Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.
Reportagem de Tiago Sigorelho
Ilustração de Frederico Pompeu
09.10.2025
Com moradores a desaparecer, vias saturadas e um turismo maioritariamente basculante, o centro histórico de Sintra vive num equilíbrio precário composto pelo comércio e vida quotidiana. Entre proprietários influentes, comunidades adjacentes despreocupadas e políticas públicas fragmentadas, adensa-se a pergunta: estará o centro histórico a transformar-se num postal ilustrado?
São 18h38 e o Sol ainda está forte, apesar do afamado micro-clima de Sintra. As ruas do centro histórico começam a distender, cansadas de receberem milhares de passos perdidos durante o dia, vindos apressadamente da capital do país para cumprirem escrupulosamente os programas determinados pelas agências turísticas. Os tuk-tuk escondem-se da vista e deixam o alcatrão das estradas mascarar-se de passeio pedestre, tão poucos passam a ser os movimentos viários.
As lojas, grande parte delas dedicadas por inteiro aos turistas ávidos por recordações instantâneas, similares na sua oferta e personalidade, começam a encerrar as portas, enquanto que os escassos restaurantes resistentes já servem jantares gentrificados a quem teve a coragem e a possibilidade de ficar até mais tarde.
Um menu gentrificado na Praça da República, em pleno centro histórico de Sintra
Todos os espaços culturais, museus e parques naturais estão fechados por esta hora. Tal como num parque temático com hora de fecho, o final do dia é essencialmente dedicado a pensar na manhã do dia seguinte. O centro histórico é feito da dualidade composta por trabalhadores para os turistas e turistas para os trabalhadores. Os primeiros entram e saem antes dos segundos chegarem ou saírem, mas a dança é sempre feita entre ambos. Quem não faz parte da performance são os moradores.
“É assim: eu nunca vou ao centro. Não vivo lá e se vivesse já teria saído.” resume Ana Salomons, residente em Sintra e dona de uma loja vintage na zona da Estefânia, bem perto da entrada principal do centro histórico da vila. “Ali está sempre cheio de gente, até fico admirada porque parece que vivo num país diferente.”
Apesar de não haver um portão que o sinalize, sente-se claramente quando chegamos à zona delimitada do centro histórico. Pelo trânsito, pelo volume de pessoas, mas, acima de tudo, pela ausência das rotinas habituais de quaisquer moradores. Há uma vivência bem distinta entre quem leva a sua vida normal fora do portão imaginário e entre a dinâmica transacional que reina lá dentro.
“Ir passear para aí para essa para essa zona não faz, a meu ver, sentido nenhum, porque, de facto, é andar aos encontrões no meio da rua com milhares de pessoas que só sabem tirar fotografias com os telemóveis, não se interessam por nada.” afirma Salvador Reis, nascido há 75 anos, residente em São Pedro de Penaferrim, mais conhecido como São Pedro de Sintra. “A restauração é para turistas, portanto, nada daquilo presta, e em termos de lojas, é o que se vê por todo o país, são as lojas de artesanato feito na China, pseudo-português.”
Martinho Pimentel, também morador de São Pedro e membro da QSintra, uma associação para a defesa da zona da Paisagem Cultural de Sintra, tal como Salvador Reis, é peremptório: “Não tenho uma relação utilitária com o centro histórico há muitos anos, já que não tem lojas de comércio, supermercados ou outros espaços que me sejam úteis, apenas lojas de recordações falsas. Antes ia ter com os meus amigos que viviam no centro histórico, mas eles já saíram todos. Hoje deve haver cerca de 200 pessoas a viver no centro histórico.”
Paulo Parracho, Presidente da Junta de Freguesia da União das Freguesias de Sintra
Na verdade, segundo Paulo Parracho, Presidente da Junta de Freguesia da União das Freguesias de Sintra, o número de moradores é ainda mais baixo. “Eu diria que no centro histórico não moram mais do que 100 pessoas e já estou a ser otimista. Conforme as pessoas foram envelhecendo, foram morrendo, foram vagando casas. E essas casas, em pleno centro histórico, não foram reaproveitadas para habitação propriamente dita. Foram aproveitadas para alojamentos locais e muitas delas, no piso térreo, foram transformadas em lojas. Lojas de souvenirs, lojas que vendem quase todas a mesma coisa. E como tal a oferta da habitação também diminuiu, não há gente nova, não há habitantes novos a morar no centro histórico.”
