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França foi um período da minha vida, marca também o começo da reflexão sobre classes sociais, da desigualdade entre elas. Sendo vítima de uma crise, a minha família foi obrigada a procurar uma melhor vida fora de Portugal. Sentindo na pele o rebentamento da corda, que sem exceção, arrebentou do lado mais fraco, ou dos lados mais fracos da sociedade, fez-me procurar o porquê, dando personalidade ao meu trabalho ou a tentativa de a ter.
Como cidadão, não me vendo mais do que isso, falo do que sinto que falta, a mim e ao meu redor, para ter uma vida digna, ou seja, ter direito a uma alimentação boa, educação sem maquilhagens, segurança para todos sem barreiras, saúde não capitalizada e habitação justa. E como estas exigências refletem as exigências de muita gente, certa maneira, pela arte que faço e usando o pouco de “palco” que tenho, amplio o que muitos reclamam, que têm voz, mas não têm ninguém para ouvir.
A inclusão para mim, não é algo de agenda, nem só uma palavra-chave, mas traço no meu trabalho. Represento gente como eu, sem espaço para serem ouvidas e não como salvador nenhum, algo que para mim é natural.
Não me foco nesse lado, mas todas as tensões que existam ou existirem só reflete que, se calhar, de alguma forma, o meu trabalho, na base da sua existência pode estar a ser, qualquer coisa parecida como importante.
– O que vê?, perguntou o médico. Pergunta-me o médico.
– Não vejo nada, ou melhor, minto. Vejo, mas embaçado, murmurei, tentando expressar o que via.
– Uma vez mais, insistiu o médico, e senti a pressão da sua expectativa sobre mim, como se minha resposta pudesse desvendar algo.
– Agora, sim, vejo. Ninguém.
O médico arqueou a sobrancelha, – Ninguém?, ele, como se a palavra tivesse escapado.
– Ninguém, confirmei.
– Ninguém dança, ninguém canta, ninguém se ergue todos os dias de manhã para trabalhar.
Ninguém possui uma família cujos laços transcendem o tempo e o espaço. Ninguém contribui para o tecido social com seu suor e esforço.
– Vejo um vulto que deslizava apressado pela rua, de azul ou rosa não sei bem, de costas. Ar familiar, embora de costas, um quadro que eu, hesitante, tentava decifrar.
– Então?, perguntou o médico, tom carregado.
«Ninguém. Vejo ninguém.»