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Texto de Sofia Craveiro
Edição de Débora Dias e Tiago Sigorelho
Produção de Martim Campos
Ilustrações de Nuno Metello
Design de Priscilla Ballarin
Digital de Eunice Gordon
Passavam cerca de 20 minutos da meia-noite quando, na madrugada de 25 de abril de 1974, foi emitida a música que ficaria eternizada como o hino da Revolução. “Grândola, Vila Morena” é transmitida pela Rádio Renascença, durante o programa Limite, escutado em todos os quartéis do país. Era a segunda senha, emitida para as tropas saberem que o golpe ia mesmo avançar. A Revolução estava em marcha.
Inicialmente, surgiu, na rádio, a dúvida sobre se se deveria ignorar o acontecimento ou acompanhar de perto o golpe e relatá-lo nos noticiários da estação. A gerência acabaria por escolher a segunda opção, sendo os passos da Revolução relatados ao longo do dia na emissora católica. Isto mesmo é descrito no artigo A Rádio Renascença na transição de regime: do 25 de Abril ao 25 de Novembro, assinado por Nelson Costa e editado pelo Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, em 2000. “Com a reportagem do exterior, foram acompanhadas as diversas movimentações, nomeadamente no Largo do Carmo e na sede da PIDE-DGS”, refere a mesma fonte.
Apesar do inequívoco valor histórico destas gravações, a grande maioria não chegou até nós. Mesmo a senha propriamente dita e o programa onde passou não estão arquivados na totalidade pela Rádio Renascença (RR). No Centro de Documentação da emissora, existe uma faixa em formato digital na qual é possível escutar a introdução da senha pelo locutor e o início da canção de Zeca Afonso. Há ainda gravações de alguns relatos dos acontecimentos subsequentes no Largo do Carmo, porém, arquivos organizados que tenham preservado a emissão radiofónica desse dia não existem, conforme relatado ao Gerador por Ana Isabel Almeida, coordenadora do Centro de Documentação do Grupo Renascença Multimédia, que detém as estações RR, RFM e Mega Hits.
Atualmente, não é possível apurar se terá havido alguma preocupação em guardar os sons recolhidos nesse dia para memória futura. No período pós-revolucionário, a RR, à semelhança de outros órgãos de comunicação social, viveu tempos tumultuosos, sendo palco de paralisações, ocupações e reestruturações. Muita coisa terá sido destruída. “A empresa sofreu alguns embates”, explica Ana Isabel Almeida, que atribui aos mesmos a responsabilidade pela perda de muito material historicamente relevante.
Além disso, grande parte dos programas eram da responsabilidade de produtoras externas à estação, pelo que “a Renascença não ficava com nada”. “Presumo que não houvesse esta noção de que era necessário guardar”, refere. A isto junta-se o facto de os materiais analógicos para gravação serem caros e, por isso, reutilizados várias vezes após a emissão, por meio de regravações. A prática era recorrente na altura. Um caldo de fatores que culminam na perda de registos históricos ímpares.
O caso da RR é apenas um exemplo da histórica falta de práticas sistemáticas de arquivo nos órgãos de comunicação social portugueses. O problema não é novo e resulta de inúmeros fatores: a falta de recursos para a manutenção e preservação dos materiais, o preço alto dos instrumentos analógicos que eram usados, a instabilidade vivida no país após a Revolução – que levou a diversas nacionalizações e ocupações de órgãos de comunicação social –, a prioridade em retratar a atualidade diária ou a simples desvalorização dos registos para memória futura. O caso agudizou-se particularmente no meio radiofónico, pela falta de legislação que protegesse os conteúdos.
Cláudia Henriques é investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, sendo que a sua pesquisa incide sobre o jornalismo radiofónico. A sua tese de doutoramento abordou o tema dos arquivos sonoros de rádio da Península Ibérica e permitiu-lhe perceber as fragilidades desta área em particular, que acabaram mesmo por prejudicar a sua investigação. “Não consegui construir a dissertação que eu queria, mas sim a dissertação possível”, afirma.
