhoria das ruas, quando as cidades estão desenhadas em função do automóvel e não dos seres humanos.

A edição de novembro de 2023 da revista da Plataforma Portuguesa das ONGD também dedicou espaço ao tema do Bem Viver. Amadu Djaló, doutorando em Estudos Africanos no ISCTE-IUL, também identifica nesta proposta a visão biocêntrica do mundo, em alternativa à visão antropocêntrica dominante. A Natureza não é um objeto, mas um sujeito de direito,” o que representa um marco histórico na resistência dos povos indígenas face à monocultura do Estado”, lembra Djaló. O investigador não encara o Bem Viver como “um plano rígido de mudança”, antes uma base para repensar o modelo de desenvolvimento tendo em conta os seus próprios limites.

E na Europa?

 

A cidade galega de Pontevedra recebeu, entre 17 e 22 de junho de 2024, a 10ª Conferência Internacional sobre Decrescimento. A ideia da conferência era desagregar a ciência, inovação e tecnologia do crescimento económico. “O grande desafio que temos é como pôr a ciência e a tecnologia ao serviço da sociedade”, resumia ao Gerador Mario Pansera, diretor do Post-Growth Innovation Lab da Universidade de Vigo, estrutura encarregue da organização, numa antevisão ao evento. Pansera retomaria a ideia durante a sessão de abertura, ao sublinhar a necessidade de “usar a ciência, tecnologia e inovação para começar a planear agora o mundo em que queremos viver daqui a 50 anos”.

O evento juntou mais de 1100 pessoas para discutir economia ecológica, circularidade, e lançar a ideia de repensar a inovação. O encontro contou com a presença de Hans Christian Eberl, responsável por políticas de economia circular na Direção Geral de Investigação e Inovação (DG RTD) da Comissão Europeia. Eberl reconheceu que as metas de circularidade e gestão de resíduos com que a Europa se tem comprometido não chegam, porque não alteram nada sobre o excesso de consumo e a estrutura da economia. “Acho que fui corajoso em vir aqui porque o decrescimento não está na agenda da comissão oficialmente”, sublinhou o responsável, sem deixar de lembrar que, à data da conferência, a Europa já tinha consumido 1,5 vezes os seus recursos para o ano de 2024. Mas ainda que decrescer não seja um objetivo assumido, Eberl aponta que esse caminho está implícito em algumas orientações, como o ecodesign (fabrico de produtos mais duráveis, com menor incorporação de energia, reparáveis e facilmente desmontáveis para novos usos).

 

Ecoeficiência vs eco-suficiência
Num artigo de 2023, Mario Pansera e outros investigadores regressaram a Karl Marx e à primazia do valor de uso em detrimento do valor de troca. Os investigadores contrapõem à visão capitalista a produção colaborativa, propondo, por exemplo, substituir a ecoeficiência pela noção de eco-suficiência. Num contexto capitalista, adotar medidas ecoeficientes significa reduzir a quantidade de recursos e energia por unidade produzida, o que se traduz numa descida dos custos de produção. Tal pode conduzir a um efeito boomerang, em que se passa a produzir mais tirando partido da redução dos custos, para continuar a alimentar o aumento de capital. A eco-suficiência consistiria em abandonar trocar princípios pela lógica de produzir o suficiente para satisfazer as necessidades humanas, respeitando os limites planetários.

A lógica de organizar conferências internacionais sobre este tema começou em Paris, em 2008. A partir daí, organizações decrescentistas e instituições académicas já organizaram mais 16 conferências, duas delas no Parlamento Europeu (2018 e 2023).

