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27.10.2025

Desde muito jovem, Bárbara Maranhão sempre teve o desejo de ser mãe. Mesmo sem entender exatamente o que isso significava, a certeza existia, era “muito real” e, com o passar dos anos, consolidou-se. Ter um filho era “o sonho” da jovem carioca, que estava disposta a tentar de tudo.
Há cerca de sete anos, Bárbara e a sua companheira da altura iniciaram o caminho de tentar conceber uma criança pela via mais óbvia: as clínicas de fertilidade. “Busquei informações, mas era tudo muito caro. O mais barato que você consegue é 30 mil reais [o equivalente a pouco mais de 4.700 euros] para fazer uma inseminação [artificial] no Rio de Janeiro. Eu não tinha esse dinheiro”, relata.
No sistema de saúde público brasileiro a lista de espera pode ser de vários anos, dependendo da região. Na procura por alternativas, Bárbara descobriu “por acaso” no Facebook, grupos onde se falava de inseminação caseira.
Estes fóruns digitais – que existem também no WhatsApp e outras plataformas – são um ponto de encontro para dadores de esperma e “tentantes”, ou seja, pessoas que estão a tentar engravidar. O número de membros oscila entre as dezenas e as dezenas de milhar, dependendo dos casos. Há grupos exclusivos para casais LGBTQI+, outros só para mulheres solteiras, outros apenas destinados a dadores ou ainda aqueles onde se encontra um pouco de tudo, desde dadores que se disponibilizam para ajudar a conceber um bebé, a pessoas que procuram projetos de coparentalidade – ou seja, procuram conceber e educar uma criança, sem que isso envolva uma relação romântica entre os(as) educadores(as).
Ao fazer scroll nestes grupos – que são em maior número no Brasil, mas também existem em Portugal e noutros países – é possível ler posts de pessoas com solicitações muito específicas ao nível do cabelo, cor dos olhos, etc. Também há tentantes que não procuram nenhuma característica física particular no dador, mas apenas alguém saudável, sem registo de quaisquer anomalias genéticas e que tenha um grupo sanguíneo compatível. Este era o caso de Bárbara. “É quase um banco de [esperma]”, diz, em entrevista ao Gerador. “Tem gente que seleciona muito, que exige muito, que quer um cara extremamente perfeito. Eu só queria um cara que fizesse um filho, então, para mim não tinha muito essa coisa de exigência”.

Existem dadores que pretendem fazer parte da vida da criança que irão ajudar a conceber, assim como há mulheres tentantes que também desejam este envolvimento. Querem que seja estabelecida uma relação de proximidade, sem que isso corresponda a uma figura paternal. Noutros casos, os dadores procuram apenas saber se a inseminação resultou, pois valorizam a disseminação dos seus genes. Há ainda aqueles que, após fazer a doação, cessam de imediato o contacto com as tentantes, para evitar que se desenvolva qualquer vínculo. “Tem mulheres que aceitam que o doador seja uma espécie de padrinho da criança. Para mim isso não era uma realidade. Eu queria literalmente o esperma dele, para fazer um filho. Eu não quero a participação dele”, afirma Bárbara.
Durante cerca de cinco anos, Bárbara Maranhão realizou inúmeras inseminações caseiras. Decidiu tentar por esta via, já que não tinha meios para pagar tratamentos em clínicas privadas e a lista no Sistema Único de Saúde no Brasil – equivalente ao SNS, em Portugal – era extensa e podia atingir os três anos de espera. Ao todo, calcula ter recorrido a “quatro ou cinco” dadores, sendo que quase todos lhe doaram esperma várias vezes. “Emocionalmente é extremamente desgastante para quem está tentando, porque você quer conseguir e não consegue”, conta.
Perante a falta de um resultado positivo, a sua mãe ofereceu-se para ajudar e apoiou-a financeiramente. Bárbara realizou testes médicos. Descobriu que a sua contagem de óvulos era demasiado baixa para uma mulher com 36 anos e que seriam poucas as chances de engravidar. Numa clínica, fez Fertilização In Vitro (FIV) com ovócitos da esposa, que foram inseminados e depois implantados no seu útero. É o chamado método RoPA – Recuperação de Ovócitos da PArceira / Maternidade Partilhada. Tentou duas vezes, sem sucesso. Não tinha meios financeiros para mais repetições.
Apesar de querer muito ser a mãe gestante, Bárbara tentou a única opção que restava: fazer a inseminação caseira na sua esposa, que concordou.
O processo foi semelhante aos anteriores: foi contactado um dador através de um grupo no Facebook. Houve uma conversa prévia para compreender se as expectativas estavam alinhadas e solicitados os exames médicos atualizados. No dia em que a companheira de Bárbara estava no período fértil, o casal encontrou-se com o dador numa casa que alugaram para o efeito. Nesse espaço, na casa de banho, o dador masturbou-se e ejaculou para um recipiente, que é geralmente um copo comum de recolha de fluídos para análise. Depois disso, entregou o recipiente à mulher tentante, que recolheu o sémen com uma seringa e o injetou dentro da vagina.
Por norma, o dador abandona o local antes de a tentante fazer a auto-inseminação, para lhe dar mais privacidade. Este processo pode ser repetido várias vezes até que resulte em gravidez. Neste caso, foram necessárias apenas duas tentativas. Nove meses depois, nasceu a criança de cabelo castanho encaracolado que agora segura ao colo e que pede a sua atenção.