A falta de arquivos, conforme explica, “dificulta o conhecimento que temos da realidade, neste caso da realidade histórica”, não sendo apenas um problema do passado. O arquivo dos conteúdos informativos de rádio “é muito casuístico, é muito à vontade do freguês, digamos assim, é muito pela sensibilidade dos atores de uma instituição que se salvaguarda ou não”, diz Cláudia Henriques, que já foi estagiária da RR.
Um dos problemas identificados está, precisamente, na falta de legislação que, atualmente, não impede que a perda de património se venha a repetir.
“Há um vazio legal. Não há uma lei nacional para os arquivos em Portugal, que é uma necessidade, um pedido e uma exigência que já tem sido feita há muito tempo, mas que, infelizmente, ainda não foi possível chegar aí”, diz, por sua vez, Paula Meireles, arquivista e vice-presidente da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas, Profissionais da Informação e Documentação (BAD), que acredita que a existência de uma lei geral iria beneficiar também os arquivos de media.
O depósito legal, que assegura o arquivo de todas as publicações impressas – periódicas e monografias, ou seja, livros –, através da obrigatoriedade de entrega na Biblioteca Nacional (BN), não tem congénere nas rádios ou outros media. Nada obriga de forma expressa ao arquivo de conteúdos noticiosos radiofónicos. Nem digitais. Nem multimédia. A lei, publicada em 1982, que assegura a preservação da memória coletiva apenas considera o papel como relevante, no que ao jornalismo diz respeito. Ainda que o diploma que regula o depósito legal faça menção a “obras impressas ou publicadas em qualquer ponto do País, seja qual for a sua natureza e o seu sistema de reprodução”, a verdade é que essa norma não é aplicada.
Assim, são objeto de depósito legal, conforme descrito, jornais e revistas, mas também, por exemplo, brochuras de supermercados, revistas de passatempos ou de horóscopos, atlas, quadros didáticos, gráficos estatísticos, planos, obras musicais impressas, programas de espetáculos, catálogos de exposições, bilhetes-postais ilustrados, selos, estampas, cartazes e gravuras. Também fonogramas e videogramas, obras cinematográficas, microformas e outras reproduções fotográficas estão abrangidos pela lei, mas estes não são recolhidos pela BN. “Dada a especificidade desta biblioteca no tratamento essencialmente bibliográfico, nunca foi implementado o Depósito Legal para outro tipo de suportes que não o impresso”, diz Miguel Mimoso Correia, diretor de Serviços Bibliográficos Gerais da BN.
No caso do cinema, é a Cinemateca Portuguesa a entidade responsável pela sua preservação e divulgação. Relativamente aos fonogramas, só agora está a ser desenvolvida a estrutura do futuro Arquivo Nacional do Som que poderá vir a desempenhar essa função.
O depósito legal começou por ser regulado pelo Decreto n.o 19/952 de 27 de junho de 1931. A lei foi atualizada em 1982 para acompanhar “a evolução das técnicas de reprodução” e as “transformações sociais, políticas e económicas verificadas no país”, assim como tornar o processo “mais eficaz e menos pesado”. Seria novamente alterada em 2006 e 2013 para incluir teses de mestrado e doutoramento. Nenhuma modificação foi feita a este diploma para incluir outros suportes de publicação de informação noticiosa, com exceção dos ficheiros PDF, que, por norma, correspondem às edições em papel dos mesmos jornais.
O Gerador tentou por diversas vezes contactar o Ministério da Cultura para esclarecer esta e outras questões, mas não foi obtida resposta, tendo apenas remetido para a entidade competente, a Direção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas.
