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Reportagem de Sofia Craveiro
Edição de Tiago Sigorelho
Design original de Bárbara Caria Adaptação de Frederico Pompeu
Comunicação de Carolina Esteves e Margarida Marques
Captação e edição de vídeo de Marcelo Souza Campos e Pedro Oliveira
Digital de Inês Roque
02.06.2025
O casamento civil entre pessoas do mesmo género foi legalizado em Portugal em 2010. A lei que removeu a expressão “de sexo diferente” da definição de casamento entre duas pessoas foi publicada a 31 de maio, em Diário da República, há 15 anos. A Revolução de Abril não significou liberdade para todos de forma imediata. O caminho até à mudança legislativa fez-se por via da persistência dos movimentos ativistas, que evoluíram e se diversificaram.
Esta é a primeira parte de uma série de 3 reportagens que dedicamos ao tema da legalização em Portugal do casamento entre pessoas do mesmo género. Clica em baixo para acederes à página principal.
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Tinham passado umas escassas quatro semanas desde a Revolução dos Cravos, mas, aos olhos do General Carlos Galvão de Melo, da Junta de Salvação Nacional, já estava a ser feito “um mau uso da liberdade oferecida ao povo de Portugal”.
Os sinais eram vários e foram enumerados pelo militar num comunicado feito na RTP, a 27 de maio de 1974. O pretexto foi uma carta a ele remetida por “um só português” que representava “todos os portugueses autênticos” e na qual eram expressas diversas preocupações com o rumo tomado pelo país.
Um dos exemplos dados pelo autor da carta – com a qual Galvão de Melo assumiu concordar – era a “ignóbil transcrição, em jornais que estão ao alcance de qualquer criança, do comunicado das prostitutas e dos homossexuais, numa demonstração de amoralidade sem precedentes em qualquer país em que a família e a moral existem ainda como valores”.
Em causa estava um manifesto, publicado a 13 de maio no Diário de Lisboa sob o título Liberdade para as Minorias Sexuais. O texto – que não fazia qualquer menção a pessoas trabalhadoras do sexo – estava assinado pelo Movimento de Acção Homossexual Revolucionária (M.A.H.R.), composto por “mais de 1000 militantes no Porto e em Lisboa”, mas cujos membros se mantinham no anonimato.
Entre os subscritores estava António Serzedelo, histórico ativista pelos direitos LGBTQI+ e fundador da associação Opus Gay (hoje renomeada Opus Diversidades), criada em 1997. “Naquela altura, se assinássemos, corríamos perigo. Aliás eu fui ameaçado de morte e foi a própria polícia que me avisou”, conta ao Gerador, ao mesmo tempo que mostra o documento emoldurado na parede da sua casa.
O manifesto pioneiro listava uma série de exigências, entre elas a abolição do art. 71, n.° 4 do Código Penal então em vigor, que punia quem se entregasse “à prática de vícios contra a natureza”.
A legislação só seria revista em 1982, ano em que a homossexualidade “entre adultos, livremente exercida e em recato” deixou de ser crime em Portugal. A mudança não impediu, contudo, a criação de um novo delito (artigo 207º), que descrevia penas mais pesadas para atos sexuais com adolescentes quando estes fossem de cariz homossexual. Não obstante, esta alteração foi considerada um marco importante na conquista de direitos LGBTQI+ em Portugal.
Em 1989, uma portaria de inaptidões para o serviço militar classifica a homossexualidade como doença mental. Em contraciclo, a 17 de maio do ano seguinte, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde.
Outubro de 1983 trouxe consigo o primeiro caso do Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH) detetado em Portugal. Internado em Lisboa, o jovem português de identidade desconhecida, cabeleireiro de profissão, vivia no Canadá, mas tinha sido alvo de um repatriamento compulsivo por conta do teste positivo. O vírus tinha sido descoberto três anos antes, nos Estados Unidos da América, gerando uma onda de medo e homofobia, em resultado da errada associação do VIH com a homossexualidade.
A luta contra a epidemia teve impacto no movimento LGBTQI+ português, que começou a diversificar-se, nomeadamente nas formas de luta e na concretização das reivindicações. A entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia (CEE), em 1986, também trouxe um novo impulso à mudança.