Com as dificuldades que enfrentou no acesso a tratamentos de Procriação Medicamente Assistida (PMA), e as soluções que acabou por escolher, fora das clínicas privadas e do sistema público de saúde, o caso de Bárbara é ilustrativo de uma realidade complexa, fora dos sistemas padrão, que se verifica em muitos países.

Pela sua natureza informal e pela ausência de regulação, não existem dados concretos sobre a prevalência desta prática, quer a nível nacional, quer internacional. Sabe-se, no entanto, que não se trata de um fenómeno recente: desde a década de 1970, grupos de mulheres lésbicas partilham informação sobre inseminação caseira, promovida por ativistas como uma alternativa à exclusão social provocada pelos elevados custos dos tratamentos em clínicas privadas.
É também encarada como uma forma de emancipação da mulher, que desta forma toma as rédeas, contorna as estruturas patriarcais, a “mediação obrigatória” e a “patologização do processo”, segundo Andreia (nome fictício), portuguesa, mãe de dois filhos já adultos concebidos com recurso a inseminações caseiras feitas no início dos anos 2000.


“Temos muitas estruturas criadas exatamente para impedir as mulheres de serem livres, autónomas e senhoras do seu próprio corpo e da sua fertilidade. Essa é uma das razões pelas quais esta prática é tão interessante”, explica Andreia, em entrevista ao Gerador. “Isto é uma prática anti-patriarcado, anti-sistema e que é completamente revolucionária, mas que, ao mesmo tempo, é completamente natural”, diz a ativista feminista que faz parte da associação lésbica Clube Safo.
De facto, no século XVIII, o cirurgião escocês John Hunter inseminou uma mulher com o esperma do marido, o que resultou numa gravidez. Esta foi a primeira experiência registada de um procedimento de inseminação artificial feito em humanos, segundo a enciclopédia Britannica. O método atual de inseminação caseira não é muito diferente deste.
A novidade está na forma como o contacto entre dadores e tentantes é feito, por via de grupos nas redes sociais, que facilitam a comunicação e o encontro dando espaço para a criação de comunidades em torno do tema, segundo explica a psicóloga e investigadora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro Roberta Nunes, que focou a sua tese de doutoramento neste assunto e fez também um documentário intitulado E Se (Não) for Inseminação Caseira?.
Para a especialista, a prática “não é revolucionária”, mas terá começado a ganhar novos contornos no início do milénio, à boleia da internet. Apesar disso, a investigadora não considera que seja algo comum, mesmo no Brasil, onde o assunto é discutido há mais tempo. “Há muita gente que não faz ideia do que seja”, diz.
“A maioria das pessoas que fazem uso [desta técnica] são casais de mulheres lésbicas, porque elas não têm o gâmeta masculino, mas também tem mulheres solos, e casais heterossexuais que fazem.” Para Roberta Nunes, a grande diferença é que os casais heterossexuais não falam disso.



Nos grupos de Facebook encontram-se relatos de pessoas que tiveram sucesso na primeira tentativa, outras que fizeram dezenas até resultar. Em alguns casos, a técnica caseira nunca chega a resultar.
“Em si, é uma técnica com pouca probabilidade de êxito”, diz o especialista Carlos Calhaz Jorge. “O que é preciso ter em conta é que na nossa espécie a probabilidade de êxito, num ciclo normal das senhoras jovens, até aos 35 anos, é de cerca de 25% no máximo. Portanto, um casal que não tem problema nenhum, num mês, só tem esta probabilidade.”
O presidente do CNPMA refere que, não havendo quaisquer problemas de infertilidade e tratando-se apenas de uma questão de falta de gâmetas masculinos “as probabilidades de êxito aproximam-se destes valores, mas isto se [a inseminação caseira] for feita no tempo correto da ovulação”. Se não existirem “balizas clínicas” que indiquem que se está na ovulação “é como ter relações em casa”. “E os casais não engravidam sempre, não é?”, acrescenta.