O responsável desta entidade, Silvestre Lacerda, disse, em entrevista ao Gerador, que a responsabilidade inerente ao depósito legal pertence apenas à BN, que possui autonomia e cumpre uma lei que só pode ser alterada pela Assembleia da República. Apesar disso, o arquivista concorda que existe a necessidade de repensar a legislação existente. “Acho que valia a pena olhar com atenção, relativamente a essa matéria”, diz dando o exemplo dos websites e da sua volatilidade.
Silvestre Lacerda ressalva que a recolha de conteúdos digitais e audiovisuais não pode ser feita nos mesmos moldes em que é feita a recolha de materiais impressos pela BN, pois não é exequível recolher todas as fotografias produzidas atualmente, por exemplo. “Teremos de encontrar formas de avaliação, seleção de documentos que possam ser, de alguma forma, importantes relativamente àquilo que é o património nacional”, afirma.
Atualmente a BN recebe entre “15 a 18 mil entradas por mês, por depósito legal”, valores que incluem monografias e publicações periódicas, segundo Miguel Mimoso Correia.
Passar pelos corredores das entregas é suficiente para ter uma ideia da complexidade logística que todo este trabalho de recolha implica. As caixas acumuladas denunciam a falta de recursos para dar celeridade a todo o processo, que implica a verificação individual do número de exemplares de cada edição e a notificação dos remetentes quando alguma coisa falha.
Além da BN, são beneficiárias do depósito legal mais 11 bibliotecas, localizadas em território nacional (continente e ilhas), uma em Macau e uma no Brasil (Real Gabinete de Leitura Portuguesa no Rio de Janeiro). A primeira entrega é feita na BN, que depois se encarrega de enviar ou notificar os restantes destinatários, para que venham recolher. “Implica depois que as gráficas nos enviem sempre tudo o que é publicado, o que constitui um grande desafio, porque depois temos de andar a perceber se aquilo que foi publicado foi recebido ou não, portanto, temos de estar sempre a conferir guias”, explica o responsável.
“Logo aí temos muito trabalho e muito peso de papel para tratar. Depois segue o processamento documental. Há um processamento bibliográfico que permite depois, no final, que o leitor consiga ir ao catálogo, pesquisar e encontrar o que está à procura”, diz Miguel Mimoso Correia, que, por esse motivo,refere que decorre um período entre a receção das publicações e a disponibilização aos cidadãos maiores de 18 anos.
“Em termos de depósito legal ele cumpre a sua missão”, acredita o responsável. “Estamos a conservar e a dar acesso à informação ao público em geral. Nessa medida está a ser cumprido e é um modelo que resulta.” Apesar disso, Miguel Mimoso Correia admite que, pelo facto de a lei do depósito legal ser do século passado, pode haver “um desajustamento”, até por não estar direcionada para o meio digital. Refere, contudo, que a BN não teria meios para arquivar outros formatos, até porque não é esse o seu propósito, já que o foco desta entidade é “a divulgação e o acesso”, e não tanto a preservação (embora acabe por fazê-la).
Miguel Mimoso Correia diz, por isso, que a possibilidade de centralizar o arquivo de publicações periódicas, documentação e espólio de órgãos de informação “implicava um esforço enorme relativamente ao que já foi feito e, no fundo, estaríamos a lidar com funções diferentes, daquilo que é um arquivo e daquilo que é uma biblioteca.” Além disso haveria a questão logística, que envolveria muito espaço e recursos. “Centralizar às vezes não é bom. É recursos humanos, é o histórico que está para trás, é a própria natureza de cada instituição… e ter uma única instituição a fazer isso tudo, não me parece que seja exequível”, afirma.
França foi um país pioneiro no que respeita ao arquivo de publicações, tendo a lei do depósito legal sido criada em 1537, de acordo com a informação disponível na página oficial da Bibliothèque Nationale de France (BNF). Desde 1925 esta entidade é também depositária de documentos sonoros. Videogramas e materiais multimédia passaram a ser arquivados em 1975 e documentos multimédia, softwares e bases de dados em 1992. Desde 2006 que a BNF é, também, responsável pela recolha e preservação das páginas web francesas (domínio .fr), em resultado de um alargamento da lei do depósito legal à internet. Neste país, o mais relevante é o conteúdo, e não o seu suporte.