Por ter surgido numa fase mais tardia em relação a outros países, havia “um atraso” no movimento, que acabou por ser compensado com um “aceleramento” das lutas e conquistas de direitos civis, de acordo com o antropólogo Miguel Vale de Almeida, que esteve diretamente envolvido na defesa do casamento igualitário, enquanto deputado independente eleito pelo PS.
Para o especialista, geraram-se “duas tradições” dentro do movimento ativista.
Uma mais antiga e radical herdeira do GTH [Grupo de Trabalho Homossexual, criado no seio do PSR [Partido Social Revolucionário], em 1991. Esta era uma linha “muito inspirada na libertação gay inglesa e numa politização muito grande da questão LGBTQI+”, encarando-a como uma causa ligada à superação do capitalismo.
Em 1995, surge a associação ILGA Portugal, que viria a ser presidida pelo ativista Gonçalo Diniz, na sequência de um movimento ligado à luta contra a SIDA. “Há ali um fenómeno, que foi o movimento da [associação] Abraço e o movimento associativo para apoiar as pessoas com VIH”, que “deu azo à ILGA, de certa maneira”, segundo Miguel Vale de Almeida.
O coletivo trouxe uma lógica diferente de reivindicação, mais articulada com o poder político, diz o antropólogo, que faz referência à cedência do espaço para instalação de um centro comunitário na Rua de São Lázaro, em Lisboa, quando a autarquia era presidida pelo socialista João Soares. “Portanto, é uma estratégia muito mais de negociação política, de lobbying e de conquistar ‘hearts and minds’, de conquistar, de facto, um consenso social em torno dos direitos LGBTQI+”.
“São duas vias. Se isto fosse política chamávamos a uma revolucionária e a outra reformista”, acrescenta o professor catedrático do ISCTE-IUL, frisando o carácter “heterogéneo” do movimento.
A dita heterogeneidade sai reforçada de 1996, quando surgem a associação lésbica Clube Safo, em Aveiro, e a plataforma Portugal Gay, no Porto. No ano seguinte seria também fundada a Opus Gay, em Lisboa.
Fabíola Cardoso, fundadora do Clube Safo, explica que esta associação “sempre teve uma postura muito diplomática, de capacidade de estabelecer relações e proximidades e de valorização da diversidade”. Reconhecendo as diferenças no seio do movimento LGBTQI+, considera “essencial” a existência de associações mais institucionalistas que apenas pretendiam reformar o casamento”, assim como era “necessário, essencial, que haja associações muito mais reacionárias, muito mais subversivas, que queiram construir e inventar e criar e levar à prática formas de organização pessoal e familiar mais diversas”.
“Essas duas coisas não são antagónicas, são complementares no sentido de uma mudança social que seja bem fundamentada e que chega a um grande número de pessoas”, acrescenta.
Ao mesmo tempo que o ativismo LGBTQI+ se diversificava, surgiram novos casos que mostravam a resistência da sociedade às suas reivindicações.
Ao mesmo tempo que o ativismo LGBTQI+ se diversificava, surgiram novos casos que mostravam a resistência da sociedade às suas reivindicações.
Em janeiro de 1999 é publicada em Diário da República, a Classificação Nacional das Deficiências que inclui nas “deficiências psicológicas” o termo “deficiência da função heterossexual”. A tabela, baseada numa listagem desactualizada da OMS, de 1976, é da responsabilidade do Conselho Superior de Estatística (que coordena o INE). O caso é denunciado pelos coletivos ativistas, por figuras públicas, através de um abaixo-assinado, e pelo próprio Bastonário da Ordem dos Médicos. Três meses depois, o documento é revogado.