Os custos elevados em clínicas privadas são uma justificação frequentemente apontada pelas entrevistadas para recorrer à prática caseira. Em alguns casos, as pessoas chegaram a fazer uma ou duas tentativas em clínicas, mas os preços proibitivos levaram-nas a desistir e procurar uma alternativa.
Em Portugal, os preços variam mas situam-se nos milhares de euros por tratamento. Seguem-se três exemplos, escolhidos de forma aleatória.

No SNS português, é possível fazer tratamentos de PMA de forma tendencialmente gratuita, mas isso exige o cumprimento de alguns critérios. Podem aceder casais heterossexuais com diagnóstico de infertilidade, casais do mesmo género ou mulheres solteiras. No caso de Fertilização In Vitro (FIV) ou Injeção Intracitoplasmática de espermatozóides (ICSI) a pessoa gestante tem de ter menos de 40 anos. Para fazer inseminação artificial o limite são 42 anos de idade. Muitas mulheres, mesmo que ainda não tenham atingido a idade limite na altura da referenciação pelo médico de família, ficam excluídas à partida, pois as listas de espera são de três anos e meio de acordo com Carlos Calhaz Jorge, presidente do CNPMA, que classifica a situação de “absolutamente intolerável” e “inaceitável”.

Além disso, os centros de fertilidade públicos não cobrem todo o território nacional. Segundo a informação disponibilizada na página do CNPMA, estes serviços estão disponíveis em Guimarães, Vila Nova de Gaia, Porto, Covilhã, Coimbra, Lisboa, Almada e Funchal, no Arquipélago da Madeira. A mesma fonte indica 19 centros privados autorizados a realizar técnicas de PMA, quase o dobro do número de centros públicos. Um desses centros está em Faro e outro em Ponta Delgada, nos Açores, onde não existe oferta pública.
Além da disparidade territorial, o acesso à PMA em centros públicos acarreta outros desafios. Um deles é a falta de doações de gâmetas, que só podem ser feitas no Porto, Lisboa ou Coimbra. A morosidade do processo de doação – sujeito a marcações e disponibilidade dos serviços – é um dos fatores que afasta os dadores. “É muito mais fácil ir a um centro privado que tenha estruturas criadas para simplificar ao máximo os circuitos”, explica Carlos Calhaz Jorge.
A par disso, desde que devidamente autorizadas, as clínicas privadas podem recorrer à importação de gâmetas para colmatar a falta de doações. Atualmente, há 17 clínicas autorizadas pelo CNPMA a fazê-lo. No SNS não existem recursos suficientes para fazer o mesmo, embora a lei o permita.
O Gerador contactou diversas clínicas privadas para esclarecer a forma como tudo se processa, mas não obteve resposta às solicitações.