O arquivo da web é feito através de recolhas regulares automáticas, específicas de um número limitado de websites e depósitos digitais. Os métodos resultam também de uma parceria com o Internet Archive. Importa frisar que antes mesmo de a lei obrigar à recolha de conteúdo digital, já a BNF fazia experiências nessa área, para otimizar processos, segundo descrito no artigo académico Legal deposit of the French Web: harvesting strategies for a national domain, assinado por France Lasfargues, Clément Oury, e Bert Wendland. As tecnologias de depósito legal digital têm vindo a ser continuamente trabalhadas e melhoradas.
Desde 1662 que o Reino Unido possui legislação relativa ao depósito legal, conforme descrito na página oficial da British Library. A partir de 2013, foi alterada a legislação em vigor desde 2003 e passou a ser obrigatório depositar conteúdo impresso e digital. O Legal Deposit Libraries (Non-Print Works) Regulations 2013 alargou o direito à recolha, preservação e garantia de tornar acessível as publicações digitais e websites criados sob domínios oriundos do Reino Unido. Atualmente, são seis as bibliotecas beneficiárias da lei do depósito legal, que se dispersam pelo território britânico: National Library of Scotland, National Library of Wales, Bodleian Libraries (da Universidade de Oxford), Cambridge University Library e biblioteca da Trinity College, em Dublin.
Esta lei abrange elementos audiovisuais quando os mesmos são parte de um universo maior de informação, ou seja, quando o conteúdo é parte integrante de uma página de informação, por exemplo. Quando se trata de ficheiros exclusivamente sonoros ou de vídeo, alojados em plataformas como Spotify ou YouTube ou mesmo que passem na rádio, a lei não se aplica.
A Deutsche National Bibliothek recolhe todos os “textos, imagens e gravações sonoras publicadas na Alemanha ou na língua alemã, traduzidos de alemão ou relacionados com a Alemanha que tenham sido publicados desde 1913”, conforme descrito no site. Em 2006, a legislação foi alterada, passando a incluir o depósito obrigatório de publicações digitais, nomeadamente “e-books, e-papers, audiolivros digitais, performances de música e websites”. O principal objetivo, segundo a mesma fonte, é assegurar que as coleções estão completas, apesar do suporte em que são publicadas. A recolha é, por isso, feita independentemente de haver uma recolha do formato impresso correspondente (se existir). As publicações online são catalogadas, arquivadas e certificadas no que respeita à sua autenticidade, de forma a ficarem acessíveis aos cidadãos posteriormente.
No país vizinho a lei é clara: “São objeto de depósito legal todos os trabalhos de literatura, gravações, visuais, audiovisuais e digitais, produzidos ou editados em Espanha, por qualquer método de produção, publicação ou disseminação e distribuídos em qualquer formato, tangível ou intangível.” Isto mesmo está descrito na página da Biblioteca Nacional de España. A lei foi publicada em 2011, sendo a regulação efetivada em 2015. Em 2022, houve novas modificações, para atualizar a legislação e adaptá-la a novos cenários culturais e editoriais. Os jogos de vídeo também passaram a ser considerados um tipo de produto cultural abrangido.
Os antecedentes da lei espanhola do depósito legal remontam a 1616. Uma reestruturação mais concreta da legislação foi levada a cabo em 1957. Nesta altura, a legislação já abrangia o depósito de conteúdos audiovisuais, nomeadamente películas de filme e gravações sonoras.