Um projeto-lei da Juventude Socialista (JS) relativo a uniões de facto, foi aprovado em 1999. O projeto teve votos a favor do PCP e PEV, e votos contra do PSD e CDS-PP. O diploma alargou os direitos fiscais, de segurança social, de trabalho, de habitação e de adopção mas só a casais heterossexuais. A polémica tinha-se instalado cerca de três anos antes, em junho de 1997, quando Sérgio Sousa Pinto, então líder da JS e deputado, anunciou um projeto-lei que permitiria institucionalizar as uniões de facto. A iniciativa legislativa inicial não distinguia casais do mesmo género ou de género diferente, o que causou a perplexidade dentro do próprio Partido Socialista (PS), então liderado por António Guterres. Tal foi o choque, que este projeto nem chegou a dar entrada no parlamento.
A reivindicação do casamento homossexual já existia nesta altura. A questão das uniões de facto começa, por isso, a surgir como uma tentativa de “refletir a reivindicação para uma versão menor do reconhecimento daqueles direitos”, diz Sérgio Vitorino, ativista e fundador da associação Panteras Rosa.
“Em 2001 consegue-se uma segunda lei de uniões de facto [que já abrangeu casais do mesmo género] depois de três anos de muita contestação. Aí as organizações LGBT que existiam na altura – a GTH, o Clube Safo a Opus [Gay], a ILGA Portugal, estávamos a agir em conjunto, a uma só voz”, relata o ativista.
Os coletivos tinham-se unido não apenas para reivindicar a mudança da lei das uniões de facto, mas também para “denunciar” o regime de economia comum, que Sérgio Vitorino descreve como uma outra tentativa do PS de perpetuar a distinção entre casais hetero e homossexuais. “Era uma farsa porque, na verdade, era uma cópia do projeto de uniões de facto com um nome diferente e com outra diferença essencial: não reconhecia a existência de uma relação afetiva”. O diploma não passou. “Deu origem a dois regimes, que são os atuais: de economia comum e de uniões de facto”, relata. “Na verdade, a comunidade LGBT conquistou, para o conjunto da população, um melhor regime de união de facto, que pode ser utilizado também pelos casais heterossexuais”, acrescenta Sérgio Vitorino.
A questão do casamento, no entanto, continuava “por resolver”.
Entretanto, o movimento LGBTQI+ consolidava-se e organizava-se em ações cada vez mais impactantes. Após o primeiro Arraial Pride, em 1997, no Príncipe Real, em Lisboa, fez-se, em 2000, a primeira marcha do Orgulho LGBTQI+, na capital. Em 2006 chegaria ao Porto, onde já tinham sido organizados outros eventos.
As “fronteiras institucionais” de algumas associações eram, para Sérgio Vitorino, limitadoras de ações mais interventivas, por isso fundou as Panteras Rosa – Frente de Combate contra a LésBiGayTransFobia, em 2004.
O coletivo surge na sequência do caso de Liliana e Salete, jovens lésbicas que ficaram desalojadas. O casal vivia no Bairro da Cruz Vermelha, no Lumiar, em Lisboa, quando a autarquia decidiu demolir as construções precárias ali existentes. Todas as famílias tinham direito a uma nova habitação social, excepto as duas jovens, já que a sua vivência conjunta não era reconhecida pela Câmara Municipal. “Tinham sido expulsas de casa dos pais por serem namoradas”, relata Sérgio Vitorino. “Nós fomos colocar-nos frente a um bulldozer da Câmara Municipal, levámos tareia da Polícia Municipal, de uns agentes à paisana que lá estavam – que agrediram mulheres e qualquer pessoa que se pôs à frente”.
O ativista diz ter feito esta intervenção pois “na altura, a ILGA Portugal estava completamente dependente das instalações e de um conjunto de outros acordos, da Câmara Municipal de Lisboa e, portanto, não abriria a boca sobre este caso”.
Liliana e Salete acabaram por nunca ser realojadas pela autarquia, embora a Assembleia Municipal tivesse dado razão às jovens três meses depois. “Acabaram por encontrar soluções com o nosso apoio”, conta.
O caso foi de clara discriminação em função da orientação sexual, elemento que não estava ainda incluído no Princípio da Igualdade na Constituição. Esse cenário foi alterado em julho do mesmo ano, no âmbito da Revisão Constitucional e ficou patente na Lei Fundamental que nenhuma pessoa pode ser discriminada em função da orientação sexual.