O turismo, no entanto, tem crescido exponencialmente, com um aumento expressivo de 61% entre 2022 e 2023 (340.633 para 522.176 visitantes). Para 2024, antecipa-se um valor superior aos cerca de 600.000 de 2019. De acordo com a Câmara Municipal, a informação relativa a 2024 ainda não está totalmente apurada.
Para os sintrenses, não há qualquer dúvida sobre qual é o principal problema que resulta de um número elevado de turistas. “Chegam a Sintra, logo de manhã, 50, 60 autocarros. Muitos deles vão diretamente para o Palácio Nacional da Pena, outros dirigem-se para a vila, onde descarregam os turistas. E dado que ali não podem estacionar os autocarros, vão estacioná-los aqui à entrada de Sintra”, afirma Salvador Reis, que acrescenta “imagine as filas de trânsito que existem, que duram horas. Imagine o que é ver um fogo sem que o socorro consiga chegar em tempo útil. Se for um carro dos bombeiros, a casa ou o prédio já ardeu antes de lá chegar.”
Com vias limitadas no acesso ao centro histórico, os entupimentos viários são regulares, principalmente no início do dia e ao final da tarde, refletindo a dinâmica do turismo basculante vindo da capital do país, sem que a pernoita seja uma hipótese. “Cada barco que atraca em Lisboa com 2.000 ou 3.000 pessoas, a maioria vem para Sintra, esse é o problema” diz Basílio Horta, Presidente da Câmara Municipal de Sintra, no fim do último mandato camarário que a lei permite. “Sintra não estava preparada para este fluxo, é um fluxo turístico enorme. Portanto, nós começámos a reagir a isso, limitando as entradas nos palácios, que é fundamentalmente o objeto das visitas. Reduziu-se para metade na Pena e na (Quinta da) Regaleira. Mas, mesmo assim, não chega.“
“Autocarros que descarregam turistas”
“Queremos acreditar que os autarcas consigam resolver o problema. No caso de Sintra, já desacreditámos disso há muito tempo, há muitos anos, porque de facto é impensável que uma pessoa como o Basílio Horta possa ser presidente de uma Câmara como esta. Eu chamo ao Basílio Horta um serial killer do património!” aponta Salvador Reis.
Salvador Reis, morador e membro da QSintra
A destruição ou o mau trato do património, cultural e natural, é outra das preocupações recorrentes, para além da potencial substituição de edifícios protegidos por espaços de hotelaria ou por outras funções recreativas. Segundo Madalena Martins, Presidente da Direção da Associação QSintra “o turismo é importante para Sintra, mas não pode ser um factor de desqualificação da paisagem e de despovoamento. E para que seja um factor de desenvolvimento, tem de obedecer a regras estritas e estar sujeito a um processo de controlo para que não se destrua a si próprio e se transforme num agente de descaracterização do que pretende em última análise explorar.”
Nas várias entrevistas que o Gerador foi realizando, as queixas com a mobilidade e o património foram dando origem a um desassossego distinto, mais abstracto, mas por todos citado: a identidade. Será que a identidade de Sintra pode estar em risco?
“Não, claro que não! Isso é ridículo!” assegura Basílio Horta. “A identidade de Paris está em risco? A identidade de Cannes está em risco? Isso não tem sentido nenhum. Tudo isto se mistura com a política, não sejamos ingénuos. Aquela zona é toda muito PSD e o governo da câmara é PS.”
Ao contrário de muitas mobilizações de base comunitária alargada em territórios afetados pelo turismo, como Barcelona ou Amesterdão, em Sintra os protestos são sobretudo impulsionados por uma associação que reúne, entre outros, vários proprietários relevantes. “É normal que uma elite se possa ajudar, associar-se e começar a debater estas ideias, mas têm-se juntado mais pessoas”, diz Martinho Pimentel, membro da QSintra.
Durante os últimos 4 meses, o Gerador falou com muitas pessoas nas ruas, com os moradores que também estão fora do centro histórico, em São Martim, Portela, São Pedro, Estefânia, locais que fazem parte da União de Freguesias de Sintra. A preocupação com a mobilidade urbana é muito claramente expressa por todos, mas há uma opinião generalizada de favorabilidade ao turismo. “Eu pessoalmente não sofro com turismo em demasia. Eu mudei-me para Sintra há 20 anos e a sensação que eu tenho é que a população em Sintra é envelhecida e é muito, como é que vou dizer, não é tão aberta, vá. É mais conservadora”, confessa Ana Salomons.