A legislação italiana, em vigor desde 2004, abrange vários tipos de conteúdos, impressos, digitais e audiovisuais. O depósito legal aplica-se, por exemplo, a folhetos, publicações periódicas, mapas geográficos e topográficos, mas também arte gráfica, vídeos de artistas, música impressa, microformas, documentos fotográficos, de som e de vídeo, filmes e documentos divulgados em suporte informático, entre outros. Os documentos produzidos especificamente para uso de pessoas com deficiência também estão incluídos. Está explícito no diploma que a obrigação de depósito na Biblioteca Nacional Central de Roma e na de Florença se aplica a todos os suportes em que o documento seja produzido. Estas normas vieram substituir as que estavam em vigor desde 1939, e que já tinham sido alteradas em 1945. A instituição do depósito legal em Itália remonta a 1848, conforme descrito na página da Biblioteca Nacional Central de Roma.
“Livros”, “periódicos”, “partituras”, “fonogramas” e “videogramas”. Estes são os conteúdos abrangidos pela lei do depósito legal brasileiro, segundo informação disponível na página do Governo. Ao contrário da lei portuguesa, exclui materiais publicitários ou teses de mestrado.
Os mecanismos de depósito legal existem no Brasil desde o início do século XIX. Na altura, existia a obrigação das tipografias portuguesas de enviar exemplares para a Real Biblioteca, oficialmente instalada no Rio de Janeiro em 1810, de acordo com informação publicada na revista Biblioo. Doze anos mais tarde, a independência do país transferiu a responsabilidade à Imprensa Régia, a quem cabia enviar as publicações para a Biblioteca Imperial e Pública da Corte. Foi assim até 1907, altura em que um novo decreto regulou os procedimentos, no país que já era republicano. A Biblioteca Nacional passou a ser a única beneficiária.
Em 2004, o decreto foi revogado e a lei alterada. O depósito legal passou a definir-se como o “envio obrigatório de, no mínimo, um exemplar de todas as publicações produzidas em território nacional, por qualquer meio ou processo, para distribuição gratuita ou venda, no prazo máximo de três dias após a sua publicação”. Significa isto que o relevante é o conteúdo, e não o seu suporte. Em 2010, uma nova lei passou a especificar os procedimentos para guarda e salvaguarda da produção musical e preservação do “património fonográfico” brasileiro, conforme descrito no diploma. Pela informação disponibilizada, depreende-se que os websites não são arquivados de forma sistemática.
Atualmente, a Biblioteca Nacional tem o estatuto de fundação. Importa ainda mencionar que, em 2006, foi lançada a Biblioteca Nacional Digital, que integrou coleções que estavam a ser digitalizadas desde 2001.
O Copyright Act de 1976 – que foi alvo de diversas emendas ao longo do tempo – estabelece que os titulares de direitos de autor ou de distribuição de obras publicadas nos Estados Unidos da América são obrigados a depositar duas obras completas para uso da Biblioteca do Congresso, ficando abrangidos pelo “depósito obrigatório” ou “mandatory deposit”.
A Biblioteca do Congresso, que concentra uma enorme parte do acervo histórico norte-americano na forma de registos sonoros, impressos, publicações periódicas, etc., teve origem em 1800, quando o presidente John Adams adquiriu cinco mil livros para uso do Congresso. O objetivo principal era servir o poder legislativo. Só 70 anos mais tarde ganharia a função de serviço público para a população americana, quando centralizou as funções de depósito e registo de direitos de autor.
A norma do “mandatory deposit” não é exatamente igual ao depósito legal vigente noutros países, já que assenta nos direitos dos autores e prende-se com uma espécie de cedência da utilização da obra pela Biblioteca do Congresso. Por estar ligada à lei de direitos de autor – o copyright –, aplica-se a materiais por ela abrangidos, nomeadamente, produção literária, musical, audiovisual e cinematográfica. Também se aplica a software, cartografia e esboços de arquitetura. No caso do digital, é descrito na Circular 7D relativa a Mandatory Deposit of Copies or Phonorecords, que, por norma, as obras eletrónicas estão dispensadas do depósito obrigatório, exceto se se tratar de livros com publicação exclusiva em e-book ou outros cujo depósito tenha sido expressamente indicado pelo Copyright Office.