Apesar disso, a discriminação estava presente noutras leis, nomeadamente no já referido artigo 207º do Código Penal, que distinguia homossexualidade com menores dos restantes crimes sexuais praticados contra crianças. Em 2005, um acordão do Tribunal Constitucional, a propósito de um processo aberto na justiça, descrevia a inconstitucionalidade deste artigo.
A homofobia fazia correr tinta nos jornais. Um homem residente em Viseu fez queixa às autoridades após receber ameaças de morte. A associação Opus Gay falava em “milícias populares” que perseguiam a comunidade homossexual. O caso motivou a realização da primeira manifestação nacional contra a homofobia, que se realizou a 15 de maio de 2005, na mesma cidade. O protesto, que contou com cerca de 300 participantes, ficou marcado pelos insultos homofóbicos dirigidos aos manifestantes.
A Lei 32/2006 que regula as técnicas de procriação medicamente assistida foi aprovada no ano seguinte. O documento deixou explícito que só podiam ser beneficiários dos procedimentos pessoas “de sexo diferente”, que estejam casadas ou vivam em “condições análogas às dos cônjuges há pelo menos dois anos.” A ILGA contestou a “inadmissível” exclusão de mulheres solteiras e casais de lésbicas, mas passaria uma década até que a lei fosse alterada para as incluir.
2006 acabou por ser um ano marcante para a comunidade LGBTQI+, pelos piores motivos.
Foi neste ano, a 1 de fevereiro, que Teresa Pires e Helena Paixão viram ser-lhes negada a possibilidade de casar. O caso tornou-se icónico e marcou profundamente a luta pelo casamento igualitário em Portugal. Teresa e Helena tornaram-se um símbolo da luta pelos direitos LGBTQI+, ainda que essa não fosse a sua intenção.
Em resumo: o casal dirigiu-se à Conservatória do Registo Civil na Avenida Fontes Pereira de Melo, em Lisboa, para casar. O pedido foi negado já que a definição legal de casamento civil era descrita como uma união entre duas pessoas “de sexo diferente”.
“Nós tínhamos a noção que ia ser indeferido, não fomos iludidas. A lei não permitia, nós sabíamos, mas também sabíamos que era o primeiro passo para podermos avançar com o processo”, diz Teresa Pires, em entrevista ao Gerador.
Vários jornalistas estavam presentes e o acontecimento foi notícia internacional. O objetivo era, precisamente, captar a atenção mediática para o problema e dar início a uma luta jurídica. Depois disso, bastava mais dois ou três casais tentarem o mesmo e, achavam elas, a reivindicação ganharia força.
Não foi isso que aconteceu. O casamento homossexual já estava em discussão na sociedade portuguesa mas era um tema considerado marginal. Apesar disso, o impacto mediático desta ação ultrapassou largamente as expetativas do casal, que sofreu na pele as consequências.
Os anos seguintes foram duros. Teresa e Helena viram-se obrigadas a lutar contra os preconceitos da sociedade e as negas dos tribunais. Foram despejadas vezes sem conta. Teresa perdeu o emprego. A filha de Helena, Marisa, que vivia com ambas, foi vítima de bullying por parte de professores. O casal foi acusado de se expor por interesse, de serem uma farsa, de quererem ganhar dinheiro com as entrevistas. “A gente não conseguia estabilizar a nossa vida”, lamenta Teresa Pires, que na altura também lutava por conseguir a guarda da sua filha, que vivia com os avós.
Foi também nesta altura, mais concretamente dia 22 de fevereiro, que o país foi confrontado com o chocante assassinato de Gisberta Salce Junior, mulher trans brasileira que vivia na cidade do Porto. Gisberta tinha fugido do Brasil para escapar a uma vaga de homicídios contra pessoas trans. Estava em situação de sem-abrigo e era trabalhadora sexual. Foi agredida durante vários dias por um grupo de jovens, que se autodenominava The Gang. O corpo foi encontrado submerso, no fosso de um prédio em construção, no Campo 24 de Agosto. Nas notícias sobre o caso, Gisberta foi frequentemente retratada no masculino.