Salvador Reis, morador e membro da QSintra
Cartaz da QSintra no centro histórico
Esta aparente dicotomia, entre a elite e a comunidade, é, até, motivo de disputas entre a Associação e a Câmara Municipal. “Acho que a Câmara não gosta de nós, porque o Presidente diz que as pessoas da QSintra são os donos das quintas que estão a perder os privilégios. Não somos os donos das quintas e acho que os donos das quintas não perderam privilégios nenhums, a não ser a chatice do trânsito, para chegarem às suas casas”, refere Salvador Reis.
“Eu nunca disse que a QSintra é composta pelos privilegiados de Sintra, isso é mentira” afirma veementemente Basílio Horta, “O que eu disse é outra coisa, que há pessoas que são privilegiadas pela fortuna que têm, que tinham hábitos mais cómodos, e que agora se sentem afetadas por um movimento turístico que consideram excessivo. Quando vinham à vila, vinham ver os amigos, havia pouca gente. Agora não, realmente, Sintra está cheia. E eles não gostam, não gostam porque consideram que isso perturba a sua concepção de Sintra.”
“É verdade que existem diferenças entre um conjunto de pessoas que está mais preocupado com o turismo e outras, a maioria, que estão mais descontraídas com isso. Salvaguardando as diferenças políticas entre mim e o Dr. Basilio Horta, há coisas que nem é de esquerda, nem é de direita, são factos concretos, não é?” corrobora Paulo Parracho.
Sintra é um concelho polinucleado, composto por várias freguesias, cada uma com identidade própria. Várias delas são “cidades-dormitório” densamente povoadas de trabalhadores que se deslocam diariamente para Lisboa, em que não sentem qualquer impacto turístico. O centro histórico representa apenas cerca de 3% do concelho em termos de área.
Nesse sentido, o desafio que Sintra enfrenta com o turismo difere substancialmente do de outras cidades europeias, como Barcelona, Amesterdão ou Paris, e até de Saint-Malo, cidade histórica francesa de 47.000 habitantes que recebe mais de um milhão de visitantes por ano. Saint-Malo é o local investigado pela StreetPress, através desta reportagem já publicada, numa colaboração jornalística com o Gerador que procura entender as consequências do excesso de turismo para as comunidades locais.
Ao contrário de Saint-Malo, em Sintra não existe um turismo de pernoita muito desenvolvido. Grande parte do turismo é excursionário, composto por estadas breves e diretas aos locais de interesse. O centro histórico de Sintra, por outro lado, é extraordinariamente pequeno e nunca teve um número muito elevado de moradores. Em Saint-Malo a pressão turística tem empurrado os residentes para os subúrbios, transfigurando a cidade intra-muros.
Em ambos os casos, no entanto, os moradores queixam-se que há um desaparecimento da vida local, sem atividade associativa, desportiva ou cultural com relevância. Em Saint-Malo já há um “sentimento de desapropriação muito violento” que ainda não é tão patente, de forma generalizada, em Sintra.
“Os portugueses não são tão interventivos como noutros países” salienta Teresa Costa, investigadora do Centro de Investigação Aplicada em Turismo e Professora Coordenadora no Instituto Politécnico de Setúbal. “Apesar de ser natural que, no futuro, o turismo possa ser instrumentalizado politicamente de forma negativa, principalmente por aqueles que também instrumentalizam a imigração”, podendo dar origem a movimentos mais disruptivos, como aqueles que já assistimos em Barcelona.
“Se um turista me pede indicações, eu não dou. Se me pede ajuda, eu não estou disponível. Não ajudo ninguém deles” diz Martinho Pimentel que, a seguir, desdramatiza “é difícil que em Sintra exista um movimento anti-turista da população como em Barcelona, porque o povo português é diferente do espanhol.”
Basílio Horta, Presidente da Câmara Municipal de Sintra
Na opinião de Basílio Horta, os próprios agentes turísticos estão sensibilizados para o sentimento anti-turismo, já que correm o risco de ver o seu negócio enfraquecido: “Perder 10% do turismo em Sintra é uma desgraça. Perder 10% do turismo em Barcelona se calhar é uma dádiva.”, afirma.