França foi um país pioneiro no que respeita ao arquivo de publicações, tendo a lei do depósito legal sido criada em 1537, de acordo com a informação disponível na página oficial da Bibliothèque Nationale de France (BNF). Desde 1925 esta entidade é também depositária de documentos sonoros. Videogramas e materiais multimédia passaram a ser arquivados em 1975 e documentos multimédia, softwares e bases de dados em 1992. Desde 2006 que a BNF é, também, responsável pela recolha e preservação das páginas web francesas (domínio .fr), em resultado de um alargamento da lei do depósito legal à internet. Neste país, o mais relevante é o conteúdo, e não o seu suporte.
O arquivo da web é feito através de recolhas regulares automáticas, específicas de um número limitado de websites e depósitos digitais. Os métodos resultam também de uma parceria com o Internet Archive. Importa frisar que antes mesmo de a lei obrigar à recolha de conteúdo digital, já a BNF fazia experiências nessa área, para otimizar processos, segundo descrito no artigo académico Legal deposit of the French Web: harvesting strategies for a national domain, assinado por France Lasfargues, Clément Oury, e Bert Wendland. As tecnologias de depósito legal digital têm vindo a ser continuamente trabalhadas e melhoradas.
Desde 1662 que o Reino Unido possui legislação relativa ao depósito legal, conforme descrito na página oficial da British Library. A partir de 2013, foi alterada a legislação em vigor desde 2003 e passou a ser obrigatório depositar conteúdo impresso e digital. O Legal Deposit Libraries (Non-Print Works) Regulations 2013 alargou o direito à recolha, preservação e garantia de tornar acessível as publicações digitais e websites criados sob domínios oriundos do Reino Unido. Atualmente, são seis as bibliotecas beneficiárias da lei do depósito legal, que se dispersam pelo território britânico: National Library of Scotland, National Library of Wales, Bodleian Libraries (da Universidade de Oxford), Cambridge University Library e biblioteca da Trinity College, em Dublin.
Esta lei abrange elementos audiovisuais quando os mesmos são parte de um universo maior de informação, ou seja, quando o conteúdo é parte integrante de uma página de informação, por exemplo. Quando se trata de ficheiros exclusivamente sonoros ou de vídeo, alojados em plataformas como Spotify ou YouTube ou mesmo que passem na rádio, a lei não se aplica.
A Deutsche National Bibliothek recolhe todos os “textos, imagens e gravações sonoras publicadas na Alemanha ou na língua alemã, traduzidos de alemão ou relacionados com a Alemanha que tenham sido publicados desde 1913”, conforme descrito no site. Em 2006, a legislação foi alterada, passando a incluir o depósito obrigatório de publicações digitais, nomeadamente “e-books, e-papers, audiolivros digitais, performances de música e websites”. O principal objetivo, segundo a mesma fonte, é assegurar que as coleções estão completas, apesar do suporte em que são publicadas. A recolha é, por isso, feita independentemente de haver uma recolha do formato impresso correspondente (se existir). As publicações online são catalogadas, arquivadas e certificadas no que respeita à sua autenticidade, de forma a ficarem acessíveis aos cidadãos posteriormente.
No país vizinho a lei é clara: “São objeto de depósito legal todos os trabalhos de literatura, gravações, visuais, audiovisuais e digitais, produzidos ou editados em Espanha, por qualquer método de produção, publicação ou disseminação e distribuídos em qualquer formato, tangível ou intangível.” Isto mesmo está descrito na página da Biblioteca Nacional de España. A lei foi publicada em 2011, sendo a regulação efetivada em 2015. Em 2022, houve novas modificações, para atualizar a legislação e adaptá-la a novos cenários culturais e editoriais. Os jogos de vídeo também passaram a ser considerados um tipo de produto cultural abrangido.
Os antecedentes da lei espanhola do depósito legal remontam a 1616. Uma reestruturação mais concreta da legislação foi levada a cabo em 1957. Nesta altura, a legislação já abrangia o depósito de conteúdos audiovisuais, nomeadamente películas de filme e gravações sonoras.