O evento de 2023, onde se discutiram modelos alternativos ao crescimento económico, contou com o envolvimento de 20 eurodeputados e a presença da Presidente do Parlamento, Roberta Metsola, e da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, no plenário de abertura. Ficou claro que as preocupações de teóricos como Jason Hickel e Timothée Parrique não encontram eco nas esferas mais elevadas de responsabilidade: Ursula von der Leyen preferiu centrar a sua intervenção nas políticas preconizadas pelo Pacto Ecológico Europeu, depositando esperança no potencial da tecnologia. E sublinhou que foi possível, em 2022, gerar mais eletricidade a partir do sol e do vento do que alguma vez tinha sido conseguido através do gás e do petróleo, assim como cortar emissões, apesar da guerra no leste da Europa. Von der Leyen não duvida que o Clube de Roma acertou quando previu a obsolescência de um modelo de crescimento centrado nos combustíveis fósseis, mas também aponta que, meio século antes, não havia como prever as possibilidades introduzidas pelo hidrogénio verde, os automóveis elétricos ou a reciclagem de minério.

Já a Presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, centrou o seu discurso na importância do crescimento, desde que sustentável, para continuar a ter fundos e pagar dívidas, e afirmou que o ambiente e a economia estão do mesmo lado da mesma moeda. Ter uma Europa com emissões nulas até 2050 também é, para a eurodeputada, uma conversa sobre crescimento.

Em 2018, o pretexto havia sido o de explorar políticas alternativas a um “modelo de desenvolvimento insustentável”, numa organização conjunta de 10 eurodeputados e organizações da sociedade civil. Marisa Matias, do Bloco de Esquerda, partido que integra o grupo parlamentar da Esquerda Unitária Europeia / Esquerda Nórdica Verde, foi a única eurodeputada portuguesa a participar na organização do evento.

Marisa Matias voltou a integrar a organização da conferência de 2023, tendo moderado um painel sobre políticas e parcerias para lá do espaço europeu. O Gerador solicitou uma entrevista à então eurodeputada, mas não foi possível concretizá-la a tempo do fecho da reportagem.

O decrescimento nos Estados Unidos

 

Também a norte do continente americano o decrescimento faz caminho. Os Socialistas Democráticos da América (DSA, na sigla original) surgiram no início da década de 1980 como uma tendência política agregadora de outros movimentos, numa era marcada pela ascensão ao poder de figuras como Ronald Reagan e Margaret Thatcher.

A organização almeja a substituição do capitalismo pelo socialismo democrático, isto é, um sistema onde “as pessoas comuns têm uma voz real nos nossos locais de trabalho, bairros e sociedade”, lê-se no portal dos Socialistas Democráticos.

Apesar desta visão do mundo, só em 2023 o decrescimento entrou formalmente no vocabulário da organização, através de um caucus, isto é, uma organização não oficial dentro dos Socialistas Democráticos. Caracol DSA é o caucus daqueles que, dentro do grupo político, acreditam que o decrescimento proporciona um conjunto de respostas e análises capazes de substituir o capitalismo por uma era de democracia ecológica. Os membros desta corrente acreditam mesmo que é nos Estados Unidos que faz mais sentido falar de decrescimento, tendo em conta o impacto do país na crise climática.

Olhando para a Europa, veem também o decrescimento como forma de complementar o que encaram como falhas do Pacto Ecológico Europeu, como a falta de um programa político ancorado na ciência e filosofia ecológicas. Propõem-se politizar o imperativo do crescimento económico e construir poder junto da classe trabalhadora, ativistas pela justiça ambiental e líderes políticos. O objetivo último será contribuir para a transição para o pós-capitalismo, onde todas as necessidades materiais são atendidas e as pessoas dispõem de tempo para a família ou para a natureza – tudo dentro dos limites do planeta.

Para saber mais sobre decrescimento:

Em Portugal: Rede para o Decrescimento: coletivo que pretende agregar os que estudam, praticam ou defendem o decrescimento. Organiza eventos, promove reflexões e produz informação.

Lá fora: degrowth: repositório de informação teórica sobre decrescimento, incluindo também um mapeamento dos grupos que, por todo o mundo, se dedicam ao tema. Reúne também informação sobre os eventos dedicados ao tema, incluindo as conferências

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