O facto de não existirem (praticamente) custos, de ser possível fazer o procedimento em casa ou num local escolhido, com privacidade, no dia e hora mais conveniente, sem necessidade de se deslocar centenas de quilómetros são apontadas como algumas vantagens da inseminação caseira pelas tentantes e dadores. Também a possibilidade de repetir o processo várias vezes é considerado importante. A ausência de burocracia é um fator particularmente valorizado pelos dadores.
“André” (nome fictício), tem 29 anos, vive entre a “zona de Aveiro e Porto”, é dador há cerca de dois anos e meio, mas só há pouco tempo decidiu entrar nos grupos de Facebook. À data da entrevista, feita a 18 de junho de 2025 por via de mensagens escritas, contava ter ajudado a conceber cinco crianças através de inseminação caseira. Afirma que o seu limite são oito bebés e que a partir desse número irá parar de doar.
Ao Gerador, diz que a sua única motivação é “ajudar alguém a construir o seu projeto de vida”. “Por exemplo, se fazes doações de sangue e recebes a mensagem a agradecer e a dizer que ajudaste a salvar uma vida sentes-te feliz, mas não visualizas ninguém em concreto. Neste caso, o impacto é maior porque não é “alguém”, é uma (ou duas) pessoa(s) com quem trocaste algumas palavras.”
Segundo André, o processo de doação habitual é semelhante ao referido por Bárbara Maranhão: “Nos dias mais férteis desloco-me normalmente à casa da tentante, faço a colheita do semén e vou à minha vida. Não tenho absolutamente nada a ver com o processo que acontece a seguir.”
André diz não querer criar qualquer tipo de relação com as tentantes ou crianças que eventualmente possa ajudar a gerar, por recear vir a ter problemas jurídicos, mas por vezes surge uma relação de apoio mútuo. “De certa forma há uma espécie de relação de amizade que se vai desenvolvendo. Somos tipo uma equipa em que estamos a trabalhar para o mesmo. Pode demorar alguns ciclos a conseguir um positivo. Quando não resulta e dá negativo acabas por ser a primeira pessoa (tirando o casal) a saber e tentas dar suporte”, explica.
É importante referir que nem todos os dadores têm as mesmas motivações e cuidados. O Gerador entrou em vários grupos de inseminação caseira no Facebook, fez entrevistas e encontrou perfis muito diferentes: desde homens que dizem apenas querer ajudar, a dadores que sugerem ter relações sexuais com as tentantes, numa lógica de “inseminação natural”. Também há homens que querem a todo o custo disseminar os seus genes ou que sonham ter filhos e, por nunca terem conseguido concretizar essa ambição, encaram as doações como uma forma indireta de o fazer. Há também pessoas que procuram projetos de coparentalidade e casos em que os dadores pretendem lucrar com as doações.

Daniel Bayen é um exemplo sui generis. Nos últimos dois anos, dedicou-se a ser “doador privado profissional”, aprimorando as suas rotinas e publicando o máximo de informação possível sobre elas. No seu perfil de Instagram, sob o nome “Donor Dan”, o jovem de 24 anos, com nacionalidade alemã e norte-americana, publica vídeos onde mostra os cuidados com a saúde, os suplementos alimentares que toma para potenciar a fertilidade, os exames médicos que faz, assim como reflexões e respostas a dúvidas comuns.
A história de vida ajuda a explicar a opção profissional: a sua mãe engravidou com recurso a um dador de esperma. Por ter sido sujeita a tratamentos de fertilidade em clínicas nos EUA, suportou grandes despesas para poder engravidar, das duas vezes que o fez. Criou os dois filhos sozinha e nunca lhes escondeu a forma como foram concebidos. De tal forma que Daniel conhece bem o homem que foi seu dador, assim como os seus 23 “meios-irmãos”, gerados por outras mulheres que receberam doações dele. “É uma grande dádiva ter tantas conexões e conhecer tantas pessoas do meu sangue”, diz ao Gerador.
Viaja frequentemente a pedido de tentantes, que asseguram os custos das suas deslocações e podem ou não providenciar outras comodidades, como passeios turísticos, hóteis, etc. Pelo esforço que incute no processo, Daniel Bayen cobra pelas suas doações e pelo seu tempo, pois acredita ser uma forma de as tentantes terem a garantia de receber uma doação “de qualidade” e que aumenta as suas chances de engravidar.
Até à data da entrevista, feita em junho deste ano, afirmava ter ajudado a conceber 10 crianças. Disse ainda já ter feito doações nos EUA, Tailândia, Alemanha, Áustria, Malásia, Reino Unido, China, Suíça e Grécia. O seu limite é ajudar a gerar “entre 30 a 50 crianças”, um número que lhe foi aconselhado pelo ChatGPT e que considera razoável.
Têm vindo a público relatos de dadores “profissionais”, que viajam pelo mundo para fazer doações de esperma. Um caso que se tornou muito mediático, por ser extremo, é o de Jonathan Jacob Meijer, dador holandês retratado no documentário da Netflix O Homem Com Mil Filhos.
Jonathan é considerado um dador em série. Fez doações em bancos de esperma e de forma caseira um pouco por todo o mundo. Ajudou a gerar centenas de crianças, sem que nunca tenha sido apurado o número exato da sua descendência. Ele alega que não são mais de 550 crianças, mas as autoridades estimam que o número possa chegar às três mil. O perigo de poderem relacionar-se entre si no futuro, levando a problemas de consanguinidade, aterrorizou as mães e pais que levaram o caso à justiça. Jonathan ficou impedido de continuar a doar por uma decisão do tribunal holandês.