A legislação italiana, em vigor desde 2004, abrange vários tipos de conteúdos, impressos, digitais e audiovisuais. O depósito legal aplica-se, por exemplo, a folhetos, publicações periódicas, mapas geográficos e topográficos, mas também arte gráfica, vídeos de artistas, música impressa, microformas, documentos fotográficos, de som e de vídeo, filmes e documentos divulgados em suporte informático, entre outros. Os documentos produzidos especificamente para uso de pessoas com deficiência também estão incluídos. Está explícito no diploma que a obrigação de depósito na Biblioteca Nacional Central de Roma e na de Florença se aplica a todos os suportes em que o documento seja produzido. Estas normas vieram substituir as que estavam em vigor desde 1939, e que já tinham sido alteradas em 1945. A instituição do depósito legal em Itália remonta a 1848, conforme descrito na página da Biblioteca Nacional Central de Roma.
“Livros”, “periódicos”, “partituras”, “fonogramas” e “videogramas”. Estes são os conteúdos abrangidos pela lei do depósito legal brasileiro, segundo informação disponível na página do Governo. Ao contrário da lei portuguesa, exclui materiais publicitários ou teses de mestrado.
Os mecanismos de depósito legal existem no Brasil desde o início do século XIX. Na altura, existia a obrigação das tipografias portuguesas de enviar exemplares para a Real Biblioteca, oficialmente instalada no Rio de Janeiro em 1810, de acordo com informação publicada na revista Biblioo. Doze anos mais tarde, a independência do país transferiu a responsabilidade à Imprensa Régia, a quem cabia enviar as publicações para a Biblioteca Imperial e Pública da Corte. Foi assim até 1907, altura em que um novo decreto regulou os procedimentos, no país que já era republicano. A Biblioteca Nacional passou a ser a única beneficiária.
Em 2004, o decreto foi revogado e a lei alterada. O depósito legal passou a definir-se como o “envio obrigatório de, no mínimo, um exemplar de todas as publicações produzidas em território nacional, por qualquer meio ou processo, para distribuição gratuita ou venda, no prazo máximo de três dias após a sua publicação”. Significa isto que o relevante é o conteúdo, e não o seu suporte. Em 2010, uma nova lei passou a especificar os procedimentos para guarda e salvaguarda da produção musical e preservação do “património fonográfico” brasileiro, conforme descrito no diploma. Pela informação disponibilizada, depreende-se que os websites não são arquivados de forma sistemática.
Atualmente, a Biblioteca Nacional tem o estatuto de fundação. Importa ainda mencionar que, em 2006, foi lançada a Biblioteca Nacional Digital, que integrou coleções que estavam a ser digitalizadas desde 2001.
O Copyright Act de 1976 – que foi alvo de diversas emendas ao longo do tempo – estabelece que os titulares de direitos de autor ou de distribuição de obras publicadas nos Estados Unidos da América são obrigados a depositar duas obras completas para uso da Biblioteca do Congresso, ficando abrangidos pelo “depósito obrigatório” ou “mandatory deposit”.
A Biblioteca do Congresso, que concentra uma enorme parte do acervo histórico norte-americano na forma de registos sonoros, impressos, publicações periódicas, etc., teve origem em 1800, quando o presidente John Adams adquiriu cinco mil livros para uso do Congresso. O objetivo principal era servir o poder legislativo. Só 70 anos mais tarde ganharia a função de serviço público para a população americana, quando centralizou as funções de depósito e registo de direitos de autor.