Gisberta terá pedido ajuda após ser lançada a um poço de 15 metros de profundidade. Esses pedidos terão sido ouvidos pelos membros do Gang, que os ignorou, segundo o Ministério Público.
Após serem condenados por ofensas à integridade física, os autores do crime acabaram por se ver livres da acusação de homicídio, que os procuradores deixaram cair por não ter ficado provado que as lesões causadas pela queda no poço foram a causa de morte. Segundo o relatório da autópsia, Gisberta morreu afogada.
Nesta fase discutia-se na sociedade portuguesa um outro tema fraturante: a interrupção voluntária da gravidez. Após a vitória do “Não”, no referendo de 1998, estava na calha a realização de uma nova consulta popular, no qual médicos e apoiantes da aprovação apostavam todas as fichas. Nesta fase, os coletivos LGBTQI+ aliaram-se à luta pela despenalização do aborto, desempenhando um papel relevante na mobilização por esta causa. Em 2007, o “Sim” venceu e a interrupção da gravidez por opção da mulher, até às 10 semanas, foi despenalizada.
Paralelamente, a discussão em torno do casamento igualitário ganhava mais destaque na sociedade portuguesa.
Em 2008 é lançado o livro O Casamento entre Pessoas do Mesmo Sexo (2008, Almedina) que reunia pareceres jurídicos favoráveis de Isabel Moreira, Carlos Pamplona Côrte-Real e Luís Duarte D’Almeida. A obra foi publicada na sequência de um pedido de Luís Grave Rodrigues, advogado de Teresa Pires e Helena Paixão, que estava prestes a recorrer do indeferimento do pedido de casamento para o Tribunal Constitucional [TC], conforme recorda Isabel Moreira. “Fui uma das três pessoas que decidiram que, enquanto o TC julgava a questão, deveríamos publicar [os pareceres] em livro.”
A atual deputada do PS – que, à época, ainda não detinha qualquer cargo político – explica que não havia nenhum livro publicado que defendesse a inconstitucionalidade da proibição do casamento entre pessoas do mesmo género, pelo que esta ação foi relevante para dar força à reivindicação. “Para termos consciência de como hoje tomamos as coisas como evidentes e na altura não [eram]: propusemos à Almedina que, por baixo do título, estivesse a bandeira com as cores do arco-íris”. A editora aceitou, por achar “muito bonito”, mas sem saber o que significava.
Por ser uma das autoras, Isabel Moreira começou a ver a sua presença ser solicitada para participar em debates e se envolver na luta. “Fui desafiada para integrar o Movimento Cívico pela Igualdade. Não hesitei”, sublinha. “Comecei a perceber que a questão era fortíssima, muito importante, que [a luta] tinha que ser travada, e sobretudo que a reação a ela, de quem era contra, era tão preocupante do ponto de vista do ódio que gerava, do envolvimento de tantos setores que, para mim eram inesperados, (…) que se tornou uma luta visceral para mim.”
A inconstitucionalidade era, para Isabel Moreira, “óbvia”. “Quando uma lei, à partida, diz que pessoas sexo de diferente podem casar e, pelo contrário, proíbe o casamento com base na orientação sexual, eu entendo que há uma inconstitucionalidade e nada pode justificar isso, a não ser considerações do foro religioso, que, aliás, estiveram muito presentes no debate longo que enfrentámos”.
Os setores conservadores e religiosos argumentavam que podia ser criada uma união civil alternativa, com uma denominação diferente. “Igualdade é tratamento igual de realidades iguais e tratamento desigual de realidades desiguais”, escreveu o constitucionalista Jorge Miranda, num artigo de opinião publicado em 2008 no jornal Público.
Num debate sobre o tema, no programa Prós e Contras, na RTP, foi também referido que duas pessoas do mesmo género não podiam procriar e que, por isso, não deviam poder casar-se. “Esse argumento, evidentemente, é religioso porque… enfim, com todo o respeito pela doutrina católica, um dos fins do casamento [religioso] é a procriação. Para o casamento civil não”, diz Isabel Moreira. Até porque, conforme rebateu na altura, duas pessoas idosas, já sem possibilidade de ter filhos, podiam casar-se, desde que fossem de género diferente, o que desmontava o argumento.