Segundo Teresa Costa, “existem dados mais do que suficientes para se fazerem políticas públicas, é preciso ir atrás deles”, apesar de haver pouca informação sobre a opinião dos residentes, já que até há bem pouco tempo só havia uma narrativa positiva do turismo. “Até agora a recolha, estruturada e regular, de informação sobre o que pensam os residentes, não tem sido devidamente valorizada. Pensava-se muito nos turistas e nos agentes turísticos. A dimensão dos residentes é muito recente.”
O próprio conceito de residente tem vindo a alterar-se, com a inclusão de pessoas que se mudam de outras cidades mais caras, como Lisboa, ou mesmo de outros países, quer venham à procura de património que possam adquirir, quer apenas porque procuram trabalho.
A busca de respostas para resolver os problemas do enorme volume de turismo aparenta ser muito limitada. “No Plano Diretor Municipal em vigor são zonas urbanas, não podemos limitar o seu uso. A pessoa que faz um restaurante pode fazer um armazém, pode fazer outra coisa. O mercado é que deve perceber se tem capacidade de responder ou não. Ninguém abre um restaurante para ficar vazio, não é?” alerta Basílio Horta.
“É difícil, efetivamente, encontrar uma solução que estimule a ideia das pessoas morarem no centro histórico.” diz Paulo Parracho, “a nova construção está fora de questão. A reabilitação em alguns imóveis é, de facto, possível, caso haja interesse dos proprietários e, caso não haja, a Câmara tem o poder e instrumentos para adquirir ou tomar posse desses imóveis e então proceder a essa requalificação para depois as transformar em habitação propriamente dita.”
A QSintra não desmobiliza na procura de soluções, no entanto. “A Câmara Municipal tem demonstrado pouca transparência e abertura ao diálogo. Temos apresentado sugestões e protestos em reuniões públicas da Câmara e da Assembleia Municipal. Tivemos várias reuniões com os principais responsáveis. Temos participado em consultas públicas. No entanto, os problemas continuam a não ser resolvidos e a acção cívica é vista como um ataque aos eleitos e recebida com contra-ataques hostis ou pura e simplesmente ignorada.” diz Madalena Martins.
Segundo Basílio Horta “o número de visitantes aos palácios tem efectivamente reduzido, mas (essa diferença) ainda não se sente nas ruas. O centro histórico está permanentemente cheio. As ruas adjacentes estão permanentemente cheias.” Existem políticas públicas que podem ser implementadas, acrescenta o Presidente da Câmara, mas que são mais radicais. “Em Itália, por exemplo, em Veneza, em certos dias paga-se uma taxa de entrada para quem visita. Nós podíamos fechar o centro histórico e obrigar as pessoas a pagar, mas eu acho isso impossível de acontecer porque isso era matar o turismo e matar o turismo significava pôr na miséria muitas pessoas.”
A aposta central tem passado pela construção de parques de estacionamento dissuasores gratuitos. Em 2023, a autarquia construiu um parque de estacionamento periférico com 550 lugares junto à estação da Portela de Sintra, e já este ano, em julho, inaugurou o parque do Lourel, com cerca de 300 lugares de estacionamento.
“E se eu lhe disser que não está lá um carro estacionado, não estou a mentir” diz Paulo Parracho. “Ninguém sabe que há aquele parque. E mesmo que saibam, ninguém vai deixar o carro a dois ou três quilómetros do centro histórico sem qualquer transporte alternativo. Falta pôr ali uma navete que transportasse as pessoas do parque de estacionamento para o centro histórico. A nível camarário foram tomadas medidas avulsas, como eu chamo, algumas aspirinas para resolver ali algumas feridinhas, mas o problema principal está ali, está a aumentar, e é necessário um plano estratégico que englobe várias áreas, desde a política de habitação, a limitação de entradas no centro histórico, o trânsito, o estacionamento, enfim, um plano estratégico global.”
É difícil vislumbrar um futuro diferente para o centro histórico de Sintra. Com um número exíguo de moradores, um fosso entre os principais proprietários e as comunidades que vivem nas zonas contíguas, limitações à ação pública consequente e a pressão de um turismo sobretudo excursionista vindo de Lisboa, há motivos sólidos de preocupação. E, no entanto, o desfecho não precisa de ser inevitável. Há espaço para melhorar a recolha de informação que permita pensar em novas ideias, ouvindo os moradores, trabalhadores e agentes económicos, e conceber medidas integradas. Só assim, quando ao fim do dia os palácios, lojas e ruas adormecerem, o centro histórico continuará acordado.
Este artigo foi desenvolvido com o apoio do JournalismFund Europe, em parceria com a StreetPress.