A norma do “mandatory deposit” não é exatamente igual ao depósito legal vigente noutros países, já que assenta nos direitos dos autores e prende-se com uma espécie de cedência da utilização da obra pela Biblioteca do Congresso. Por estar ligada à lei de direitos de autor – o copyright –, aplica-se a materiais por ela abrangidos, nomeadamente, produção literária, musical, audiovisual e cinematográfica. Também se aplica a software, cartografia e esboços de arquitetura. No caso do digital, é descrito na Circular 7D relativa a Mandatory Deposit of Copies or Phonorecords, que, por norma, as obras eletrónicas estão dispensadas do depósito obrigatório, exceto se se tratar de livros com publicação exclusiva em e-book ou outros cujo depósito tenha sido expressamente indicado pelo Copyright Office.
O Gerador contactou todos os partidos com assento parlamentar – PS, PSD, PAN, Chega, LIVRE, IL, BE e PCP – para perceber se existe ou existiu algum tipo de iniciativa legislativa ou recomendação sobre a matéria dos arquivos de media e depósito legal, mas em nenhum dos casos foi possível agendar entrevistas com os grupos parlamentares, fosse por falta de disponibilidade ou de resposta. Apenas o deputado do Livre, Rui Tavares, respondeu de forma mais concreta e disse o seguinte, por email: “É um assunto que nos preocupa e, no futuro, queremos apresentar uma proposta nesta área.”
O Gerador também contactou a Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto, através dos serviços da Assembleia da República. A assessoria desta comissão respondeu que “gostaria muito de a ajudar, mas a verdade é que não há – nem houve! – qualquer iniciativa legislativa pendente sobre a referida matéria”.
Voltando à rádio, e ao exemplo da Rádio Renascença.
Não havendo nenhuma espécie de depósito legal neste caso concreto, existe apenas a obrigatoriedade de guardar tudo o que é emitido por 30 dias. Isto serve maioritariamente para efeitos de direito de resposta ou provas jurídicas, se for caso disso, podendo o prazo ser alargado por ordem judicial. O mesmo diploma, publicado em 2010, faz referência ao dever de “manter e atualizar arquivos sonoros”, mas não especifica como é suposto isso ser feito.
“Acho que era fundamental existir o depósito legal [para a rádio], até porque a experiência francesa mostra que funciona”, diz a investigadora Cláudia Henriques, referindo-se a uma lei que, ao contrário da portuguesa, considera o conteúdo e não o suporte.
No caso da Rádio Renascença, embora a estação tenha nascido em 1937, o noticiário, realizado de forma sistemática, aparece apenas em 1972. O departamento de documentação só surgiria em 1990, inicialmente virado para a pesquisa de informação diária para jornalistas. Era uma espécie de revista de imprensa, que reunia a súmula dos grandes temas do dia. “Este departamento foi evoluindo e ganhando novos suportes consoante as necessidades”, explica Ana Isabel Almeida, coordenadora do Centro de Documentação da empresa.
Só quatro anos depois começaram a ser guardados conteúdos produzidos internamente, sendo que a política de arquivo atual assenta no discernimento subjetivo da responsável, única trabalhadora alocada a este departamento. Não existem critérios definidos para o arquivo, sendo os sons guardados com base na “relevância”.
O acervo histórico da emissora é dominado pela discoteca, composta por 46 mil obras ”já tratadas”, ou seja, devidamente catalogadas. Ao todo, Ana Isabel Almeida estima que sejam cerca de 50 mil discos de vinil. De facto, os discos são, pelo menos à primeira vista, a presença maioritária nas prateleiras daquela sala.
No arquivo sonoro, há “61 mil sons” em formato digital relativos a programas e outros, a par com 3 mil mates, 500 cassetes e cerca de duzentas bobines. Grande parte deste acervo relativo a conteúdo noticioso não está catalogado.
Hoje, a coordenadora “vai guardando” entrevistas e conteúdos que possam ser relevantes para memória futura. Os programas de entrevista costumam ser guardados na íntegra, já que podem ser úteis para a construção de peças jornalísticas posteriores. A prioridade é, também aqui, o funcionamento diário da emissora. “Se eu consigo ter tempo, tiro também outras coisas”, diz Ana Isabel Almeida.