Com a proliferação de mais grupos nas redes sociais, têm surgido alertas de entidades de saúde portuguesas, sobre os possíveis riscos desta prática. Além da questão das doações em excesso, a possibilidade de se propagarem infeções sexualmente transmissíveis (ISTs), de causar lesões no corpo da mulher ou até de colocar em risco a saúde da criança são aspetos salientados por Maria do Céu Patrão Neves, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV). “Estamos a falar de um método caseiro, com obtenção do esperma não sabemos bem de quem, nem sabemos como. Não passou por qualquer tipo de análise, o recipiente onde foi colocado também não…”, frisa, em entrevista ao Gerador.
“[O problema é] não só como é que o esperma chega a estas mulheres, mas também como é que elas depois introduzem o esperma na vagina, sem qualquer conhecimento, sem qualquer ambiente higiénico e, por isso com riscos imensos, de lesões no aparelho genital feminino, e de infeções, que tanto decorrem do meio que estão a utilizar, quer do ambiente, quer do material que estão a utilizar, não esterilizado”, que, segundo afirma, potencia a proliferação de microorganismos causadores de doenças.
Apesar disso, Maria do Céu Patrão Neves admite que este é um problema que decorre da falta de equidade, que impede muitas pessoas de aceder aos tratamentos. “Por isso é que o SNS tem de funcionar de forma a satisfazer as necessidades, porque não podemos permitir que haja iniquidade no acesso, ou seja, quem tem capacidade financeira vai a uma clínica privada e quem não tem fica indefinidamente numa lista de espera”, lamenta.
A responsável diz ainda ser “grave” a utilização de kits de inseminação caseira, que já é possível adquirir em sites especializados e marketplaces como Ebay e Aliexpress. “Por um lado, encorajam, criam expectativas, e por outro vendem ilusões e a única coisa que fazem é expor a mulher a riscos significativos”, acrescenta.
Estes kits – com preços que vão desde os 5 aos 60 euros, dependendo da qualidade e modelo – são habitualmente compostos por uma ou duas seringas e um recipiente para a colheita. Há ainda “copos de concepção”, feitos de silicone e com uma morfologia inspirada no copo menstrual. Passíveis de ser reutilizados em vários ciclos, prometem ser mais eficazes na retenção de esperma no cérvix. Na Wells este produto vende-se a 27,99 euros.

Além dos riscos já referidos, Carlos Calhaz Jorge destaca ainda o risco, “para as potenciais crianças nascidas, da ausência de rastreios das doenças genéticas mais frequentes, a que os dadores ou dadoras, são submetidos antes da doação”, quando esta é feita em ambiente controlado.
O presidente do CNPMA afirma mesmo que a prática pode constituir um crime. “Eu não posso deixar de dizer o que está na lei, e a lei diz que qualquer técnica de PMA efetuada fora de centros autorizados expressamente para o efeito, é passível de multa ou prisão. Portanto, em teoria e por inerência, constitui algo que é ilegal e, portanto, se tem a possibilidade de chegar à prisão, corresponde a um crime”, acredita o especialista.

A Lei n.º 32/2006, de 26 de julho regula a utilização de técnicas de PMA em Portugal. No artigo 5º é referido que estas “só podem ser ministradas em centros públicos ou privados expressamente autorizados para o efeito pelo Ministro da Saúde”.
Esta lei à aplica-se às seguintes técnicas: Inseminação artificial; FIV; ICSI; Transferência de embriões, gâmetas ou zigotos; Diagnóstico genético pré-implantação; “Outras técnicas laboratoriais de manipulação gamética ou embrionária equivalentes ou subsidiárias” e ainda “ a situações de gestação de substituição”.
Não sendo a inseminação caseira uma técnica “medicamente” assistida, surge a dúvida se pode ou não estar incluída no termo “inseminação artificial”. A par disso, é referido no Artigo 19.º que “é permitida a inseminação com sémen de um dador quando não puder obter-se a gravidez de outra forma”, sem mais especificações.
André Gonçalo Dias Pereira, jurista e Diretor do Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra considera que esta prática “será ilícita”, mas não necessariamente um crime.
“É um comportamento contrário à lei. O que é diferente de ser crime. O crime tem de estar expresso na lei”, esclarece. “Não se enquadra nos crimes gerais do direito penal”, diz o também vice-presidente do CNECV. “Sendo ilícito, pode gerar consequências civis, desde logo [o dador] ser [considerado] pai.”
Já Madalena Pinto de Abreu, advogada e docente na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, considera que considera que a “inseminação artificial caseira é, também ela, uma técnica de PMA”.
“Não parecem subsistir dúvidas quanto à ilicitude da inseminação artificial caseira e, também ela, tem de ser realizada nos termos da lei”, afirma.
Caso isso não aconteça, “aplicar-se-ão as regras gerais em matéria de estabelecimento da filiação, podendo o dador vir a ser considerado pai”. Ademais, a advogada entende que “caso a inseminação artificial seja realizada em contravenção com o disposto na Lei da Procriação Medicamente Assistida podem os participantes incorrer em responsabilidade penal ou contrordenacional, se em causa estiver um dos comportamentos tipificados nos artigos 34.º e seguintes da respetiva lei”.