Os filhos eram, aliás, uma questão que surgia ligada ao tema do casamento, já que os setores conservadores rejeitavam peremptoriamente a adopção por casais do mesmo género e temiam que a legalização da união civil precipitasse também essa alteração. Miguel Vale de Almeida fala numa expressão de “pânico moral em torno das crianças”.
“É uma espécie de psicologização heterossexista sobre o que é o crescimento das crianças”, diz. “Essas foram grandes lutas, que aliás, na altura, eu perdi, porque estava previsto em 2010 que a lei fosse [a aprovação de] tudo”, o que não se verificou.
A lei que alterou o Código Civil e retirou a expressão “sexo diferente” da definição de casamento foi aprovada em janeiro de 2010. A proposta do Governo socialista teve os votos favoráveis das bancadas do PCP, BE e Os Verdes. Duas deputadas independentes eleitas pelo PS votaram contra, assim como a maioria dos deputados do PSD, que deu liberdade de voto. Também a bancada do CDS-PP se opôs à mudança da lei, que foi publicada no Diário da República, a 31 de maio de 2010.
A 7 de junho de 2010, Teresa Pires e Helena Paixão foram novamente à Conservatória, mas desta vez saíram de aliança no dedo. O seu casamento foi o primeiro celebrado entre duas pessoas do mesmo género em Portugal.
Este diploma deixava, contudo, explícito que as alterações não tinham implicação nos processos de adopção, que continuou interdita a casais LGBTQI+. Miguel Vale de Almeida, diz ter sido surpreendido com essa alteração da proposta. “O projeto do PS andou ali a navegar e, finalmente, ia ter tudo isso, e à última da hora houve uma mudança e tiraram”.
O antropólogo – que na altura era deputado independente eleito nas listas do PS – diz que houve “falta de vontade política”, pois os socialistas liderados por José Sócrates tinham maioria absoluta no Parlamento e, por isso, a aprovação era garantida. “Tivemos de esperar até 2016”.
Esta questão era controversa dentro do movimento. Se alguns coletivos consideravam que não era possível conquistar todos os direitos em simultâneo, e que por vezes era necessário fazer cedências estratégicas – até porque o movimento LGBTQI+ era relativamente recente em Portugal -, por outro, havia associações que se insurgiam contra a manutenção de mais uma forma de discriminação na lei e que consideram que o seu papel acabou por ser relevado para segundo plano quando o PS inclui a medida nos seus programas e deixou de lado a questão da adopção.
Durante a sua participação nas reuniões e sessões de discussão prévias à votação da lei, Fernando Cascais não esteve de acordo que se trabalhasse a questão do casamento sem que houvesse uma análise crítica do que este significava enquanto instituição, mas admite “compreender” que a não inclusão da adopção na nova lei era uma postura “estratégica”. “Custa mais a perceber que fosse, quase que moralmente exigido, que nós não falássemos de mais nada, a não ser do casamento”, admite.
Para Fabíola Cardoso, fundadora do Clube Safo, o casamento, da forma como foi aprovado acabou por ser um “presente envenenado”, pois deixou de lado todas as questões ligadas à parentalidade, nomeadamente adopção e procriação medicamente assistida. “Dentro do Clube Safo, isto tinha leituras completamente diferentes: desde pessoas que achavam que nós devíamos rejeitar aquela proposta, porque ela era claramente insatisfatória, até pessoas que diziam que nós devíamos aceitar, porque era um passo no caminho daquilo que nós queríamos que acontecesse”, explica. A postura adotada foi a de aceitar, frisando que havia ainda muito por conquistar.
Não obstante, é reconhecido que a legalização do casamento foi um marco muito importante e abriu caminho para reivindicações futuras, segundo explica a antropóloga e investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Joana Brilhante. “Digamos que teve que ser feito com pequenos passos. [Percebeu-se que era necessário] primeiro o casamento e esta visibilidade que a lei vai dar, em termos sociais e públicos, para depois conseguir dar os passinhos seguintes”.