Em Portugal, quando um casal recorre à PMA para ter um filho, é obrigatório que os dois elementos assinem previamente um formulário de Consentimento Informado do CNPMA, que descreve o tratamento a que o casal decide submeter-se para ter um bebé. Neste documento, é também referido que as crianças geradas serão “sempre havidas como filhos/as de quem tiver consentido no recurso à técnica em causa”.
Para que um casal de mulheres possa registar uma criança como sendo filha de ambas é, por isso, necessário apresentar este documento no Registo Civil. Este fator é particularmente relevante, já que invalida que uma criança gerada através de inseminação caseira possa ser registada como sendo filha de duas mães.
Ao Gerador, “Andreia” explicou que, para registar os seus dois filhos, viu-se obrigada a mentir ao Ministério Público e a dizer que a criança foi fruto de uma relação sexual casual com um homem do qual desconhece a identidade. “Os meus filhos foram registados apenas com o meu nome, inicialmente”, conta.
Por norma, o Ministério Público abre uma averiguação de parentalidade, que acaba por ser arquivada. Numa fase posterior, pode então ser aberto o processo de co-adopção. Desta forma, a companheira de Andreia só conseguiu ser oficialmente mãe anos mais tarde, até porque quando as crianças nasceram, há mais de duas décadas, nem sequer estava prevista na lei portuguesa a possibilidade de co-adopção por casais do mesmo género.
Como a mãe não gestante não é reconhecida como tal no momento do registo da criança, isso significa, também, que não terá acesso a qualquer licença de maternidade, além de não ter direitos de parentalidade. Caso a mãe gestante faleça, por exemplo, não pode ficar com a guarda da criança. Se o casal se separar, também não existem bases legais para um dos elementos pedir ao outro uma pensão de alimentos. E se for a mãe não-gestante a falecer, a criança não terá direitos de herança, pois legalmente, não existe um vínculo familiar.

No Brasil, onde a lei é similar, a defensora pública Mirela Assad Gomes, conseguiu uma forma de dar a volta a esta situação e garantir que Bárbara Maranhão e a sua companheira eram legalmente reconhecidas como mães do bebé gerado através de inseminação caseira.
“Fiz uma ação que eu chamei de Alvará para Registro. E saiu uma sentença, procedente, enquanto elas ainda estavam gravidinhas […]. A sentença dizia que assim: que a prole nascesse com vida, que fosse registrada no nome das duas mães, com todos os direitos legais, sem nenhuma exigência, enfim, sem nenhuma discriminação”.
Assim, quando o bebé nasceu, o casal apresentou este documento – que é uma sentença judicial, assinada por um juiz – no cartório e ele foi aceite. Desde o primeiro momento ambas são reconhecidas como mães da criança, pelo que puderam usufruir das respectivas licenças de maternidade e de todos os seus direitos.
Este caso, registado no Rio de Janeiro, foi inédito na altura, mas entretanto quase uma centena de situações similares surgiram e foram resolvidas da mesma maneira, segundo Mirela Assad Gomes, que defende a regulamentação da prática.
Esta declaração também resolve uma outra questão: por estar registada logo com o nome das duas mães, o dador nunca poderá reivindicar a paternidade da criança, situação que pode ocorrer em Portugal.
“O lado bom é que ninguém discute. A defensoria [pública] já faz automaticamente [este processo], o Ministério Público não faz qualquer impugnação, o juiz já dá a sentença e o cartório já cumpre. Tudo no amor. Só falta uma adequação legislativa para que esse alvará seja desnecessário, não é?”
Para Mirela Assad Gomes, isto tem uma enorme relevância já que permite que as crianças de mães que não podem pagar tratamentos em clínicas fiquem legalmente protegidas.
“Antes de ser um problema jurídico, é um problema social e financeiro. Tem que ser visto como uma questão de saúde pública e de inclusão. Elas têm o direito de serem incluídas na sociedade, poderem gerar como qualquer mulher que tem condição aquisitiva, de dinheiro. Não é?”